Na saída do culto de uma igreja fundamentalista, dois amigos (João e José) encontraram-se.
João: A paz do Sinhô, meu irmão!
José: A paz. E aí? Como foi lá no retiro esses dias?
João: Benção pura! O fogo desceu pra valer e quase falei em línguas estranhas. Acho que dessa vez a minha vida vai mudar e conseguirei prosperar no negócio que estou abrindo.
José: Aleluia! Glória ao Sinhô!
João: Agora me conta o que fez durante o Carnaval? Evangelizou as almas perdidas junto com os obreiros na noite de terça-feira? Voltou pro mundo não, né?
José: Que isso, meu irmão! Eu já morri para as coisas dessa vida...
João: Vem cá. Fiquei ciente de que a Mangueira ganhou o desfile na Sapucaí.
José: Como você soube disso se estava no retiro?
João: É que dei uma espiadinha pelo celular quando estava voltando de ônibus na tarde desta quarta-feira.
José: Não foi assistir pela internet as mulheres desfilando quase nuas na avenida?
João: Eu quero ir pro céu, brother! Além disso, sou casado, tenho três filhas adolescentes, ajudo o pastor a servir a Santa Ceia no segundo domingo do mês e o sinal do celular não pegava de jeito nenhum naquele sitio que a congregação alugou em Teresópolis. Mas, como o irmão sabe, já fomos mangueirenses. Então, quando estava naquele engarrafamento horroroso da Washington Luiz, voltando pra cá, toda hora consultava as notícias do Google a fim de acompanhar os resultados da apuração.
José: Sei... Conheço você de velhos carnavais...
João: E, no fundo, confesso que fiquei muito feliz porque a escola pela qual trabalhei durante mais de duas décadas finalmente quebrou o seu jejum de treze anos. A campeã voltou!
José: Olha que eu estou suspeitando dessa vitória.
João: Por que, mano?
José: Escutei no programa de rádio de uma outra igreja evangélica que tudo não teria passado de uma conspiração satânica para homenagear os orixás da Maria Bethânia. Não duvido de que o Plim Plim esteja por trás! Ou você ignora as ligações desta emissora com a macumbaria e com os grupos gays?!
João: Tá amarrado!
José: Só não vê quem não quer...
João: Seja como for, continuo contente com o resultado. E acho que lá no céu o velho Jamelão também deve estar muito feliz.
José: Você quer dizer no inferno.
João: Que isso! Por que o nosso Gzuis iria mandar um cantor tão talentoso como o Jamelão para arder no andar de baixo?!
José: Pera aí! O irmão já não se lembra mais das aulas que recebeu do pastor antes de passar pelas águas no batismo? Se uma pessoa morre sem se arrepender dos pecados e não aceitar Gzuis, sua alma vai torrar no inferno por toda a eternidade. Tá no Evangelho! Basta você estudar mais a Bíblia.
João: Conheço a parte do Evangelho do meu xará da Galileia quando o Mestre diz que "quem não crer já está condenado". Só que você precisa interpretar melhor as Escrituras e considerar as inúmeras possibilidades de conversão e de fé. Também não se esqueça de que, assim como eu, foi mangueirense tendo tirado até fotos com o Jamelão e a Dona Zica. Inclusive chegamos a conhecer o Cartola que foi esposo dela.
José: Sim, mano. Mostro essas fotos para todo mundo nos testemunhos que dou pelas igrejas do Rio juntamente com as imagens que guardo do antigo Maraca quando o Mengão consagrou-se como tricampeão brasileiro no começo da década de 80. Aquilo sim era time...
João: E aí? Vai esconder que, no fundo, não ficou torcendo pela Mangueira?
José: Lógico que não. Agora só falta o irmão falar que vai sábado na Sapucaí celebrar o Enterro dos ossos!
João: Como dizia aquele saudoso samba de 94, o qual nós dois pulamos muito, 'atrás da Verde e Rosa só não vai quem já morreu'.
José: Sabia que você não era convertido! Olha, irmão, não basta você ir a retiros de Carnaval, comer a Ceia ou frequentar cultos para conseguir entrar no céu. O caminho salvação é estreito enquanto as portas do inferno são bem largas. Tem que tirar o mundo de dentro de você!
João: Acho que o amigo caiu na minha pegadinha. Quá! Quá! Quá!
José: Como assim?
João: Só vai atrás da Mangueira quem ainda não morreu. Porém, nós dois já morremos pra esse mundo e estamos crucificados com Gzuis.
José: Se é assim, amém. Até o culto de domingo, irmão. A paz do Sinhô!
João: Vai na paz.
Quando chegou o sábado, os dois ex-sambistas (agora "crentes") compareceram na festa da Mangueira. Para evitarem de ser reconhecidos na Avenida, chegaram lá fantasiados. João vestiu-se de mulher colocando uma peruca rosa com um top verde claro enquanto José arrumou emprestado uma máscara de jacaré ao inventar a desculpa de que iria fazer um teatro para "evangelizar" o público infantil, tomando todo o cuidado para não ser visto por alguém da comunidade. Sem um saber quem era outro, ambos vieram a se esbarrar pelo caminho tendo João derramado um pouco de Proibida no amigo:
José: Ei, moça. Toma mais cuidado pra não deixar cair a sua cerveja na minha fantasia. Essa máscara pertence a um vizinho meu!
João: Irmão José? A paz do Sinhô!
José: Quieto! Não conte pra ninguém que me viu aqui. O pastor, se souber, exclui meu nome do corpo de obreiros e vai me colocar novamente para esquentar banco.
João: Pois é. Atrás da Verde e Rosa só não vai quem já morreu...
José: Para todos os efeitos, acabo de ressuscitar.
João: Só tome cuidado com a ressurreição dos ímpios pois estes sairão dos túmulos para o terrível Lago de Fogo do Apocalipse.
José: Faz de conta que ressuscitei somente hoje pro mundão a fim de comemorar brevemente a vitória da nossa ex-escola. Tal como foi com o Lázaro ou a filha de Jairo, tornarei a morrer outro dia.
João: Esquece o Lázaro de Betânia, mano! Hoje é dia de homenagearmos a nossa querida Maria que não é a irmã da Marta mas, sim, do Caetano. Portanto, festejemos com muita aleluia ou axé, coisa que jamais podemos fazer na igreja.
José: Bem, como dificilmente Gzuis volta nesta noite e considero improvável morrermos subitamente aqui, aproveitemos bem esses passageiros instantes de folia porque daqui a pouco começa o domingo.
João: Amém!
OBS: Ilustração acima extraída do WikiRio em http://www.wikirio.com.br/Esta%C3%A7%C3%A3o_Primeira_de_Mangueira
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