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sábado, 20 de dezembro de 2025

A PEC 31/2017 e o silêncio que também comunica



Entre os muitos desafios que cercam o funcionamento do Estado Democrático de Direito, um dos mais sensíveis é assegurar que o acesso à Justiça não seja apenas um princípio abstrato, mas uma realidade concreta para todos — especialmente para aqueles que historicamente enfrentam maiores obstáculos para fazer valer seus direitos. É nesse contexto que se insere a Proposta de Emenda à Constituição nº 31, de 2017.

A PEC 31/2017, aprovada no Senado Federal em 2019 e atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, propõe ampliar as atribuições do Defensor Público-Geral Federal, conferindo-lhe legitimidade para propor ações diretas de controle concentrado de constitucionalidade, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade, além do incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. Cuida-se de um ajuste institucional que busca harmonizar o papel constitucional da Defensoria Pública com sua missão de promoção dos direitos fundamentais e de defesa dos cidadãos em situação de vulnerabilidade.

Não se trata de criar privilégios, tampouco de tensionar o equilíbrio entre instituições. Ao contrário: a proposta reforça a lógica republicana de pesos e contrapesos, ampliando os canais institucionais de proteção da Constituição e permitindo que violações estruturais de direitos possam ser levadas ao Supremo Tribunal Federal por quem atua diretamente na linha de frente da assistência jurídica gratuita.

Apesar de sua relevância, a PEC permanece há anos sem avanço significativo na Câmara dos Deputados. Não há rejeição formal, nem debate aprofundado em curso. Há, sobretudo, silêncio. Um silêncio que não decorre de inconstitucionalidade ou inadequação do texto, mas que parece refletir a dificuldade de pautar temas técnicos, institucionais e de interesse coletivo quando não produzem dividendos políticos imediatos ou visibilidade eleitoral.

É compreensível que o Parlamento enfrente uma agenda sobrecarregada e escolhas difíceis. Ainda assim, a demora prolongada na apreciação de propostas dessa natureza convida à reflexão sobre quais prioridades orientam o processo legislativo e sobre como determinadas pautas acabam relegadas à inércia, mesmo após terem superado etapas relevantes do rito constitucional.

Nesse cenário, ganha importância o papel da sociedade civil e, especialmente, dos candidatos ao Legislativo Federal. Em um momento em que se cobra renovação, compromisso democrático e fortalecimento das instituições, é legítimo esperar que aqueles que aspiram a representar a população se posicionem sobre temas estruturantes do sistema de Justiça. Saber como deputados e senadores encaram o fortalecimento da Defensoria Pública, o acesso à Justiça e o aprimoramento do controle constitucional é parte essencial do debate público qualificado.

A tramitação e eventual aprovação da PEC 31/2017 não resolverão, por si sós, as desigualdades profundas que marcam o país. Mas representam um passo importante na consolidação de um Estado que escuta mais vozes, amplia seus instrumentos de proteção constitucional e reconhece que a democracia se fortalece quando o direito não é privilégio de poucos, mas patrimônio de todos.

Dar visibilidade a essa discussão é, portanto, um exercício de cidadania. E permitir que ela avance no Parlamento é uma forma de reafirmar que o interesse público também merece prioridade, mesmo quando não ocupa os holofotes do debate político imediato.


📌 Nota de impacto institucional e social:

Os números mais recentes sobre a atuação das Defensorias Públicas no Brasil revelam de forma inequívoca a dimensão social da sua missão. Em 2024, as Defensorias Públicas estatais e da União somaram mais de 29,5 milhões de atendimentos à população, um crescimento de quase 20 % em relação ao ano anterior, com 25,9 milhões de manifestações processuais e 4,4 milhões de processos judiciais iniciados — demonstrando um alcance substancial junto aos mais vulneráveis, que frequentemente não teriam acesso a representação jurídica sem esse serviço público essencial. Em todo o país, há hoje 7.520 defensoras e defensores públicos, o que representa, em média, um profissional para cada 31 107 habitantes; entre a população em condição de vulnerabilidade socioeconômica, essa proporção melhora apenas para cerca de um defensor a cada 27 363 pessoas, evidenciando um quadro de esforço institucional diante de necessidades imensas. A realidade da Justiça Federal é ainda mais desafiadora, com um defensor público federal para cerca de 309 889 habitantes — um cenário que ilustra tanto a importância da Defensoria quanto a necessidade de fortalecer sua presença institucional e estratégica. Esses números não só atestam a relevância concreta da Defensoria no cotidiano de milhões, mas também sublinham por que iniciativas como a PEC 31/2017 merecem tramitação cuidadosa e célere: não apenas como ajuste técnico, mas como fortalecimento de um órgão fundamental à concretização dos direitos constitucionais de igualdade, dignidade e acesso à Justiça. 

O Rio não pode perder sua memória!



A recente decisão da Justiça Federal que obriga o Governo do Estado do Rio de Janeiro a agir urgentemente para proteger um acervo documental que agoniza nos porões do antigo Instituto Médico Legal (IML), na Lapa, não deveria surpreender — deveria envergonhar

A determinação judicial, proferida no âmbito da Ação Civil Pública nº 5098187-12.2025.4.02.5101, ajuizada pelo Ministério Público Federal e em trâmite na Justiça Federal do Rio de Janeiro, expõe um descaso institucional que vai muito além de janelas quebradas e microfilmes deteriorados: revela uma crise civilizacional na maneira como tratamos aquilo que realmente importa para compreender quem somos.

O acervo guarda cerca de 2,9 mil metros lineares de documentos e 440 mil itens iconográficos, incluindo registros da Polícia Civil das décadas de 1930 a 1960 e materiais que tocam diretamente o período da ditadura militar — documentos que podem trazer luz à trajetória de desaparecidos políticos, torturas e violações de direitos humanos.

Ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro participa de iniciativas internacionais como o Programa Memória do Mundo da UNESCO e reativa comissões nacionais para a preservação do patrimônio documental, reforçando o papel desse patrimônio na construção de uma sociedade democrática e plural, na prática chegamos ao ponto em que arquivos históricos — testemunhos fundamentais da nossa história — ficam abandonados, expostos ao vandalismo e à deterioração.


Memória e democracia são faces da mesma moeda

A Constituição Federal, ao tratar do patrimônio cultural, coloca entre seus objetivos a proteção do conjunto de bens materiais e imateriais que formam nossa identidade coletiva. Essa proteção não é opcional — é um dever do poder público, consolidado pela Lei nº 8.159/1991, que estabelece a Política Nacional de Arquivos e reforça que a gestão documental e a preservação de documentos históricos são essenciais à administração pública, à cultura e ao direito à informação.

Quando um estado falha nesse dever, ele não apenas negligencia papéis e fotos antigas; ele coloca em risco o direito da sociedade de conhecer seu passado, entender seus conflitos, reconhecer suas vítimas e, acima de tudo, aprender com seus erros. Esse direito é uma pedra angular da democracia: sem memória, não há verdade — e sem verdade, não há justiça.


O que está em jogo vai muito além de um prédio

Não podemos aceitar que nossa memória seja tratada como lixo esquecido. Enquanto instituições públicas clamam por políticas mais robustas e financiamento adequado para cuidar de acervos nacionais, como faz o Arquivo Nacional em seus programas de preservação e democratização do acesso à informação, no nível local assistimos ao abandono crônico de documentos que contarão, um dia, as histórias que ainda não se ousa enfrentar.

A responsabilização aqui deve ser política. Governos passam, mas permanecerão as ruínas de nossas lembranças — se não agirmos. A omissão em proteger esse patrimônio não é apenas administrativa; é profundamente ideológica. Sugere uma visão de país que prefere apagar trechos incômodos da história a confrontá-los. Mas uma sociedade verdadeiramente democrática não pode se dar ao luxo de escolher memória seletiva. Ela deve preservar toda a memória — inclusive aquela que expõe violência, contradições e sofrimento.


O papel da sociedade

Cabe à sociedade civil — pesquisadores, movimentos de memória e direitos humanos, jornalistas, artistas e cidadãos — manter viva a pressão por políticas públicas consistentes de preservação documental. Não se trata de nostalgia, mas de democracia em ação. Para isso, é urgente que a decisão judicial não fique apenas no papel ou nos prazos rígidos de magistrados, mas se transforme em ações concretas de salvamento, catalogação, digitalização e acesso público ao acervo. Somente assim será possível honrar a história e fortalecer o futuro.


📝 Nota explicativa ao leitor

A decisão mencionada neste artigo foi proferida no âmbito da Ação Civil Pública nº 5098187-12.2025.4.02.5101, em trâmite na Justiça Federal do Rio de Janeiro, sob responsabilidade do juízo federal competente.

Trata-se de uma decisão de natureza cautelar (ou de urgência). Isso significa que o Judiciário ainda não analisou o mérito final da ação — ou seja, não julgou de forma definitiva responsabilidades, culpas ou soluções estruturais para o caso.

O objetivo da decisão é evitar um dano irreversível, impondo medidas imediatas para preservar o acervo documental ameaçado, diante do risco concreto de deterioração, perda ou destruição.

Esse tipo de decisão é comum em ações que envolvem patrimônio público, memória histórica e direitos fundamentais, quando a demora do processo pode tornar inútil qualquer julgamento futuro.


📌 Como acompanhar o processo:

O andamento da ação pode ser consultado por qualquer cidadão no sistema eletrônico da Justiça Federal da 2ª Região (TRF-2), por meio do site oficial do tribunal, utilizando o número do processo informado acima.

Três anos de governo: união, reconstrução e colheita — expectativas para 2026



As imagens que sintetizam os últimos anos de governo comunicam mais do que slogans: elas organizam um sentido político de ciclo. União, reconstrução e colheita não são apenas palavras; são etapas de um processo de retomada democrática, institucional e social após um período de rupturas, conflitos e desorganização do Estado. Ao avaliar os três primeiros anos da atual gestão federal, é possível identificar coerência entre discurso, prioridades e resultados, ainda que persistam desafios estruturais.


2023 — O ano da União

O primeiro ano foi marcado pela recomposição do tecido democrático. A prioridade foi estabilizar o país institucionalmente, restaurar pontes entre Poderes, reconstruir a credibilidade internacional e revalorizar políticas públicas que haviam sido desmontadas.

Entre os principais marcos, destacam-se:


  • A defesa firme da democracia e das instituições, com resposta política e jurídica aos ataques ao Estado de Direito;
  • A retomada do diálogo federativo, com estados e municípios voltando a ser tratados como parceiros;
  • O reposicionamento do Brasil no cenário internacional, com diplomacia ativa, ambientalmente responsável e voltada à cooperação Sul-Sul;
  • A reconstrução de políticas sociais, com a reorganização do sistema de proteção à população mais vulnerável.


A união não significou unanimidade, mas sim capacidade de governar em ambiente plural, resgatando a normalidade democrática e reduzindo tensões que paralisavam o país.


2024 — O ano da Reconstrução

Com a estabilidade política mínima restabelecida, o segundo ano aprofundou a reconstrução do Estado e da capacidade de planejamento público. Foi o momento de reerguer estruturas administrativas, recuperar programas estratégicos e recolocar o desenvolvimento no centro da agenda.

Entre os avanços, podem ser citados:


  • A retomada dos investimentos públicos, com foco em infraestrutura, saúde, educação e ciência;
  • A reconstrução da política ambiental, com queda significativa do desmatamento e recuperação do protagonismo climático do Brasil;
  • A reindustrialização como política de Estado, estimulando inovação, tecnologia e geração de empregos qualificados;
  • O fortalecimento de empresas e instituições estratégicas, essenciais à soberania nacional.


Reconstruir significou planejar o futuro, corrigindo distorções herdadas e devolvendo ao Estado sua função indutora do desenvolvimento.


2025 — O ano da Colheita

O terceiro ano simboliza os resultados concretos das escolhas feitas desde o início do mandato. A colheita aparece na melhoria de indicadores sociais, no crescimento econômico com inclusão e no aumento da confiança da sociedade nas políticas públicas.

Entre os sinais mais visíveis dessa fase:


  • Redução da fome e da pobreza extrema;
  • Geração de empregos e recuperação da renda do trabalho;
  • Fortalecimento da agricultura, da produção de alimentos e do mercado interno;
  • Ampliação de investimentos estruturantes por meio de programas como o novo PAC.


A colheita não é um ponto final, mas a confirmação de que o caminho adotado produziu resultados, especialmente para quem mais depende do Estado.


2026 — O ano da Verdade: expectativas e desafios

O quarto ano se apresenta como o momento da verdade política. É quando o governo será avaliado não apenas por intenções, mas pelo conjunto da obra. As expectativas para 2026 envolvem consolidar avanços e enfrentar entraves históricos.

Entre os principais desafios estão:


  • Aprofundar a justiça social e reduzir desigualdades regionais;
  • Avançar em reformas que tornem o Estado mais eficiente sem perder seu caráter social;
  • Enfrentar a desinformação e o extremismo político que ainda ameaçam a democracia;
  • Sustentar o crescimento econômico com responsabilidade fiscal e inclusão.


Se os três primeiros anos foram de reconstrução e entrega de resultados, 2026 será o ano de prestar contas à sociedade, reafirmando o compromisso com a democracia, o desenvolvimento e a verdade dos fatos.


Considerações finais

O balanço dos três primeiros anos indica um governo que escolheu reconstruir o país a partir do diálogo, da política pública e da centralidade do povo. Em um cenário internacional instável e com heranças internas complexas, a gestão demonstrou capacidade de liderança, resiliência institucional e foco social.

A expectativa para 2026 é que o país chegue a esse momento com mais estabilidade, menos desigualdade e maior clareza sobre qual projeto de nação está em disputa. A verdade, afinal, não se impõe por discurso — ela se revela nos resultados.

Congresso aprova LOA-2026 com cortes em programas sociais enquanto inflama emendas parlamentares: necessidade urgente de veto presidencial



Nesta sexta-feira (19), o Congresso Nacional aprovou a Lei Orçamentária Anual de 2026 (LOA-2026), com despesas totais estimadas em R$ 6,5 trilhões e uma previsão de R$ 61 bilhões destinados a emendas parlamentares, muito acima dos valores originalmente propostos pelo Poder Executivo.

A votação, simbólica, não registrou individualmente como cada parlamentar se posicionou — mas o resultado, fruto de negociações intensas, foi cristalino: uma série de cortes em programas sociais estruturantes foram usados para “liberar espaço fiscal” justamente para majorar o montante destinado a emendas, em ano eleitoral.

Relatórios e análises de veículos nacionais apontam que, em comparação com o texto enviado pelo Executivo, o Auxílio Gás foi reduzido em cerca de R$ 300 milhões e o programa Pé-de-Meia sofreu corte de cerca de R$ 436 milhões. Despesas com benefícios previdenciários também foram reduzidas em torno de R$ 6,3 bilhões para abrir espaço às emendas parlamentares.

Parlamentares favoráveis à ampliação das emendas celebraram o “atendimento às bases”, mas vozes críticas — inclusive dentro da própria base do governo — já alertaram que a lógica de transformar o orçamento em moeda eleitoral agride o sentido democrático e republicano do planejamento público.


Programas sociais em xeque: o que está em jogo

Os cortes atingiram diretamente políticas que representam ganhos concretos para milhões de brasileiros:


  • Auxílio Gás — benefício focado em aliviar o peso do custo do botijão de gás para famílias de baixa renda.
  • Pé-de-Meia — uma iniciativa voltada para estudantes de baixa renda, contribuindo para permanência escolar e inclusão social.
  • Benefícios previdenciários e de assistência social — que atendem idosos, trabalhadores formais e informais, e garantem renda mínima a vulneráveis.


Esses programas não são “gastos supérfluos”: são instrumentos de redução de desigualdade, combate à fome, apoio à educação e garantia de sobrevivência digna. Cortá-los em benefício de emendas parlamentares pulverizadas — frequentemente ligadas a interesses locais e imediatistas — representa uma inversão grave das prioridades sociais.


Análise jurídica: fundamentos para um veto presidencial

O Chefe do Executivo tem fundamento constitucional robusto para vetar, no todo ou em parte, essas emendas que redirecionam recursos de políticas sociais para emendas parlamentares, com base em:


📌 Interesse público e proteção de direitos sociais

A Constituição Federal garante, no artigo 6º, os direitos sociais como educação, assistência e seguridade. Reduzir significativamente recursos destinados à sua efetivação para majorar o montante de emendas parlamentares contraria o interesse público primário e compromete a efetividade dos direitos fundamentais.


📌 Princípio da razoabilidade e proporcionalidade

A simples transferência de recursos de programas estruturantes para emendas discricionárias, sem justificativa técnica transparente nem necessidade fiscal comprovada, configura afronta aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, pois sacrifica grupos vulneráveis para atender prioridades particulares.


📌 Vedação ao retrocesso social

Embora o STF não considere retrocesso social uma regra absoluta, cortes significativos em políticas que concretizam direitos sociais sem justificativa clara e alternativa de proteção podem ser interpretados, em sede de controle judicial, como indícios de desrespeito à vedação ao retrocesso — sobretudo quando se altera a capacidade do Estado de garantir o mínimo existencial.


Comportamento parlamentar: eleitoreiro, oportunista e tendencioso?

Do ponto de vista ético e político, a estratégia de ampliar emendas parlamentares em detrimento de políticas sociais se insere em um padrão que merece críticas contundentes:


  • Oportunismo eleitoral: em um ano de eleições nacionais, assegurar recursos para emendas que permitem obras localizadas e “visíveis” tende a ser usado como ferramenta de captação de voto, em vez de priorizar políticas universais e estruturantes.
  • Tendência clientelista: a lógica de orçamentos pulverizados em emendas favorece uma relação assistencialista entre representantes e eleitores, em detrimento de políticas públicas de longo prazo.
  • Desconsideração pelos vulneráveis: retirar recursos de quem mais precisa para financiar agendas fragmentadas é uma opção politicamente conveniente, mas socialmente reprovável.


Essa sensação de ruptura entre as necessidades da população e as prioridades do Congresso alimenta um sentimento de profundo descontentamento popular — expresso nas grandes manifestações de 21 de setembro e de 14 de dezembro — que gritavam por um Legislativo mais alinhado com o interesse coletivo. A frase “Congresso Inimigo do Povo”, ainda que hiperbólica, sintetiza a percepção de muitos cidadãos de que a maioria dos congressistas não tem agido em favor da população.


Conclusão: por que o veto é necessário?

Diante do exposto, a sanção pura e simples da LOA com essas emendas seria um grave equívoco. Seria endossar uma política que desloca recursos de programas sociais essenciais para atender clientelismo político e interesses particulares em ano eleitoral.

O veto do Chefe do Executivo às emendas que desfiguram a LOA-2026 não só encontra amparo jurídico quanto responde a um apelo ético e social: priorizar direitos fundamentais, proteger os mais vulneráveis e resgatar uma cultura de políticas públicas que respondam ao interesse coletivo e não às pressões político-eleitorais.


📷: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados.

Justiça transicional: o Brasil em perspectiva comparada com Argentina e Chile



No artigo anterior, analisamos a recente decisão do TRF-1 que determinou a indenização à ex-presidenta Dilma Rousseff pelos atos de tortura e perseguição sofridos durante a ditadura militar brasileira.

A postagem tratou, essencialmente, da importância dessa decisão como reconhecimento histórico e jurídico de que violações de direitos humanos não prescrevem nem podem ser varridas para debaixo do tapete do tempo. Hoje, ampliamos a discussão, comparando a trajetória brasileira com outras experiências latino-americanas — em especial Argentina e Chile — que tiveram caminhos distintos no enfrentamento do legado autoritário.


Brasil: reparação com limitações, justiça penal com lacunas

O Brasil possui mecanismos importantes de memória e reparação, como:


  • Comissão de Anistia e políticas de reconhecimento de vítimas, com milhares de pedidos analisados;
  • Comissão Nacional da Verdade, que documentou casos de tortura, mortes e desaparecimentos;
  • Sentenças judiciais que reconhecem indenizações, como a mencionada no post anterior.


No entanto, em termos de responsabilização criminal de agentes do Estado envolvidos em tortura e outros crimes de lesa-humanidade, o avanço foi limitado. A Lei de Anistia de 1979 continua em vigor e, apesar de ser alvo de debates jurídicos e políticos, ainda resguarda muitos perpetradores de julgamentos formais.

Em termos práticos, isso significa que poucos processos penais relacionados à ditadura avançaram no Brasil, com a grande maioria das iniciativas sendo rejeitadas ou apenas esboçadas, sem condenações substanciais.


Argentina: do Julgamento das Juntas a centenas de condenações

A experiência argentina representa um dos casos mais amplos de justiça transicional no mundo.

O célebre Julgamento das Juntas (Trial of the Juntas), realizado em 1985, foi um dos primeiros grandes processos pós-ditadura, no qual altos comandantes do regime militar foram julgados por homicídios, tortura, sequestros e outros crimes.

Segundo dados consolidados em bases de justiça transicional, até 2020 a Argentina contabilizava cifras expressivas de processos relacionados a violações de direitos humanos:


  • Cerca de 486 processos judiciais domésticos relacionados à repressão estatal;
  • Desses, aproximadamente 1.500 pessoas condenadas por crimes de Estado;
  • Os processos incluem ações contra militares e agentes públicos por homicídios, desaparecimentos forçados, tortura e outros abusos.


Esses números colocam a Argentina entre os países com maior número de julgamentos por crimes contra os direitos humanos no mundo — e marcam uma diferença importante em relação ao Brasil, especialmente no âmbito penal, embora ambos os países tenham tido leis de anistia inicialmente.


Chile: longos processos, condenações e justiça penal contínua

No Chile, a transição democrática também enfrentou leis de anistia e obstáculos iniciais. Porém, o sistema judiciário chileno acabou abrindo caminho para julgamentos e condenações por crimes cometidos durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

Segundo bases de dados institucionais:


  • O Chile tem um dos maiores números de processos domésticos por violações de direitos humanos já registrados:
    • Cerca de 481 acusações domésticas entre agentes do Estado desde 1975;
    • Mais de 2.300 condenações no total, incluindo processos civis e penais.


Embora o caso do próprio Pinochet — preso em 1998 em Londres por violações de direitos humanos sob a jurisdição universal — não tenha resultado em uma condenação formal no Chile, o país seguiu adiante com julgamentos e sentenças contra agentes do regime e expandiu o enfrentamento desses crimes no sistema penal.


Comparação em números


País Julgamentos domésticos por direitos humanos Pessoas condenadas Observações principais
Brasil Poucos (ações penais raras) Praticamente nenhum Lei de Anistia ainda vigente, poucos avanços penais
Argentina ~486 (dados até 2020) ~1.500 Juízes comuns assumiram casos, leis de impunidade revogadas
Chile ~481 (dados até 2020) ~2.300 Altos números de processos e condenações no sistema penal

 

Observação: estes dados compilados refletem as bases disponíveis sobre justiça transicional até 2020, e as comparações servem para destacar diferentes abordagens e avanços concretos no enfrentamento das ditaduras nas três nações.


Por que essa comparação importa?

A comparação entre Brasil, Argentina e Chile não é uma questão de “competição de sofrimento”, nem de hierarquizar violências. Pelo contrário, ela ajuda a iluminar caminhos possíveis — institucionalmente e juridicamente — para lidar com a herança de graves violações de direitos humanos.

Enquanto o Brasil avançou no reconhecimento e em reparações simbólicas e materiais, países vizinhos mostraram que é viável combinar verdade, memória e responsabilização penal, mostrando que a justiça transicional pode ser mais ampla e profunda.

Esse debate não elimina a importância da reparação como reconhecimento histórico e moral, mas alerta que apenas reconhecer sofrimento sem responsabilizar criminalmente quem cometeu atrocidades pode deixar lacunas significativas no projeto de consolidação democrática.


Conclusão

Partindo do post anterior sobre a indenização à ex-presidenta Dilma Rousseff, podemos perceber que o Brasil está em um ponto relevante de reflexão: como tornar mais robusto o enfrentamento institucional de seu passado autoritário?

A experiência de países como Argentina e Chile aponta para a importância de não apenas reconhecer vítimas e reparar danos, como também de enfrentar criminalmente os responsáveis por violações de direitos humanos, a fim de consolidar verdade, justiça e memória democráticas.

Este post não encerra o assunto: ele convida o leitor a continuar a reflexão — e a acompanhar iniciativas, debates e possíveis reformas que ampliem o horizonte da justiça no Brasil e na América Latina.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Justiça reconhece tortura e determina indenização a Dilma Rousseff: um marco histórico e o dever de reparação da sociedade brasileira


Dilma em julho/2025, no Rio de Janeiro


Em 18 de dezembro de 2025, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) decidiu, por unanimidade, que a União deve pagar R$ 400 mil à ex-presidenta Dilma Rousseff por danos morais decorrentes da perseguição, prisão ilegal e tortura sofridas durante a ditadura militar (1964-1985), além de assegurar reparações econômicas mensais relacionadas à perda de renda causada pela perseguição política. 

Os magistrados entenderam que, embora Dilma já tenha sido reconhecida como anistiada política pelo Estado — incluindo indenizações pagas por comissões de anistia estaduais — essa nova decisão judicial decorre de uma responsabilidade civil distinta da União, que ultrapassa os casos locais e reconhece a abrangência nacional das violações sofridas. 

O acórdão reforça ainda que as ações de reparação por violação de direitos humanos na ditadura são imprescritíveis, conforme previsto na jurisprudência brasileira (Súmula 647 do Superior Tribunal de Justiça), pois refletem lesões profundas à dignidade humana que não perdem seu caráter jurídico com o passar do tempo. 


1. Tortura, prisão e repressão: a face brutal da ditadura militar

O regime militar brasileiro (1964-1985) foi marcado por uma repressão sistemática a opositores políticos, incluindo prisões arbitrárias, tortura física e psicológica, censura e restrições de direitos civis básicos. Organizações como a Comissão Nacional da Verdade documentaram centenas de casos de abuso estatal, embora muitos ainda aguardem reconhecimento formal e justiça plena. 

No caso de Dilma Rousseff, os relatos reunidos nos autos e em comissões oficiais descrevem episódios de tortura física e psicológica, incluindo choques elétricos, pau-de-arara, afogamento simulado, isolamento e ameaças de morte, que deixaram sequelas permanentes e representam violações graves de direitos fundamentais. 


2. A indenização como ato de reconhecimento e memória

Embora nenhum valor financeiro possa reconstituir a dignidade de quem foi torturado e preso injustamente, a decisão judicial tem importância muito maior do que a cifra em si. Essa sentença:


- Reconhece legalmente a gravidade das violações cometidas pelo Estado e reafirma que a tortura e a repressão política não podem ser relativizadas ou esquecidas. 

- Marca um gesto de responsabilidade institucional e histórica, ao reconhecer que políticas de violência estatal deixaram feridas duradouras nas vidas de cidadãos e cidadãs.

- Contribui para a preservação da memória democrática, ao afirmar que o Estado não renega, mas assume a sua história, inclusive seus episódios mais sombrios.


3. O processo de anistia e verdade no Brasil

Desde o fim da ditadura, o Brasil tem trilhado um caminho complexo de enfrentamento de seu passado:


Comissão de Anistia

Instituída em 2001, a Comissão de Anistia tem papel central no reconhecimento formal de pessoas que sofreram perseguições políticas durante o regime e na concessão de reparações. Em maio de 2025, a própria Comissão reconheceu por unanimidade Dilma Rousseff como anistiada política, concedendo-lhe indenização e um pedido de desculpas formal em nome do Estado. 


Comissão Nacional da Verdade

Criada em 2012, a Comissão Nacional da Verdade teve por missão investigar as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 e documentar casos de tortura, mortes e desaparecimentos forçados. Seu trabalho foi um marco para a reconstrução da memória histórica e para a legitimação de reivindicações de reparação. 


Limitações e desafios

Diferentemente de países vizinhos como Argentina e Chile — que realizaram processos de justiça transicional com julgamentos de perpetradores e comissões amplas de verdade —, o Brasil manteve uma lei de anistia que acabou protegendo muitos agentes do regime, gerando debates contínuos sobre a necessidade de responsabilização criminal e reformas institucionais. 


4. Por que a reparação importa além do valor econômico?

A decisão judicial, e iniciativas similares como a indenização à família de Vladimir Herzog ou pedidos de desculpas oficiais do Estado, são passos para:


- Dar voz às vítimas e à sua experiência histórica, superando décadas de silêncio e invisibilização. 

- Fortalecer a cultura de direitos humanos no Brasil, servindo de base para a educação pública, políticas culturais e debates democráticos.

- Promover a consciência histórica na sociedade, especialmente entre jovens e futuras gerações, para que os erros e abusos do passado não se repitam.


5. Conclusão: reparação, memória e democracia

A determinação de que a União deve pagar R$ 400 mil a Dilma Rousseff por tortura sofrida na ditadura é mais do que uma vitória jurídica isolada: é um ato de reconhecimento da dignidade humana, um registro oficial de que a violência política deixou marcas inapagáveis e um convite ao país para enfrentar sua própria história com coragem e responsabilidade.

O Estado brasileiro tem, sim, o dever histórico de compensar as vítimas da ditadura militar, mesmo sabendo que tortura, prisões políticas injustas e mortes são irreparáveis na sua totalidade. Ao fazer isso, fortalece a democracia e reafirma valores que são a antítese do autoritarismo: respeito aos direitos humanos, transparência histórica e compromisso com a verdade.


📷: Créditos de imagem atribuídos a Fernando Frazão/Agência Brasil

O Nobel da Paz, María Corina Machado e os limites da oposição venezuelana



A recente notícia de que Julian Assange apresentou uma queixa criminal contra a Fundação Nobel — contestando a concessão do Prêmio Nobel da Paz 2025 à venezuelana María Corina Machado — reacendeu um debate que ultrapassa a esfera jurídica e atinge o cerne da política internacional e do próprio sentido de “paz”. 

Assange alega que a decisão transformou o prêmio em “instrumento de guerra”, e que poderia haver apropriação indevida de fundos, além de facilitação de crimes graves ao abrigo da lei sueca. Essa denúncia, disponibilizada publicamente, contém uma série de acusações contundentes que ainda não foram analisadas por um tribunal — e, em termos jurídicos, é altamente improvável que prosperem. No entanto, ela indica o nível de rejeição que a escolha de Machado gerou em alguns setores internacionais.

Ao lado dessa controvérsia institucional, abre-se uma reflexão mais ampla: o Nobel da Paz foi entregue a alguém cujas posições políticas conflitam com práticas de pacificação genuínas? E, sob essa perspectiva, quem realmente representa a oposição democrática na Venezuela, sobretudo entre aqueles que rejeitam intervenções externas?


Ditadura de Maduro: condenável, mas sem solução externa simplista

Não é possível — nem sensato — relativizar os efeitos devastadores do governo de Nicolás Maduro: repressão política, colapso institucional, erosão dos direitos civis e um desastre humanitário que produziu milhões de migrantes. Essas atrocidades precisam ser, e são, condenadas.

Contudo, isso não autoriza automaticamente que qualquer líder anti-Maduro seja elevada ao status de iconografia universal de “paz”, tampouco que se adote uma oposição que dependa de alianças com potências estrangeiras cujo histórico de interferências na América Latina já teve consequências traumáticas.


O equívoco da escolha de María Corina Machado

A escolha de Machado pelo Nobel da Paz torna-se problemática porque sua trajetória política inclui apoio explícito a sanções, pressões e estratégias externas que podem agravar conflitos internos, em vez de promover soluções pacíficas e negociadas. Embora o Comitê Nobel tenha critérios amplos e políticos, transformar esse reconhecimento em símbolo de paz quando a laureada advoga medidas que se confundem com lógica de confrontação internacional distorce o significado histórico do prêmio.

Mais ainda, a narrativa de que “a oposição venezuelana é definida por María Corina” reduz um espectro político vasto e plural a uma figura que, ao defender alinhamentos externos de confrontação, afasta muitos venezuelanos que aspiram à democracia sem subordinação a potências estrangeiras.


Uma oposição plural existe — e não se resume a Machado

É importante reconhecer que a oposição venezuelana não é homogênea e nem se limita a uma liderança. Existem setores que criticam tanto o autoritarismo de Maduro quanto recusam intervenções externas ou sanções que penalizam a população trabalhadora.

Um exemplo desse outro olhar é Suhey Ochoa, ativista feminista ligada ao coletivo Pan y Rosas Venezuela e à Liga de Trabalhadores pelo Socialismo (LTS). Ochoa tem atuado em:


  • movimentos por direitos das mulheres, incluindo a despenalização do aborto;
  • protestos por políticas públicas que atendam à população marginalizada;
  • críticas tanto ao governo venezuelano quanto à oposição tradicional que desconsidera demandas sociais fundamentais.


Ela representa um segmento de oposição que não se alinha a intervenções externas e que busca uma reconstrução democrática que parta das demandas populares, sobretudo das mulheres, estudantes e trabalhadores. Essa pluralidade de vozes, embora menos amplificada internacionalmente, é essencial para uma oposição venezuelana legítima e sustentável.


A ação de Assange: reflexão política mais do que eficácia jurídica

A denúncia de Assange contra a Fundação Nobel, embora fascinante como objeto de debate, não altera juridicamente a outorga do prêmio, que é institucionalmente irreversível. O Nobel da Paz não pode ser revogado após a sua concessão, independentemente de contestações políticas ou críticas públicas. Entretanto, a própria articulação da denúncia — com acusações de apropriação indevida, violação de confiança e facilitação de crimes graves — reflete o desconforto e a resistência que a escolha de Machado provocou, não apenas entre apoiadores de Maduro, mas também em amplos setores da sociedade civil internacional.

Importante ressaltar que a denúncia contém alegações que não foram validadas em juízo e que, em muitos casos, embutem pressupostos políticos controversos. Do ponto de vista jurídico, ela enfrenta obstáculos significativos: a escolha do Nobel é uma decisão institucional soberana dos comitês envolvidos, e vincular essa escolha a crimes de guerra ou crimes contra a humanidade exige provas e correlações factuais que — no atual estágio — não foram demonstradas em instância jurisdicional.


Conclusão: equilíbrio entre crítica e contexto

A decisão de conceder o Nobel da Paz a María Corina Machado deve ser vista como um equívoco político e simbólico, e não apenas um ato infeliz ou mero detalhe de cobertura jornalística. Ela desloca o sentido do prêmio de um reconhecimento de práticas pacíficas para um palco geopolítico de alta tensão, reduzindo a complexidade política venezuelana e diluindo vozes democráticas alternativas que rejeitam tanto a ditadura quanto intervenções externas.

Condenar o autoritarismo de Maduro é uma posição necessária e justa.
Mas associar a paz à lógica de pressões e conflitos entre potências estrangeiras é perigoso e contraproducente. A paz duradoura na Venezuela só poderá emergir de um processo que:


  • valorize vozes internas variadas,
  • fortaleça a sociedade civil,
  • respeite os direitos humanos,
  • e promova soluções políticas e sociais sustentáveis — sem subordinar a soberania nacional a agendas externas.


🔗 Para acesso à denúncia completa apresentada por Julian Assange:

📎 https://file.wikileaks.org/files/2025/machado29-dist.pdf