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sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

O Nobel da Paz, María Corina Machado e os limites da oposição venezuelana



A recente notícia de que Julian Assange apresentou uma queixa criminal contra a Fundação Nobel — contestando a concessão do Prêmio Nobel da Paz 2025 à venezuelana María Corina Machado — reacendeu um debate que ultrapassa a esfera jurídica e atinge o cerne da política internacional e do próprio sentido de “paz”. 

Assange alega que a decisão transformou o prêmio em “instrumento de guerra”, e que poderia haver apropriação indevida de fundos, além de facilitação de crimes graves ao abrigo da lei sueca. Essa denúncia, disponibilizada publicamente, contém uma série de acusações contundentes que ainda não foram analisadas por um tribunal — e, em termos jurídicos, é altamente improvável que prosperem. No entanto, ela indica o nível de rejeição que a escolha de Machado gerou em alguns setores internacionais.

Ao lado dessa controvérsia institucional, abre-se uma reflexão mais ampla: o Nobel da Paz foi entregue a alguém cujas posições políticas conflitam com práticas de pacificação genuínas? E, sob essa perspectiva, quem realmente representa a oposição democrática na Venezuela, sobretudo entre aqueles que rejeitam intervenções externas?


Ditadura de Maduro: condenável, mas sem solução externa simplista

Não é possível — nem sensato — relativizar os efeitos devastadores do governo de Nicolás Maduro: repressão política, colapso institucional, erosão dos direitos civis e um desastre humanitário que produziu milhões de migrantes. Essas atrocidades precisam ser, e são, condenadas.

Contudo, isso não autoriza automaticamente que qualquer líder anti-Maduro seja elevada ao status de iconografia universal de “paz”, tampouco que se adote uma oposição que dependa de alianças com potências estrangeiras cujo histórico de interferências na América Latina já teve consequências traumáticas.


O equívoco da escolha de María Corina Machado

A escolha de Machado pelo Nobel da Paz torna-se problemática porque sua trajetória política inclui apoio explícito a sanções, pressões e estratégias externas que podem agravar conflitos internos, em vez de promover soluções pacíficas e negociadas. Embora o Comitê Nobel tenha critérios amplos e políticos, transformar esse reconhecimento em símbolo de paz quando a laureada advoga medidas que se confundem com lógica de confrontação internacional distorce o significado histórico do prêmio.

Mais ainda, a narrativa de que “a oposição venezuelana é definida por María Corina” reduz um espectro político vasto e plural a uma figura que, ao defender alinhamentos externos de confrontação, afasta muitos venezuelanos que aspiram à democracia sem subordinação a potências estrangeiras.


Uma oposição plural existe — e não se resume a Machado

É importante reconhecer que a oposição venezuelana não é homogênea e nem se limita a uma liderança. Existem setores que criticam tanto o autoritarismo de Maduro quanto recusam intervenções externas ou sanções que penalizam a população trabalhadora.

Um exemplo desse outro olhar é Suhey Ochoa, ativista feminista ligada ao coletivo Pan y Rosas Venezuela e à Liga de Trabalhadores pelo Socialismo (LTS). Ochoa tem atuado em:


  • movimentos por direitos das mulheres, incluindo a despenalização do aborto;
  • protestos por políticas públicas que atendam à população marginalizada;
  • críticas tanto ao governo venezuelano quanto à oposição tradicional que desconsidera demandas sociais fundamentais.


Ela representa um segmento de oposição que não se alinha a intervenções externas e que busca uma reconstrução democrática que parta das demandas populares, sobretudo das mulheres, estudantes e trabalhadores. Essa pluralidade de vozes, embora menos amplificada internacionalmente, é essencial para uma oposição venezuelana legítima e sustentável.


A ação de Assange: reflexão política mais do que eficácia jurídica

A denúncia de Assange contra a Fundação Nobel, embora fascinante como objeto de debate, não altera juridicamente a outorga do prêmio, que é institucionalmente irreversível. O Nobel da Paz não pode ser revogado após a sua concessão, independentemente de contestações políticas ou críticas públicas. Entretanto, a própria articulação da denúncia — com acusações de apropriação indevida, violação de confiança e facilitação de crimes graves — reflete o desconforto e a resistência que a escolha de Machado provocou, não apenas entre apoiadores de Maduro, mas também em amplos setores da sociedade civil internacional.

Importante ressaltar que a denúncia contém alegações que não foram validadas em juízo e que, em muitos casos, embutem pressupostos políticos controversos. Do ponto de vista jurídico, ela enfrenta obstáculos significativos: a escolha do Nobel é uma decisão institucional soberana dos comitês envolvidos, e vincular essa escolha a crimes de guerra ou crimes contra a humanidade exige provas e correlações factuais que — no atual estágio — não foram demonstradas em instância jurisdicional.


Conclusão: equilíbrio entre crítica e contexto

A decisão de conceder o Nobel da Paz a María Corina Machado deve ser vista como um equívoco político e simbólico, e não apenas um ato infeliz ou mero detalhe de cobertura jornalística. Ela desloca o sentido do prêmio de um reconhecimento de práticas pacíficas para um palco geopolítico de alta tensão, reduzindo a complexidade política venezuelana e diluindo vozes democráticas alternativas que rejeitam tanto a ditadura quanto intervenções externas.

Condenar o autoritarismo de Maduro é uma posição necessária e justa.
Mas associar a paz à lógica de pressões e conflitos entre potências estrangeiras é perigoso e contraproducente. A paz duradoura na Venezuela só poderá emergir de um processo que:


  • valorize vozes internas variadas,
  • fortaleça a sociedade civil,
  • respeite os direitos humanos,
  • e promova soluções políticas e sociais sustentáveis — sem subordinar a soberania nacional a agendas externas.


🔗 Para acesso à denúncia completa apresentada por Julian Assange:

📎 https://file.wikileaks.org/files/2025/machado29-dist.pdf

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Alta hospitalar sem caminho de volta: a face invisível da exclusão no SUS



No Brasil, milhares de pessoas idosas, acamadas, com mobilidade reduzida ou em situação de extrema vulnerabilidade enfrentam um drama silencioso após sobreviverem a uma emergência médica: a alta hospitalar sem qualquer garantia de retorno seguro para casa.

O atendimento de urgência acontece, a vida é preservada — mas, ao final, o Estado muitas vezes se retira. O paciente recebe alta e, sem condições físicas, financeiras ou familiares, é simplesmente deixado à própria sorte.

Essa realidade expõe uma das maiores contradições do sistema de saúde brasileiro: salvar não basta; é preciso cuidar até o fim do ciclo assistencial.


Alta hospitalar não encerra o dever do Estado

A Constituição Federal é clara ao afirmar que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196). Esse dever não se limita ao momento do socorro, da internação ou do procedimento médico.

No âmbito do SUS, a atenção à saúde deve ser:


  • integral,
  • contínua,
  • universal,
  • igualitária,
  • e orientada pela dignidade da pessoa humana.


A alta hospitalar, portanto, não pode ser tratada como um “ponto final administrativo”, mas como uma etapa do cuidado, que exige condições mínimas de segurança, especialmente quando o paciente:


  • não anda,
  • não se comunica adequadamente,
  • depende de terceiros,
  • ou não tem recursos para custear transporte especializado.


Negar esse suporte, em muitos casos, equivale a interromper o tratamento por vias indiretas.


Transporte sanitário não é luxo: é instrumento de acesso à saúde

O SUS reconhece o transporte sanitário como parte da rede de atenção. Embora ambulâncias sejam prioritariamente destinadas a urgências, não existe vedação absoluta ao seu uso para transporte assistido, desde que:


  • haja indicação clínica,
  • não se comprometa o atendimento emergencial,
  • e o paciente não tenha meios próprios de deslocamento.


O problema não é a ausência de recursos, mas a ausência de políticas públicas claras.

Quando o Estado se omite, transfere o ônus ao paciente pobre, idoso ou fragilizado — justamente quem mais depende da proteção pública.


O que dizem os tribunais: o Judiciário tende a proteger o paciente

O Poder Judiciário brasileiro, de modo geral, interpreta o direito à saúde de forma ampliada, sobretudo quando estão em jogo:


  • pessoas idosas,
  • pessoas com deficiência,
  • pacientes acamados,
  • famílias em situação de vulnerabilidade social.


As decisões costumam se apoiar em três pilares:


  1. Dignidade da pessoa humana;
  2. Integralidade da atenção à saúde;
  3. Proibição de proteção insuficiente por parte do Estado.


Em ações judiciais, é comum o entendimento de que o dever estatal não se esgota no atendimento hospitalar, podendo incluir:


  • fornecimento de transporte assistido,
  • encaminhamento à atenção domiciliar,
  • ou adoção de medidas que viabilizem a continuidade do cuidado.


Minas Gerais e Rio de Janeiro: avanços e limites

🔹 Minas Gerais

Minas avançou ao inserir, em sua Constituição Estadual, a previsão de transporte sanitário eletivo intermunicipal para pacientes do SUS.
Embora a norma não trate expressamente do retorno domiciliar dentro do mesmo município, ela reforça um princípio importante: o deslocamento pode ser parte do tratamento, e não um problema privado do paciente.

Na prática, o cumprimento ainda é desigual, e muitos casos só se resolvem com:


  • judicialização,
  • atuação do Ministério Público,
  • ou pressão dos Conselhos de Saúde.


🔹 Estado do Rio de Janeiro

Aqui no Rio, não há uma norma estadual geral que assegure o transporte domiciliar pós-alta. O que existe é:


  • forte dependência da organização municipal;
  • judicialização recorrente em casos concretos;
  • e decisões judiciais que reconhecem o direito quando comprovada a incapacidade do paciente e a omissão do poder público.


Alguns municípios brasileiros — inclusive fora desses estados — se destacam por leis locais ou programas de transporte sanitário e atenção domiciliar, que funcionam como boas práticas e demonstram que o problema é menos jurídico e mais político-administrativo.


Por que é urgente regulamentar esse direito?

A ausência de leis, portarias e protocolos claros gera:


  • decisões arbitrárias,
  • desigualdade entre municípios,
  • sofrimento evitável,
  • e sobrecarga das famílias.


É fundamental que União, estados e municípios:


  • aprovem leis e atos administrativos específicos;
  • estabeleçam critérios objetivos;
  • garantam alternativas reais para pacientes vulneráveis;
  • e deem transparência às decisões.


Sem isso, o direito à saúde permanece formal, mas incompleto.


O que fazer quando o serviço é negado?

Pacientes e familiares não estão desamparados. Diante da ausência de transporte ou assistência após a alta, é possível:


  1. Solicitar explicações formais à Secretaria de Saúde (Lei de Acesso à Informação);
  2. Registrar demanda na Ouvidoria do SUS;
  3. Procurar o Conselho Municipal de Saúde, que exerce controle social;
  4. Buscar a Defensoria Pública, especialmente em casos de vulnerabilidade;
  5. Acionar o Ministério Público, quando houver omissão sistemática;
  6. Reunir documentos médicos que comprovem a incapacidade de locomoção.


A mobilização institucional é muitas vezes o que transforma um problema invisível em política pública.


Cuidar até o fim é dever do Estado!

Uma sociedade que salva vidas, mas abandona pessoas na porta do hospital, falha em sua missão constitucional.

Garantir que um paciente volte para casa com dignidade não é favor, nem privilégio.
É consequência lógica do direito à saúde, da solidariedade social e do compromisso civilizatório inscrito na Constituição.

O SUS só cumpre seu papel quando ninguém fica para trás — nem mesmo depois da alta.


📝Nota sobre a Portaria nº 2.436/2017 (PNAB)

A Portaria nº 2.436/2017, do Ministério da Saúde, aprovou a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e estabeleceu as diretrizes para a organização da Atenção Básica na Rede de Atenção à Saúde (RAS) do SUS. O ato normativo reafirma a Atenção Básica como porta de entrada preferencial do sistema, bem como ordenadora do cuidado e coordenadora da atenção integral e contínua aos usuários.

A PNAB atribui aos Municípios responsabilidades centrais na gestão do cuidado, incluindo a organização dos fluxos de referência e contrarreferência, o gerenciamento responsável dos encaminhamentos e o fortalecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF) como eixo prioritário do modelo assistencial. Nesse contexto, cabe ao ente municipal articular os diferentes pontos da rede — serviços ambulatoriais, hospitalares e de atenção domiciliar — assegurando integralidade, longitudinalidade e vínculo com o paciente.

Embora a Portaria não trate de forma expressa do transporte pós-alta hospitalar, ela reforça o dever de continuidade assistencial, especialmente por meio da Atenção Domiciliar, prevista em normas complementares como a Portaria nº 963/2013. Tal diretriz impõe a necessidade de articulação intersetorial e intra-rede para evitar rupturas no cuidado de pessoas em situação de vulnerabilidade, como idosos, acamados ou pacientes com mobilidade reduzida.

Assim, a PNAB fornece base normativa relevante para a responsabilização do poder público em casos de falhas na alta hospitalar, inclusive em demandas judiciais, ao concretizar o princípio da integralidade da atenção à saúde, previsto no art. 198 da Constituição Federal de 1988.

Blindar o púlpito não blinda o racismo



A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou recentemente parecer que altera a Lei nº 7.716/1989, a chamada "Lei do Racismo", introduzindo uma exceção para manifestações realizadas em contextos religiosos. Pelo texto aprovado, sermões, pregações, orientações religiosas e manifestações de crença proferidas em cultos ou cerimônias — inclusive quando transmitidas por meios de comunicação — deixariam de ser alcançadas pela tipificação penal do racismo.

O parecer, de autoria do deputado Pastor Marco Feliciano, foi apresentado no bojo de um projeto que originalmente tratava do aumento de pena para o crime de ultraje a culto. A ampliação temática promovida pelo substitutivo, contudo, deslocou o centro do debate para um ponto muito mais sensível: a tentativa de criar uma zona de exclusão penal justamente em uma das áreas mais protegidas pela Constituição brasileira — o combate ao racismo.

Não se trata aqui de negar a centralidade da liberdade religiosa em um Estado Democrático de Direito. Trata-se de afirmar que essa liberdade, como todas as demais, encontra limites constitucionais claros quando colide com a dignidade da pessoa humana, com a igualdade e com a vedação absoluta à discriminação.

A Constituição de 1988 não foi neutra em relação ao racismo. Ao contrário, conferiu-lhe um estatuto jurídico singular: crime imprescritível e inafiançável, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, XLII). Essa qualificação não é retórica. Ela traduz a compreensão de que o racismo não é apenas uma ofensa individual, mas uma violência estrutural que corrói os fundamentos da República.

É precisamente por isso que a iniciativa aprovada na CCJ suscita grave inconstitucionalidade. Ao excluir previamente do alcance da lei penal determinadas manifestações em razão do local, do contexto ou da identidade do emissor, o legislador não está apenas regulamentando a liberdade religiosa — está esvaziando o núcleo de proteção constitucional contra o racismo.

O Supremo Tribunal Federal já enfrentou, em diversas ocasiões, a tensão entre liberdade de expressão, liberdade religiosa e proteção contra discursos de ódio. Nos julgamentos da ADO 26 e do MI 4733, a Corte foi categórica ao afirmar que a liberdade religiosa não se confunde com licença para discriminar, desumanizar ou incitar o preconceito. O que se protege é a crença, não a violência simbólica travestida de doutrina.

Caso o projeto venha a ser convertido em lei, é altamente improvável que o STF aceite sua aplicação literal. A experiência constitucional brasileira mostra que imunidades amplas e abstratas tendem a ser submetidas a um severo controle de constitucionalidade. O caminho mais provável será o da interpretação conforme a Constituição, restringindo a exceção apenas a manifestações estritamente doutrinárias, sem qualquer conteúdo discriminatório ou desumanizante.

Outra possibilidade concreta é a declaração de inconstitucionalidade parcial do dispositivo, por violação direta aos arts. 1º, III; 3º, IV; 5º, caput; 5º, XLI e, sobretudo, ao art. 5º, XLII, da Constituição. Ao retirar do Judiciário a possibilidade de avaliar, caso a caso, quando uma fala religiosa ultrapassa o campo da fé e ingressa no discurso de ódio, o legislador invade uma esfera que a Constituição reservou à jurisdição constitucional.

Não é juridicamente sustentável a ideia de que o púlpito possa funcionar como um espaço normativo imune à Constituição. Racismo não se transmuta em algo juridicamente aceitável por ser proclamado em nome de Deus. A dignidade humana não se relativiza diante do altar, nem a igualdade se curva ao microfone do templo.

Em última análise, a tentativa de blindar manifestações religiosas contra a Lei do Racismo não fortalece a liberdade de crença. Ao contrário, fragiliza-a, ao associá-la institucionalmente à discriminação e ao preconceito. O Supremo Tribunal Federal, se chamado a se pronunciar, terá diante de si uma escolha que a própria Constituição já fez em 1988: não há fé, ideologia ou discurso que possa se sobrepor ao compromisso inegociável da República com a dignidade humana.

Blindar o púlpito não blinda o racismo. E, no constitucionalismo brasileiro, não há exceção legítima para a negação da humanidade do outro.


📷: Bruno Spada/Câmara dos Deputados.

PL da Dosimetria diante da possibilidade de uma anulação pelo STF



A recente aprovação no Senado do Projeto de Lei n.° 2.162/2023, o "PL da Dosimetria", tem gerado grande polêmica, não apenas pelo conteúdo das alterações penais que propõe, mas, principalmente, pela forma como tramita no Congresso Nacional. Apesar do clamor midiático sobre o impacto da lei nas penas criminais, há um ponto jurídico crucial que deve ser imediatamente analisado: o suposto vício formal grave na tramitação do projeto.


1. O que é o "PL da Dosimetria"?

O projeto, que altera regras sobre a fixação de penas (dosimetria) e critérios de progressão penal, passou por mudanças significativas no Senado, algumas das quais modificam substancialmente o texto aprovado originalmente pela Câmara. Essa diferença entre o texto de origem e o texto votado pelos senadores é o cerne do problema jurídico.

Esse projeto fora originalmente apresentado na Câmara dos Deputados e ganhou destaque porque altera regras sobre a dosimetria da pena e progressão de regime, com impacto direto nas penas de condenados por crimes contra o Estado Democrático de Direito, como os relacionados aos atos de 8 de janeiro de 2023. 

Após ser aprovada pela Câmara no início de dezembro de 2025, a proposição seguiu para o Senado Federal, onde passou por votação e foi aprovado em plenário em 17 de dezembro de 2025. 


2. O debate sobre suposto vício formal grave: por que alegam que ele compromete a validade do PL?

O vício formal grave ocorre quando o processo legislativo não respeita as etapas constitucionais previstas nos arts. 59 e 61 da Constituição Federal. No caso do PL da Dosimetria:


  • As mudanças substanciais promovidas no Senado, sob certo ponto de vista, exigiriam novo exame e votação pela Câmara, em conformidade com o princípio do bicameralismo.
  • Ignorar essa exigência pode, em tese, comprometer a legalidade do processo e gera uma nulidade formal. Ou seja, o projeto, na forma aprovada, poderia não ser considerado juridicamente válido.


Ocorre que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem jurisprudência consolidada em casos de vício formal: leis aprovadas com desrespeito às etapas constitucionais podem ser anuladas, independentemente do mérito do conteúdo.


3. Fundamentos que podem ser analisados pelo STF

Além do suposto vício formal, outros fundamentos jurídicos poderiam ser levantados:


  1. Suposta violação do devido processo legislativo: alterações no texto sem retorno à casa de origem, em tese comprometeriam a validade da deliberação.
  2. Suposta violação de cláusulas pétreas: caso o projeto, direta ou indiretamente, reduza penas de crimes contra o Estado Democrático de Direito, poderia ser questionado como inconstitucional material.
  3. Ausência de legitimidade ou competência: se a tramitação ignorou etapas essenciais, existe o levantamento da tese de que a Câmara foi privada do direito de nova deliberação sobre as mudanças.


No entanto, um argumento mais sólido e de possível acolhimento imediato pelo STF seria o vício formal, pois ele não envolve juízo de valor sobre o conteúdo, apenas a observância das regras constitucionais de tramitação.


4. Probabilidade de acolhimento pelo STF


  • Suspensão liminar: bastante provável, considerando a tese do vício formal, por envolver risco de efeitos imediatos sobre a legislação penal.
  • Anulação total: também provável, desde que fique demonstrado que as mudanças no Senado são substanciais e alteram o mérito da matéria.
  • Fixação de parâmetros sem anular: talvez o menos provável no caso do vício formal, pois o STF pode exigir que o processo legislativo seja retomado para garantir legalidade e segurança jurídica.


5. Por que a tramitação deve ser suspensa imediatamente?

Na minha opinião, a manutenção do projeto na pauta sem correção do vício formal pode gerar insegurança jurídica, afetando julgamentos, progressões de pena e políticas criminais. Por isso, entendi ser essencial que o STF conceda liminarmente a suspensão do PL, até que a Câmara possa analisar e deliberar sobre as alterações feitas no Senado.


Conclusão

O PL da Dosimetria, na forma aprovada no Senado, em tese apresentaria um vício formal grave capaz de justificar um pedido de anulação ou, ao menos, a suspensão liminar da tramitação

A Constituição não admite que mudanças significativas em um projeto de lei sejam aprovadas sem novo exame da casa de origem, sob pena de nulidade. 

Caso entenda que o Senado fez mudanças significativas na proposição, o STF, ao analisar a questão, tem forte fundamento jurídico para proteger o devido processo legislativo e garantir que qualquer alteração nas penas criminais seja fruto de trâmite correto, transparente e constitucionalmente válido.


Li o seu texto publicado no Blog do Rodrigo Luz sobre o PL da Dosimetria e a hipótese de anulação pelo STF por vício formal. Aqui vai uma nota explicativa clara e juridicamente fundamentada que você pode acrescentar ao final do seu post para atualizar o leitor sobre o estágio atual da tramitação e reforçar os pontos relevantes — especialmente considerando o momento imediato da aprovação no Senado e o envio para sanção:


📝 Nota Explicativa (Acréscimo posterior ao texto)

Desde a redação original deste texto, o PL 2.162/2023 (PL da Dosimetria) foi aprovado também pelo Senado Federal, por 48 votos a 25, e o texto final segue agora para sanção presidencial. 

Isso significa o seguinte do ponto de vista do processo legislativo:

1. O Projeto ainda não é lei: a proposição, embora aprovada nas duas casas, ainda não foi sancionada nem publicada na forma de lei. Até que ocorra a sanção (ou eventual veto e deliberação sobre veto), não há norma jurídica vigente com esse conteúdo.

2. Controle de constitucionalidade ainda não é possível de forma concentrada: ações como ADI/ADC só podem ser ajuizadas após a lei existir formalmente — ou seja, após sanção e publicação.

3. Permanece relevante a tese de vício formal: como destacado no corpo do texto, a alegação de vício formal grave na tramitação (por alterações substanciais feitas no Senado sem retorno à Câmara) continua sendo a via processual mais adequada para questionar a validade da futura lei antes mesmo de ela entrar em vigor.

4. STF pode atuar precocemente por meio incidental: ainda que não caiba controle concentrado, eventuais questões sobre vício formal podem surgir incidentalmente em processos judiciais (por exemplo, em habeas ou ações penais que discutam a aplicação da lei depois de sancionada).

5. Sentido político-jurídico: a aprovação no Senado coloca a matéria no patamar de decisão executiva (sanção/veto) e política legislativa consolidada, mas não antecipa validade jurídica se mantidos vícios formais no processo.

Assim, enquanto a lei não estiver sancionada e publicada, não há objeto para controle concentrado, mas a análise de vício formal na tramitação continua sendo uma linha jurídica legítima e potencialmente susceptível de acolhimento pelo STF, inclusive em sede de controle incidental.


📷: Jefferson Rudy / Agência Senado.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Entre a memória democrática e a necessidade de decisão: notas sobre o debate do terceiro mandato e o papel das instituições



O tempo, no Direito Eleitoral, não é apenas uma contagem de dias ou meses. Ele influencia a confiança das pessoas nas instituições, ajuda a criar estabilidade política e, quando se prolonga excessivamente, pode gerar dúvidas e insegurança. Por isso, revisitar a história de um processo importante não significa reabrir disputas, mas ajudar a sociedade a compreender o que está em jogo e quais valores constitucionais motivaram aquele debate.

No caso de Itaguaí, ainda nas eleições de 2024, já existia uma Ação de Impugnação de Registro de Candidatura (AIRC) proposta por pessoas e instituições que a lei expressamente autoriza a ajuizar esse tipo de ação. Em paralelo a isso, atuei como advogado e cidadão, apresentando uma notícia de inelegibilidade — que é um instrumento diferente da AIRC.

Esse esclarecimento é importante. A notícia de inelegibilidade é um direito de qualquer cidadão. Ela não é uma ação judicial, nem substitui o papel das partes legitimadas. Trata-se de um meio pelo qual o cidadão pode informar a Justiça Eleitoral sobre fatos ou situações que, em tese, podem contrariar as regras constitucionais e legais sobre quem pode ou não concorrer a um cargo eletivo. Ao fazer isso, o cidadão colabora com o funcionamento do sistema democrático, sem assumir protagonismo no processo.

Foi exatamente nesse espírito que apresentei a notícia de inelegibilidade: não para iniciar o processo, mas para acrescentar argumentos e reflexões jurídicas a um debate que já estava em curso, sempre dentro das regras do devido processo legal e do respeito às instituições.

Desde o início, o ponto central da discussão foi a possibilidade — ou não — de um terceiro mandato consecutivo. Mais do que uma questão formal sobre reeleição, o debate envolve um princípio essencial da República: a alternância de poder. A Constituição não busca apenas evitar repetições automáticas de mandatos no papel; ela pretende impedir que o poder político se concentre por tempo excessivo nas mesmas mãos, especialmente quando afastamentos, reconduções ou arranjos institucionais acabam produzindo continuidade prática sob aparência de mudança.

Esses argumentos foram expostos publicamente em textos anteriores neste blogue e também apresentados de forma técnica nos autos do processo. A ideia central sempre foi simples: a alternância de poder precisa ser real, e não apenas formal. Quando exceções se tornam permanentes, corre-se o risco de esvaziar o sentido republicano das regras eleitorais.

Com o andamento do caso, a discussão superou a primeira instância e chegou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Atualmente, o processo encontra-se no TSE, já analisado pelas instâncias anteriores, com manifestações das partes legitimadas e do Ministério Público Eleitoral, e com os recursos cabíveis apresentados. Do ponto de vista processual, trata-se de um processo maduro, que aguarda uma decisão definitiva sobre o mérito.

É natural que, durante esse percurso, surjam referências a decisões posteriores do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre temas relacionados, como reeleição, continuidade administrativa e limites temporais do exercício do poder. Essas decisões são relevantes e merecem respeito, pois ajudam a orientar a interpretação da Constituição.

No entanto, decisões judiciais não se aplicam automaticamente a todos os casos. Cada situação precisa ser analisada à luz de sua realidade concreta. No caso de Itaguaí, não se discute apenas uma reeleição comum, mas uma trajetória específica de exercício do poder político, marcada por afastamentos e reconduções, que levanta dúvidas legítimas sobre a preservação efetiva da alternância de poder.

Em termos simples: não basta olhar apenas para a regra geral; é preciso examinar como ela se aplica à história concreta do caso. Generalizações não substituem a análise cuidadosa das circunstâncias reais.

Passado um tempo significativo desde o início da AIRC, o que se espera — independentemente de qual venha a ser o resultado — é uma decisão clara, bem fundamentada e compreensível para a sociedade. A previsibilidade democrática não significa escolher um lado, mas garantir que as decisões sejam tomadas com transparência, coerência e respeito aos princípios republicanos.

Este texto não tem o objetivo de pressionar tribunais nem antecipar conclusões. Ele busca, sobretudo, registrar a memória democrática de um processo que vai além de interesses individuais e reafirmar que a participação cidadã, quando exercida de forma responsável e dentro da legalidade, é parte essencial do Estado de Direito.

Quando o TSE proferir sua decisão, ela não resolverá apenas um caso específico. Ela também contribuirá para definir como a alternância de poder será compreendida e aplicada nos municípios brasileiros. É por isso que o tempo importa — e que a memória institucional, longe de ser um incômodo, é um elemento necessário para a democracia.

Quando a ruptura fala mais alto que a frase: advocacia, magistratura e a urgência do diálogo institucional



A frase atribuída a uma magistrada — “que se dane a OAB” — durante uma sessão de julgamento provocou forte reação corporativa, ampla repercussão midiática e pedidos de providências institucionais. 

O episódio, embora grave, não pode ser analisado apenas como um desvio individual de conduta ou um momento de destempero verbal. Ele exige uma leitura mais profunda, capaz de situá-lo no contexto de uma relação institucional cada vez mais tensionada entre magistratura e advocacia no Brasil.

Reduzir o caso a um embate personalista ou a uma disputa entre corporações seria um erro analítico. O que se revela ali é algo mais complexo: uma deterioração progressiva do diálogo institucional, em que o respeito formal permanece no discurso, mas se esgarça na prática cotidiana.


O risco da punição exemplar como resposta simplificadora

É legítimo que a conduta de magistrados seja apurada por corregedorias e, se for o caso, pelo Conselho Nacional de Justiça. A autoridade judicial, exatamente por ser autoridade, está submetida a deveres reforçados de urbanidade, autocontenção e respeito às funções essenciais à justiça.

Contudo, também é preciso cautela para que a resposta institucional não se converta em punição simbólica excessiva, orientada mais pela pressão pública do que por uma análise estrutural. 

A frase, embora inadequada, não surge no vácuo. Ela verbaliza — de forma imprópria — um sentimento que, silenciosamente, já circula em muitos ambientes forenses: a percepção de parte da magistratura de que a advocacia, sobretudo quando invoca prerrogativas, atua como entrave e não como garantia.

Punir sem compreender esse pano de fundo pode produzir alívio momentâneo, mas não resolve o problema. O conflito reaparece, talvez de forma menos explícita, porém mais corrosiva.


A autocrítica necessária da advocacia

Para que a defesa das prerrogativas seja respeitada, é indispensável reconhecer que a advocacia em alguns momentos também contribuiu para o desgaste de sua autoridade simbólica.

Em muitos contextos, o discurso das prerrogativas foi banalizado, invocado de forma automática, sem distinção entre violações reais e meros dissabores processuais. Em outros, confundiu-se firmeza técnica com beligerância pessoal, transformando a audiência em palco e o conflito em estratégia.

Obviamente, isso não justifica desrespeito algum, mas ajuda a explicar por que parte da magistratura passou a reagir com impaciência — quando não com hostilidade — a qualquer menção à OAB ou às comissões de prerrogativas.

Respeito institucional não se sustenta apenas na Constituição ou na lei. Ele se constrói também pela postura, pela técnica e pela credibilidade cotidiana.


O erro simétrico da magistratura

Se a advocacia precisa de autocrítica, a magistratura precisa de autocontenção. O juiz não pode permitir que a frustração cotidiana se converta em desprezo institucional. Quando isso ocorre, o problema deixa de ser individual e se torna sistêmico.

A autoridade judicial existe justamente para conter o poder, inclusive o próprio. Deslegitimar a advocacia — ainda que verbalmente — equivale a enfraquecer o contraditório, a ampla defesa e, em última instância, a confiança social no processo.

É nesse ponto que a advertência de Piero Calamandrei, em Eles, os Juízes, vistos por nós, Advogados, mantém impressionante atualidade:


“O juiz que não escuta o advogado corre o risco de não ouvir sequer a própria consciência.”


Não se trata de bajular a advocacia, mas de reconhecer que o dissenso é parte estrutural da justiça, não uma afronta pessoal.


Diálogo institucional como reconstrução — não como concessão

Falar em diálogo, aqui, não significa relativizar abusos nem diluir responsabilidades. Significa compreender que advocacia e magistratura não são polos inimigos, mas funções complementares, condenadas a conviver.

A reconstrução institucional passa por:


  • uma advocacia mais técnica, menos performática e mais estratégica na defesa das prerrogativas;
  • uma magistratura mais consciente do impacto simbólico de suas palavras e gestos;
  • e uma OAB que atue com critérios claros, evitando tanto a omissão quanto o corporativismo acrítico.


Calamandrei lembrava que a advocacia não existe para agradar o poder, mas para recordar-lhe os seus limites. Da mesma forma, a magistratura não existe para silenciar o conflito, mas para administrá-lo com civilidade e justiça.


Conclusão

A frase que motivou o debate é reprovável. Mas ela é, sobretudo, um sintoma. Punir o sintoma sem tratar a causa é insistir no erro.

O momento exige menos indignação performática e mais maturidade institucional. Respeito não se impõe apenas por sanções, nem se conquista por confrontos permanentes. Ele nasce do reconhecimento recíproco de funções, da técnica, da escuta e da contenção do poder.

Sem isso, novos episódios surgirão — talvez com outras palavras, outros protagonistas, mas com a mesma raiz: a incapacidade de diálogo entre aqueles que deveriam, juntos, sustentar a justiça.

Por que o Governo Federal deveria recusar a prorrogação da concessão da Ampla/Enel Rio e promover nova licitação em 2026



A recente discussão pública em torno da Enel Distribuição São Paulo e da possibilidade de caducidade de seu contrato por falhas graves na prestação do serviço coloca em xeque o modelo atual de prorrogação automática de concessões no setor elétrico. 

Em São Paulo, o Ministério Público Federal e a Justiça questionam o processo de renovação antecipada da Enel SP diante de frequentes interrupções de energia, falta de investimentos e indicadores alarmantes de desempenho, pedindo inclusive a suspensão de qualquer prorrogação até a conclusão da apuração das falhas graves.

Essa visão de crítica à renovação não é apenas um debate teórico: ela reflete uma compreensão crescente de que contratos públicos essenciais não podem ser prorrogados como mera formalidade se há sérios indícios de incapacidade institucional da concessionária de prestar serviços adequados.

No caso do Estado do Rio de Janeiro, há um conjunto ainda mais robusto de elementos que agravam o quadro: reclamações massivas, multas de defesa do consumidor, grande volume de ações judiciais e uma sequência de decisões administrativas que revelam problemas sistemáticos de prestação de serviço pela concessionária que atua hoje no lugar da antiga Ampla. A seguir, os fundamentos para um posicionamento firme do MME contra a prorrogação do contrato de concessão da Enel RJ.


1. O contexto da prorrogação contratual no Brasil

Segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), a Ampla Energia e Serviços – Enel Rio protocolou em tempo hábil o pedido de prorrogação do seu contrato, que vence em 09/12/2026, junto à agência reguladora. A ANEEL chegou a recomendar ao MME a prorrogação antecipada da concessão da Enel RJ com base no cumprimento de critérios formais previstos em decreto vigente.

No entanto, essa recomendação não é vinculante para o MME, que possui discricionariedade para decidir pela renovação ou não com base em interesse público e análise de qualidade de prestação do serviço. A discricionariedade protege a administração de contrair obrigações quando há evidências claras de prejuízo ao interesse coletivo e, cumpridos os prazos legais, a decisão pela não prorrogação não gera obrigação de indenizar a concessionária. Pelo contrário, a própria legislação setorial prevê que, não havendo interesse em prorrogar, a concessão deve ser licitada.


2. A Enel Distribuição Rio como um dos maiores alvos de ações judiciais no RJ

Um dos dados mais expressivos que fundamentam a recusa à prorrogação é o elevado número de ações judiciais contra a Enel Distribuição Rio, que refletem conflitos recorrentes entre consumidores e a concessionária. Em 2023, pelo menos 25.524 ações foram ajuizadas nos Juizados Especiais Cíveis contra a Enel RJ, tornando-a a segunda empresa mais processada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ‑RJ) naquele ano — atrás apenas da Light, outra distribuidora local.

Esses processos não são litígios isolados, mas convergem sobretudo para temas relacionados à má prestação de serviço, cobranças indevidas, interrupções constantes de energia e descumprimento de obrigações contratuais essenciais.


Principais tipos de litígios que caracterizam padrão de falhas

Dados de sistemas nacionais de defesa do consumidor mostram que, nos últimos anos, a Enel Distribuição RJ apresentou:


  • 1.792 reclamações sobre cobrança de tarifas indevidas ou inesperadas,
  • 924 reclamações por irregularidade na medição,
  • 784 reclamações relacionadas a atendimento (SAC) inadequado ou não respondido,
  • 548 reclamações por interrupção ou instabilidade frequente no fornecimento,
  • 382 reclamações por cobrança por serviços não realizados ou atrasados.


Esse painel demonstra uma série sistemática de problemas estruturais na prestação do serviço, e não apenas falhas eventuais.


3. Problemas de atendimento, descaso e reincidência

Além dos números brutos, reclamações individuais amplificam o diagnóstico de incapacidade gerencial da concessionária. Existem registros em plataformas públicas de consumidores com cobranças abusivas reincidentes mesmo após decisões judiciais favoráveis e com tratamento inadequado no atendimento ao cliente. Outro exemplo relatado é a inclusão incorreta de nomes em cadastros de crédito que a própria concessionária foi condenada a retirar, sem que a situação fosse resolvida adequadamente, apontando descaso administrativo.

Esses episódios, além de indicar repetição dos problemas, sinalizam possível deficiência no cumprimento de ordens judiciais e administrativas, o que compromete ainda mais a confiança do consumidor e do poder público na capacidade da concessionária de melhorar seus serviços.


4. Ação de órgãos federais e estaduais de defesa do consumidor

Em 2024, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, aplicou uma multa de R$ 13 milhões à Enel RJ por “interrupções de serviço público essencial e demora no restabelecimento” — um reconhecimento federal de que a concessionária não cumpriu padrões mínimos de qualidade.

No âmbito estadual, o Procon‑RJ tem instaurado diversos processos sancionatórios importantes, motivados por reclamações em cidades como Campos dos Goytacazes, Maricá, Arraial do Cabo, Macaé e Casimiro de Abreu, que já geraram multas superiores a R$ 12,5 milhões.

Essas medidas administrativas reforçam que não se trata de percepções isoladas, mas de problemas amplamente reconhecidos por órgãos de proteção ao consumidor.


5. Reclamações por interrupções e instabilidade no fornecimento

Interrupções constantes de energia, oscilações de tensão e demora para restabelecimento foram algumas das principais queixas registradas no sistema nacional de defesa do consumidor no período 2022‑2024. Essas falhas, quando persistentes, não apenas geram transtornos — podem comprometer serviços essenciais, pequenos negócios, sistemas de saúde e segurança pública, configurando de fato uma falha na prestação de serviço público essencial.


6. Argumentos jurídicos contra a prorrogação antecipada

Discricionariedade administrativa e interesse público

A Lei de Concessões (Lei nº 8.987/95) e o regime regulatório permitem que o poder concedente e seus agentes reguladores exerçam discricionariedade na decisão de prorrogar ou não um contrato de concessão, desde que a decisão seja fundamentada em interesse público e na análise técnica.

Ao recusar a prorrogação, o MME pode, com segurança jurídica, fundamentar a decisão em critérios de qualidade do serviço, volume de litígios, prejuízos aos consumidores e histórico de sanções administrativas sem que isso gere obrigatoriedade de indenizar a concessionária — pois, no cená­rio de recusa, a lei remete à licitação pública como forma de escolha do próximo concessionário.


Direito à competição e interesse dos consumidores

A opção por nova licitação em vez de prorrogação afronta o interesse público em promover concorrência e melhores condições para os consumidores. Uma licitação aberta com critérios objetivados e metas de qualidade permitiria selecionar um concessionário que demonstre:


  • capacidade técnica mais robusta;
  • compromissos claros de investimento em infraestrutura;
  • planos de atendimento emergencial e contingência;
  • mecanismos eficazes de satisfação do consumidor.


Esse modelo tem potencial para elevar a prestação do serviço a níveis compatíveis com os padrões esperados para um serviço essencial, algo que repetidas ações, reclamações e sanções indicam que a atual concessionária não tem conseguido oferecer de forma satisfatória.


7. Cronograma e viabilidade de nova licitação em 2026

O contrato da Enel RJ vence em dezembro de 2026 e, conforme os prazos legais, a não prorrogação implica a necessidade de licitação da concessão. Como não houve a decisão de prorrogar, há tempo suficiente para preparar um processo licitatório completo, transparente e competitivo, sem interrupção do serviço, uma vez que a legislação prevê o trâmite para troca de concessionário em tempo hábil.

Além disso, o arcabouço legal atual permite que a concessionária atual continue no exercício da função até a conclusão do processo licitatório, evitando qualquer descontinuidade do serviço, mas sem vincular o MME à renovação automática.


Conclusão

A discussão sobre a prorrogação do contrato de concessão da Ampla Energia e Serviços – Enel Distribuição Rio vai muito além de um exame formal de cumprimento de prazos.

👉 Os problemas estruturais e recorrentes na prestação do serviço no Estado do Rio de Janeiro, manifestados em milhares de ações judiciais, centenas de reclamações sistematizadas, multas aplicadas por órgãos federais e estaduais e um quadro de insatisfação generalizada dos consumidores configuram uma base sólida para recusar a prorrogação antecipada do contrato.

👉 A decisão de não prorrogar é discricionária, juridicamente segura e não exige indenização à concessionária, e ainda abre caminho para uma nova licitação em 2026 que possa trazer inovação, concorrência e, sobretudo, qualidade de serviço para milhões de consumidores do Rio de Janeiro.

Em suma, não prorrogar o contrato da Enel RJ significa exercer o interesse público, valorizar os direitos do consumidor e promover um serviço de energia elétrica mais eficiente, competitivo e confiável para todos os municípios atendidos.