
Os estudiosos discutem interminavelmente se as variadas histórias existentes nas culturas dos povos antigos sobre a criação (e também sobre o dilúvio) viriam de uma fonte comum. Fala-se, por exemplo, em notáveis semelhanças entre trechos do Bereshit (Gênesis) e a Epopeia de Atrakhasis, um poema babilônico sobre o começo da vida em sociedade, escrito há mais de 1600 anos a.C.
Segundo as versões sobre a Epopeia de Atrakhasis, os seres humanos teriam surgido para desempenhar a árdua tarefa dos deuses inferiores em cuidar da terra e foram criados da carne e do sangue de uma divindade. Porém, como os homens começaram a se multiplicar e a incomodar os deuses fazendo barulho, estes decidiram acabar com a raça humana através de um dilúvio...
Prossegue a lenda dizendo que o piedoso Atrakhasis fora advertido em sonhos por um deus acerca da catástrofe planejada e recebeu instruções de construir um barco para salvar-se junto com sua família mais alguns animais. E não muito diferente do Noé da Bíblia, o herói babilônico também soltou aves da arca afim de verificar se as águas já teriam baixado depois das chuvas torrenciais do dilúvio, chegando a oferecer ao final um sacrifício no alto de uma montanha dedicado aos deuses que “sentiram o cheiro suave” (conf. com Gn 8.21).
Questiona-se se a tradição bíblica teria ou não se originado da curiosa Epopeia de Atrakhasis devido às fortes semelhanças entre as duas narrativas. Porém, a existência de histórias anteriores na própria região da Mesopotâmia aponta para um mito originado num tempo ainda mais remoto em que os ancestrais de todos aqueles povos civilizados, antes de conhecerem a escrita, sentavam-se ao redor de uma fogueira para ouvir histórias contadas por um ancião nos acampamentos nômades dos grupos humanos.
Para Alan Millard, professor de hebraico antigo e de línguas semitas da Universidade de Liverpool (Reino Unido), os relatos dos capítulos 1 e 2 de Gênesis teriam os seguintes pontos em comum com outras histórias da criação do mundo e do homem: “uma divindade pré-existente; a criação como resultado de uma ordem divina; o ser humano como o ponto alto da criação, formado do pó da terra como se molda um vaso, mas também de certa forma um reflexo da divindade”.
Contudo, o renomado pesquisador adverte que a existência de ideias semelhantes entre as histórias não significa que todas elas sejam derivadas de uma fonte comum:
“É enganoso reduzir histórias diferentes trazidas das várias partes do mundo aos fatores que têm em comum para afirmar que todas têm uma fonte comum. É improvável que todas essas diferentes histórias, ou uma grande parte delas, tenham uma fonte única. É mais interessante, e mais correto, colocar o texto do Gênesis ao lado de outros relatos do antigo Oriente Próximo, que é o mundo do AT. Ao fazermos isso, notamos que são poucas as antigas histórias de criação que têm mais do que um ou dois conceitos básicos em comum, como a separação entre céus e terra e a criação do homem a partir do barro. Porém, as histórias dos babilônios têm algumas notáveis semelhanças com o relato hebraico.”
(extraído do Manual Bíblico da Sociedade Bíblica Brasileira, págs. 117 e 118)
A meu ver, a existência de uma fonte comum parece bem certa. Pois, mesmo desconhecendo a data e o local onde possa ter se originado a primeira história da criação do cosmos (e do dilúvio), observo na busca por respostas a razão comportamental para a ocorrência de todas as tradições dos povos a respeito de suas origens. Do contrário, os relatos teriam deixado de ser recontados pelas gerações posteriores.
Tudo indica que as histórias de Gênesis foram compostas no meio de inúmeros mitos que já deveriam existir no mundo antigo, tendo o autor da Torá baseado-se numa crença dos hebreus para transmitir-lhes uma mensagem de reverência a Deus dentro de uma visão sacerdotal. Pois, considerando que o povo do segundo milênio antes de Cristo, habituado a enchentes catastróficas, já ouvia falar de dilúvios e criação dos homens pelos deuses, mostrava-se oportuna a utilização dos mitos mais conhecidos pelos israelitas e inseminá-los com um significado espiritual capaz de conduzir os homens a um comportamento ético que respeitasse a vida.
Assim, Gênesis não é uma invenção de seu autor e muito menos foi escrito para se tornar uma dogmática teoria criacionista que contrariasse a ciência. Talvez nem possa ser considerado como uma fonte histórica, no sentido em que hoje compreendemos a História, apesar de suas belas narrativas explicarem poeticamente as origens da vida, da humanidade e da nação de Israel. Aliás, os relatos do Bereshit apenas compõem o revestimento de um ensino profundo, conforme expõe O Livro do Esplendor numa suposta fala do Rabi Simeão ben Yohai, célebre mestre judeu da Galileia do século II:
“Se um homem considera a Torá como uma simples compilação de histórias e de assuntos quotidianos, infeliz dele! Esse gênero de escrita, que tratasse de questões banais, e mesmo um texto melhor, também nós, nós mesmo o poderíamos redigir. Ainda mais, os príncipes deste mundo têm em sua posse livros de um valor ainda mais precioso, que poderíamos imitar se quiséssemos escrever uma 'Torá' semelhante. Mas a Torá, em cada uma das suas palavras, contém verdades supremas e segredos sublimes (…) Assim, os textos que a Torá relata não são mais do que as suas vestes exteriores, e mal daquele que julgue que tal traje é a própria Torá (…) Considerai o seguinte: A parte mais visível de um homem é o vestuário que traz, e aqueles a quem falta entendimento, quando olham esse homem, podem ver nele apenas o vestuário. No entanto, é na realidade o corpo do homem que faz a nobreza das suas vestes e a sua alma é a glória do seu corpo. Acontece o mesmo em relação á Torá. As suas narrativas que descrevem as coisas do mundo compõem a veste que cobre o corpo da Torá. E esse corpo é formado pelos preceitos da Torá, gufey-torah (corpo: princípios fundamentais). Os homens sem entendimento só vêem a narração, o vestuário; mas os que têm um pouco mais de sabedoria vêem igualmente o corpo. Só os verdadeiros sábios, os que servem ao Rei Muito-em-Cima, os que se conservam no Monte Sinai, penetram até à alma, até à verdadeira Torá que é a raiz fundamental de tudo (…) Assim como o vinho deve ser colocado num cântaro para se conservar, assim também a Torá deve ser envolvida numa roupagem exterior. Essa roupagem é feita de fábulas e narrativas. Mas nós, nós devemos penetrar através dela.”
Tais palavras podem ser hoje dirigidas para aqueles que, por acreditarem na teoria de Oparin, ou a da evolução das espécies de Charles Darwin, simplesmente desprezam as histórias de Gênesis, deixando de compreender que as narrativas bíblicas jamais foram redigidas para serem dogmatizadas. Porém, tanto o relato da criação quanto o mito do dilúvio foram escritos pelos sábios afim de comunicarem o papel de Deus na existência do universo e tratar de importantes questões de ordem ética que foram revolucionárias numa época de enorme brutalidade existente no trato entre os seres humanos, de modo que os temas desenvolvidos ao longo do Pentateuco baseiam-se nas narrativas do primeiro livro, sobretudo em ideias relacionadas aos versos iniciais: bondade manifestada por Deus em cada ato criador (1.4,10,18,21, 25, 31); sermos feitos à imagem e semelhança do Eterno (1.26-27); o cuidado com a natureza (1.28; conf. 2.5,15); descanso sabático (2.2-3); relação do homem com o solo (2.7); sopro de vida (2.7); jardim de ensino (2.8); árvore da vida (2.9); árvore do conhecimento do bem e do mal (2.17); a mulher como companheira do homem (2.18), sendo criada do varão (2.21), e se tornando ambos uma só carne (2.24); a nudez (2.25).
Sobre sermos feitos à imagem e semelhança de Deus, Barnabe Assohoto e Samuel Ngewa, ambos teólogos africanos, elaboram o seguinte comentário de aplicação pessoal que se mostram úteis para a compreensão do propósito de Gênesis:
“De acordo com as Escrituras, os seres humanos de ambos os sexos foram feitos à imagem de Deus (1:26b-27). Assim, as pessoas são diferentes de outros seres criados como animais, um fato que tem consequências importantes para a maneira como vivemos. Em primeiro lugar significa que cada ser humano é, de alguma forma, semelhante ao seu Criador. Assim, cada ser humano é especial e importante. Devemos ser capazes de reconhecer o Criador nos homens e nas mulheres que vemos ao nosso redor. Em segundo lugar, significa que não devemos adorar nenhum animal ou a imagem de um animal (…) Em terceiro lugar, uma vez que Deus criou tanto nosso corpo quanto nosso espírito, não devemos considerá-los separadamente e pensar que podemos ignorar o corpo enquanto vivemos para Deus no espírito. As Escrituras deixam claro que não devemos maltratar nosso próprio corpo nem o de outros (…) É importante observar que os homens e as mulheres receberam permissão de exercer domínio sobre as criaturas vivas, mas não sobre seres humanos. Da mesma forma, os homens não receberam autoridade para dominar as mulheres (nem vive-versa). Nossos semelhantes também são portadores da imagem do Criador e, portanto, não devem ser dominados, mas sim servidos.” (extraído do Comentário Bíblico Africano, pág. 11)
Não se pode esquecer que a Torá surgiu num tempo onde havia exploração do trabalho humano através da escravidão, penas cruéis baseadas na regra do Talião, dominação do homem sobre a mulher, adoração servil às divindades antropomorfas ou zoomorfas que poderiam incluir até sacrifícios de pessoas, terríveis reis opressores que se achavam descendentes dos deuses e guerras sangrentas. Logo, dentro deste contexto, pode-se afirmar que os “Cinco Rolos de Moisés”, dos quais Gênesis é o primeiro, tornaram-se a revelação tão esperada pelo escravizado homem do segundo milênio antes de Cristo. O manejo inspirado das tradições antigas significou a resposta para as intermináveis conversas em volta das fogueiras, dando novo sentido às narrativas folclóricas e libertando os homens do jugo dos deuses, visto que somos feitos à imagem e semelhança da divindade, o que nos faz destinatários de um tratamento digno e igualitário no trato entre os homens.