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terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Congresso Nacional SUPRIME RECURSOS das Universidades Federais: ruptura orçamentária e ameaça à educação pública


Protesto realizado em 2019 em prol da UFRJ


Em 19 de dezembro de 2025, o Congresso Nacional aprovou a Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2026 com significativas supressões de recursos destinados às universidades federais e institutos federais de educação superior (IFES) em um ano que já se anuncia eleitoral e de enorme relevância para o futuro das políticas públicas no Brasil.

Embora o texto aprovado contemple parcialmente o que o Executivo federal havia proposto no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) enviado, o resultado final revela recortes em rubricas essenciais do orçamento discricionário, que é a parcela em que as universidades têm autonomia para decidir onde gastar e que cobre despesas com água, luz, manutenção, segurança, limpeza, assistência estudantil e bolsas de estudo. Segundo entidades representativas, esse corte foi de quase R$ 400 milhões em comparação ao orçamento discricionário previsto para 2025, sem sequer considerar a inflação ou o aumento dos custos de contratos; apenas na assistência estudantil, o corte foi de cerca de R$ 100 milhões (queda de 7,3%).


Antecedentes recentes: o desmonte silencioso do financiamento universitário

A questão do financiamento das universidades federais não começou com esta LOA: ela é o resultado de uma trajetória de desinvestimento nos últimos anos, que atravessa governos e ciclos econômicos.


📌 Após a crise econômica de 2015–2016 (que marcou o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff), o orçamento discricionário das universidades começou a sofrer restrições, não por desdém ideológico, mas pela necessidade de ajuste fiscal frente a uma recessão profunda que comprometeu a capacidade de investimento público.


📌 No governo Jair Bolsonaro (2019–2022), as universidades federais registraram quedas reais no custeio — estimativas apontam que, entre 2019 e 2022, os recursos disponíveis para manutenção e bolsas caíram significativamente e ficaram cerca de 12% abaixo do que eram no início dessa gestão, mesmo antes da pandemia.


📌 Dados compilados por estudos independentes mostram que o total de repasses às universidades federais em 2026 será aproximadamente metade do que se destinava em 2014, quando se ajusta pela inflação — ou seja, em termos reais o financiamento público caiu drasticamente na última década, mesmo com a expansão do número de instituições e de estudantes atendidos. Alguns levantamentos indicam que o montante previsto para 2026 (aproximadamente R$ 7,85 bilhões em custeio) representa apenas cerca de 45% do que era destinado em 2014 e que os recursos para investimentos estruturais despencaram a níveis quase simbólicos, com pouco mais de R$ 300 milhões previstos — menos de 6% do que se destinava à infraestrutura há 11 anos.


Esse cenário de retração progressiva não é apenas uma estatística: ele se transforma em salas sem manutenção adequada, laboratórios desatualizados, problemas de segurança de infraestrutura e dificuldade de pagamento de contratos essenciais, que acabam por comprometer a capacidade de ensino, pesquisa e extensão.


Impactos práticos nos campi universitários

A redução do orçamento discricionário tem consequências diretas e imediatas:


🔹 Funcionamento cotidiano

  • Serviços básicos como limpeza, vigilância, manutenção predial, energia elétrica e água ficam vulneráveis quando não há orçamento adequado.
  • Equipamentos de laboratório e materiais de consumo essenciais para aulas práticas ou pesquisa podem ficar paralisados por falta de recursos.


🔹 Assistência estudantil

  • Cortes nos recursos destinados a políticas de permanência estudantil — incluindo alimentação, moradia e transporte — penalizam estudantes de baixa renda, justamente aqueles que dependem da educação pública para ascensão social e igualdade de oportunidades.


🔹 Pesquisa científica

  • Reduções no custeio ou no orçamento de agências como CAPES e CNPq prejudicam o financiamento de bolsas de pesquisa, convivendo com menos recursos para projetos essenciais, inovação tecnológica e produção científica que beneficia o país como um todo.


Além disso, muitas IFES já relataram que, diante das restrições, dependem crescentemente de emendas parlamentares para cobrir lacunas orçamentárias, o que fragiliza a autonomia institucional e cria vínculos políticos nem sempre alinhados com planejamento estratégico acadêmico.


Por que o Congresso decidiu cortar?

Há três forças principais em jogo:


🟡 Negociação político‑eleitoral

Em um ano eleitoral, parlamentares tendem a pressionar por uma maior fatia do orçamento em emendas parlamentares individualizadas, que podem ser usadas como moeda de troca política em suas bases eleitorais — mesmo à custa de políticas estruturantes como educação superior e ciência.


🟡 Disciplina fiscal

Parcela do Legislativo argumenta que cortes são necessários para respeitar limites de gasto ou para abrir espaço fiscal para outras despesas, pressionados por compromissos macroeconômicos.


🟡 Prioridades divergentes

Muitos parlamentares privilegiam obras pontuais ou demandas regionais de curto prazo (por meio de emendas), em detrimento de políticas de longo prazo como educação e pesquisa.


Essa dinâmica evidencia uma crise institucional no planejamento orçamentário brasileiro, em que o Congresso absorve grande parte do poder de decisão sobre prioridades públicas, restringindo a capacidade do Executivo de implementar políticas coerentes de médio e longo prazo.


Há espaço para veto presidencial?

Sim — constitucionalmente, o Presidente da República pode vetar total ou parcialmente a LOA (inclusive cortes específicos feitos pelo Congresso) antes da promulgação.
Um veto poderia, em tese, restaurar os valores originalmente propostos no projeto enviado pelo Executivo, incluindo maior dotação para as universidades federais e assistência estudantil.

No entanto, mesmo que um veto não seja derrubado pelo Congresso, a realidade prática do orçamento ainda dependerá de:


arrecadação efetiva de receitas;
execução orçamentária e financeira ao longo do ano;
decisões administrativas sobre liberação de recursos (que podem incluir retenções ou bloqueios, como já observados em 2025).


Ou seja, o veto pode aliviar a situação e indicar prioridade governamental pela educação pública, mas não garante automaticamente que o valor será todo repassado às universidades, dada a fragilidade do quadro fiscal.


Medidas compensatórias e ajustes internos nas universidades

Diante desse quadro, muitas instituições têm adotado estratégias de planejamento de crise, como:


✔️ Racionalização do custeio, priorizando rubricas essenciais e revisando contratos;
✔️ Busca de parcerias com setor privado e organizações internacionais para projetos de pesquisa;
✔️ Gestão mais rigorosa de bolsas e fundos de assistência estudantil;
✔️ Articulação com parlamentares, governos estaduais e sociedade civil para garantir apoio político e ampliar mecanismos de financiamento alternativo;
✔️ Pressão institucional conjunta (como ANDIFES e outras associações) para reivindicar recomposição de recursos no Congresso e diálogo com o Executivo.


Essas medidas, embora necessárias para “segurar a barra” no curto prazo, não substituem um orçamento público robusto e sustentável — essencial para manter a qualidade da educação superior pública e a pesquisa científica no país.


Conclusão — mais do que números, é uma escolha de país

A redução de recursos à educação superior pública não é apenas um tema técnico de orçamento: é também uma escolha política e cultural sobre o futuro da sociedade brasileira.

Quando o Estado prioriza programas pontuais, emendas parlamentares ou curtas vantagens eleitorais em detrimento de investimento em conhecimento, pesquisa, inclusão e mobilidade social, ele abre mão de políticas estruturantes que historicamente expandiram oportunidades e produção científica, contribuindo para o desenvolvimento econômico e social.

Seja pelo poder de veto presidencial, seja pela pressão política de reitores, estudantes, professores e sociedade civil, esse debate deve continuar. Porque, no fim, trata‑se de assegurar que o Brasil tenha instituições capazes de formar, investigar e inovar — o que significa um país mais justo e competitivo no século XXI.


🟦 Nota sobre os impactos locais nas IFES fluminenses e sua relação com o planejamento municipal

No contexto do corte no orçamento federal para 2026, é essencial destacar que as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) sediadas no estado do Rio de Janeiro — como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) — enfrentam um quadro de restrição orçamentária acumulado ao longo de quase uma década, que se agrava com o recente corte aprovado pelo Congresso. Essa realidade já tem repercussões concretas para o cotidiano dessas instituições e também para os planos de desenvolvimento territorial e municipal em toda a Região Metropolitana e no interior fluminense. 

A UFRJ, por exemplo, viu seu orçamento discricionário cair de aproximadamente R$ 784 milhões em 2012 para cerca de R$ 406 milhões em 2025 (valores corrigidos pela inflação), uma redução de mais de 50% em termos reais, segundo dados apresentados pelos gestores da universidade ao Fórum de Reitores das Instituições Públicas de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Friperj). Mesmo com resultados acadêmicos e avanços institucionais, essa queda impacta diretamente a capacidade de honrar contratos de manutenção, serviços essenciais e funcionamento cotidiano dos campi — com reflexos em toda a cidade do Rio de Janeiro, que abriga grande parte da comunidade acadêmica e seus serviços auxiliares. 

Da mesma forma, a UFF relatou que, diante de orçamentos reduzidos, opera com recursos insuficientes para garantir o pagamento de bolsas, a manutenção de restaurantes universitários e a contratação de serviços terceirizados, peças fundamentais para a permanência estudantil. A UFRRJ, que atende a municípios do interior fluminense, também tem alertado parlamentares para os impactos das restrições orçamentárias na capacidade de planejar e executar suas atividades de ensino, pesquisa e extensão. 

Essas condições repercutem não apenas dentro dos muros das universidades, mas também para o planejamento municipal e regional. IFES são polos de desenvolvimento local: geram emprego, atraem estudantes de diversas regiões, fomentam atividades econômicas — de moradia estudantil a comércio e serviços — e colaboram com políticas públicas nas áreas de saúde, educação básica, agricultura, tecnologia e sustentabilidade. A redução de recursos compromete esse ecossistema, diminuindo a capacidade das IFES de contribuir com projetos urbanos, programas de pesquisa aplicada e iniciativas de desenvolvimento territorial que muitas prefeituras dependem para inovar e crescer.

Nesse sentido, a articulação entre IFES, governos municipais e a bancada federal fluminense, como a promovida pelo Friperj, é um indicativo de que o debate deve ultrapassar a esfera federal e dialogar com os planos diretores municipais e regionais, para que estratégias conjuntas de mitigação dos impactos sejam construídas — seja por meio de mobilização política, projetos integrados de pesquisa com aplicações locais ou mesmo mecanismos de cooperação técnica e financeira entre municípios e universidades, que podem atenuar parte das restrições orçamentárias em curso. 


📷: Fábio Caffé (Coordcom/UFRJ)

Governo Federal lança Pronarep e fortalece políticas de resíduos sólidos



O governo federal anunciou na segunda-feira (22/12) a criação do Programa Nacional de Investimento na Reciclagem Popular (Pronarep), uma iniciativa que visa dar apoio financeiro, técnico, estrutural e social aos catadores de materiais recicláveis, sejam eles autônomos, associados a cooperativas ou a associações. O decreto que institui o programa foi publicado no Diário Oficial da União, e representa um passo importante para fortalecer a inclusão socioeconômica de milhares de trabalhadores que atuam na reciclagem em todo o país.

Entre os objetivos do Pronarep estão o acesso a crédito e tecnologias sociais, estímulo à inovação, capacitação profissional, erradicação humanizada dos lixões e garantia da inclusão socioeconômica de catadores. Na cerimônia de lançamento, o Presidente Lula reforçou o compromisso do governo em transformar políticas públicas em ações concretas, assegurando que os benefícios cheguem rapidamente à população.


Avanços nas políticas de resíduos sólidos nos últimos 15 anos

Desde a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), sancionada em 2010, o Brasil vem avançando na formalização e valorização dos catadores de materiais recicláveis. A legislação federal reconheceu o papel central desses trabalhadores na coleta e triagem de resíduos e estabeleceu metas para erradicação de lixões, substituídos gradualmente por aterros controlados e centros de triagem.

Além disso, a PNRS prevê a responsabilidade compartilhada entre produtores, consumidores e governo, incentivando a logística reversa e a criação de cooperativas autogeridas. Programas federais e estaduais têm apoiado a capacitação de catadores, fornecimento de equipamentos e acesso a microcrédito, promovendo renda mais estável e inclusão social.


O panorama fluminense em comparação com outros estados

No Estado do Rio de Janeiro, a legislação estadual e municipal prevê a inclusão de catadores em planos de resíduos sólidos, coleta seletiva e incentivo a cooperativas, com programas como o Recicla RJ, que oferece capacitação e apoio técnico. Apesar desses avanços, os municípios fluminenses ainda enfrentam desafios significativos, como a manutenção de lixões em algumas regiões, cooperativas frágeis ou de fachada, e desigualdade na renda e inclusão dos catadores.

Quando comparado a outros estados, o cenário fluminense se mostra desigual:


  • São Paulo destaca-se pela estrutura avançada de cooperativas autogeridas, centros de triagem consolidados e coleta seletiva abrangente, garantindo maior estabilidade de renda aos catadores.
  • Minas Gerais apresenta um quadro misto, com cidades grandes implementando políticas eficazes, enquanto municípios menores ainda dependem de lixões ou cooperativas frágeis.
  • Estados do Sul (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) apresentam boas práticas consolidadas, com cooperativas fortes, mercado formal para recicláveis e programas estaduais de incentivo e fiscalização eficientes.


O Rio de Janeiro, apesar de ter legislação suficiente para garantir a inclusão e a valorização dos catadores, ainda sofre com lacunas de implementação, limitada capacidade administrativa de alguns municípios e pressões econômicas locais que tornam a gestão de resíduos menos eficiente.


Caminhos para o avanço no RJ

Especialistas apontam que a eficiência da política estadual poderia ser ampliada com:


  • Aperfeiçoamento da legislação regional, detalhando critérios de governança e transparência das cooperativas;
  • Fiscalização rigorosa e monitoramento estadual, garantindo que todos os catadores sejam incluídos;
  • Incentivos financeiros e linhas de crédito específicas, para tornar as cooperativas autogeridas financeiramente sustentáveis;
  • Participação social efetiva, com conselhos estaduais envolvendo catadores, ONGs e universidades;
  • Capacitação e segurança no trabalho, incluindo fornecimento de EPIs e centros de triagem adequados, substituindo progressivamente os lixões.


Conclusão

A criação do Pronarep surge em um momento estratégico para consolidar décadas de avanços na política de resíduos sólidos no Brasil. No Estado do Rio de Janeiro, a legislação e programas já fornecem uma base sólida, mas a implementação desigual ainda limita os resultados, especialmente quando comparada a estados como São Paulo e os do Sul. A combinação de investimento, fiscalização, capacitação e participação social será essencial para transformar essas políticas em inclusão real e sustentável para os catadores de materiais recicláveis.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

🌱 O direito à cidade começa no canteiro


Victor Graeff e as esculturas em ciprestes

Uma pequena cidade gaúcha que ganha fama por ter a “praça mais bonita” graças ao trabalho silencioso de um jardineiro octogenário. Uma escadaria carioca que se torna cartão-postal internacional pelas mãos de um artista chileno. Árvores plantadas por um saudoso morador que, décadas depois, definem a paisagem urbana inteira. O que esses casos têm em comum?

Mais do que histórias inspiradoras, eles revelam algo essencial: o direito à cidade não nasce apenas de grandes planos urbanísticos, mas também de iniciativas espontâneas, persistentes e profundamente humanas.


🌿 Iniciativas individuais que viram patrimônio coletivo

O caso retratado recentemente pela imprensa — do jardineiro de 89 anos que transformou uma praça inteira na cidade gaúcha de Victor Graeff em um conjunto de esculturas vivas — dialoga diretamente com outras experiências brasileiras e latino-americanas.

É impossível não lembrar da Escadaria Selarón, entre a Lapa e Santa Teresa, em que o chileno Jorge Selarón, morador do Rio de Janeiro, converteu um espaço degradado em símbolo cultural da cidade. Ou do famoso “Kobra”, personagem conhecido em diferentes bairros por intervenções urbanas não oficiais, que suscitam debates sobre arte, ocupação e pertencimento.

No Estado do Rio, há ainda o exemplo menos conhecido, mas não menos potente, de Tião Corrêa, responsável pelo plantio de ipês-amarelos e cerejeiras em Teresópolis — uma ação individual que moldou a identidade visual e afetiva da cidade serrana ao longo do tempo.

Esses casos mostram que o espaço público não é apenas administrado pelo Estado: ele também é produzido socialmente.


🏙️ A ponte com o direito à cidade

O conceito de direito à cidade, consagrado pelo sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre (1901 - 1991) e incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Estatuto da Cidade, vai muito além do acesso à moradia ou à infraestrutura. Ele envolve:


  • participação ativa dos cidadãos;
  • apropriação simbólica do espaço urbano;
  • função social da cidade e da propriedade;
  • construção coletiva do território.


Quando um morador cria e cuida de um canteiro, planta árvores ou embeleza uma praça, ele está exercendo o direito à cidade na prática, ainda que, muitas vezes, sem respaldo legal claro.

Daí surge o dilema: como o Poder Público pode reconhecer, proteger e incentivar essas iniciativas sem engessá-las ou transformá-las em mercadoria?


⚖️ A resposta institucional: um caso de Mangaratiba (RJ)

Em 2025, o município de Mangaratiba deu um passo relevante ao sancionar a Lei nº 1.589, de 11 de junho de 2025, oriunda de projeto encaminhado pelo atual Chefe do Executivo, Luiz Cláudio Ribeiro.

A lei institui o Programa de Adoção de Parques, Canteiros e Pórticos, permitindo que pessoas físicas e jurídicas participem formalmente da conservação e melhoria de espaços públicos.

Esse ponto é fundamental: o legislador não restringiu a participação a empresas, abrindo espaço para cidadãos comuns, moradores, aposentados, artistas, jardineiros e grupos comunitários.

Mais do que permitir a manutenção, a lei autoriza intervenções paisagísticas, mediante aprovação técnica, preservando o caráter de bem de uso comum do povo.


🌱 E a criação de canteiros por moradores?

Um debate central é se moradores podem criar canteiros em áreas públicas por iniciativa própria. A resposta, à luz da lei e do urbanismo democrático, é clara: sim, desde que regulamentado.

Um decreto regulamentador pode — e deve —:


  • autorizar expressamente a criação, recuperação e manutenção de canteiros;
  • prever procedimentos simplificados para pessoas físicas;
  • exigir apenas critérios mínimos ambientais e de segurança;
  • garantir que o espaço permaneça público, acessível e reversível;
  • reconhecer a iniciativa como ação cidadã, não como privatização.


Isso permite que ações hoje informais deixem de viver na fronteira da tolerância administrativa e passem a ser políticas públicas de baixo custo e alto impacto social.


🧓🌼 Trabalho ocupacional, saúde mental e pertencimento

Outro aspecto decisivo é o potencial dessas iniciativas para políticas sociais integradas. Grupos de convivência da terceira idade, usuários dos CAPS, escolas, igrejas e ONGs, por exemplo, podem encontrar no cuidado com o espaço urbano uma poderosa forma de:


  • trabalho ocupacional;
  • terapia comunitária;
  • educação ambiental;
  • fortalecimento de vínculos;
  • resgate da autoestima e do pertencimento.


Cuidar da cidade também é cuidar das pessoas!


🏷️ Reconhecer sem mercantilizar

Um dos riscos desses programas é transformar o espaço público em vitrine comercial. Por isso, boas práticas legislativas indicam:


  • placas de reconhecimento simbólico, sem publicidade;
  • certificações cidadãs;
  • cadastros públicos de iniciativas urbanas;
  • memória institucional dessas ações.


O reconhecimento deve ser cívico, não mercadológico.


🧭 Uma agenda possível para os municípios

Experiências como as de Vitória (Lei Rubem Braga), São Paulo, Rio de Janeiro e agora aqui em 2025 Mangaratiba mostram que há um caminho jurídico já aberto para reconhecer iniciativas espontâneas ligadas ao direito à cidade.

O desafio atual não é inventar do zero, mas aperfeiçoar, humanizar e democratizar esses instrumentos, garantindo que a cidade não seja apenas planejada de cima para baixo, mas também cultivada de dentro para fora.


🌻 Conclusão

Toda cidade bonita começa com um gesto simples: alguém que decide cuidar do que é de todos. Quando o poder público aprende a reconhecer esse gesto — sem sufocá-lo —, o direito à cidade deixa de ser um conceito abstrato e passa a florescer, literalmente, nos canteiros, praças e ruas.

Porque, no fim das contas, o direito à cidade também se planta.


📝 Minuta de um Projeto de Lei:

Apresento adiante um esboço completo de Projeto de Lei municipal, tecnicamente viável, politicamente defensável e explicitamente fundamentado no direito à cidade, inspirado nas referências debatidas (Mangaratiba, Rio, Vitória, São Paulo) — com foco central nas iniciativas espontâneas de cidadãos e coletivos.

O texto está estruturado para uso real por vereadores, prefeituras ou assessorias legislativas, mas também serve como referência acadêmica e militante.


📜 PROJETO DE LEI Nº ___ /2026


Ementa: Institui a Política Municipal de Valorização de Iniciativas Cidadãs no Espaço Público, como instrumento de promoção do direito à cidade, e dá outras providências. 


Art. 1º - Fica instituída a Política Municipal de Valorização de Iniciativas Cidadãs no Espaço Público, destinada a reconhecer, estimular e apoiar ações espontâneas de cidadãos e coletivos que contribuam para a melhoria, conservação, humanização e apropriação social dos espaços públicos urbanos.


Art. 2º - A Política fundamenta-se nos seguintes princípios:

I – o direito à cidade como direito coletivo;

II – a função social dos espaços públicos;

III – a participação cidadã direta na produção do espaço urbano;

IV – o pertencimento, o cuidado e a memória urbana;

V – a prevalência do interesse público sobre a apropriação privada;

VI – a simplicidade administrativa e a não burocratização.


Art. 3º - Para os fins desta Lei, consideram-se Iniciativas Cidadãs no Espaço Público as ações espontâneas, individuais ou coletivas, sem finalidade lucrativa, voltadas a:

I – criação, recuperação ou manutenção de canteiros, jardins e áreas verdes;

II – arborização urbana comunitária;

III – cuidado, limpeza leve e zeladoria cidadã;

IV – intervenções paisagísticas ou artísticas de interesse público;

V – valorização da memória, identidade e cultura locais;

VI – usos terapêuticos, educativos ou ocupacionais do espaço urbano.


Art. 4º - As iniciativas poderão ser propostas por:

I – pessoas físicas;

II – coletivos informais de moradores;

III – associações comunitárias;

IV – escolas, igrejas, ONGs e entidades sociais;

V – grupos de convivência da terceira idade;

VI – usuários e equipes vinculadas a serviços de saúde mental e assistência social.


Art. 5º ,- Poderão ser objeto das iniciativas cidadãs:

I – praças, parques e áreas verdes;

II – canteiros centrais ou laterais de vias públicas locais;

III – áreas públicas ociosas ou degradadas;

IV – entornos de equipamentos públicos;

V – outros logradouros públicos compatíveis com o uso proposto.

§1º É vedada qualquer intervenção que restrinja o livre acesso, a circulação ou a acessibilidade universal.

§2º Os espaços permanecem bens de uso comum do povo, vedada qualquer forma de privatização.


Art. 6º - O Município instituirá procedimento simplificado para reconhecimento das iniciativas, especialmente quando propostas por pessoas físicas ou coletivos informais.

§1º O procedimento exigirá, no mínimo:

I – requerimento padrão;

II – indicação do local;

III – descrição simples da ação;

IV – compromisso de respeito às normas ambientais e urbanísticas.

§2º É vedada a exigência de projeto técnico complexo, salvo em casos excepcionais devidamente justificados.


Art. 7º - O Município poderá apoiar as iniciativas por meio de:

I – orientação técnica básica;

II – fornecimento eventual de mudas ou insumos;

III – cessão temporária de ferramentas;

IV – apoio institucional e divulgação.


Art. 8º - As iniciativas reconhecidas poderão receber:

I – placa identificativa de caráter cívico, sem publicidade comercial;

II – certificado de iniciativa cidadã urbana;

III – registro em Cadastro Municipal de Iniciativas Cidadãs.


Art. 9º - As iniciativas poderão ser reconhecidas como ações complementares às políticas de:

I – saúde mental;

II – envelhecimento ativo;

III – educação ambiental;

IV – assistência social;

V – cultura e memória urbana.


Art. 10 - O reconhecimento das iniciativas:

I – não gera direito real ou posse;

II – tem caráter precário e revogável;

III – não enseja indenização;

IV – pode ser encerrado a qualquer tempo por interesse público.


Art. 11 - O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, podendo:

I – criar modalidades de iniciativas;

II – estabelecer critérios técnicos proporcionais;

III – instituir formulários e manuais simplificados;

IV – integrar secretarias envolvidas.


Art. 12 - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.


📌 EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS (síntese)

A presente proposição reconhece que o espaço urbano é produzido não apenas pela ação do Estado, mas também por iniciativas espontâneas, solidárias e comunitárias de cidadãos, que historicamente contribuem para o embelezamento, a conservação, a identidade cultural e a função social da cidade.

Ao instituir uma política pública voltada à valorização dessas iniciativas, o Município promove o direito à cidade, nos termos do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), fortalece a cidadania ativa e cria instrumentos de baixo custo e alto impacto social.

O mimimi do “pé direito” e a beleza das coisas simples



✨ "Chinelas e cueiros sujos… são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor." – Eça de Queirós


Comecemos a tarde de hoje com um clássico português, citado hoje no site jurídico Migalhas. Porque, convenhamos, se até Eça reconhecia a beleza do cotidiano despretensioso — chinelos espalhados, fraldas sujas, risos de crianças — quem somos nós para ignorar que Havaianas podem ser muito mais do que sandálias? 🩴

O comercial com a atriz Fernanda Torres tornou-se, para alguns setores da direita, uma afronta simbólica ao “pé direito”. E assim surgiu a indignação moralista: boicotes, migração de sandálias para outras marcas e debates calorosos sobre o que é aceitável ou não. 


Fernanda Torres em campanha publicitária - Instagram

No entanto, como o meme que circula nas redes já nos ensina, a verdadeira questão não está na Havaiana em si, mas na incapacidade de enxergar o valor do afeto cotidiano.

O meme é simples, mas espirituoso: recorre a Eça, mistura literatura clássica com emojis modernos e Havaianas, e nos lembra que o cotidiano popular, cheio de pequenas imperfeições, tem sua própria beleza. 

O "mimimi" político? Deixemos de lado. A guerra cultural em torno de um trocadilho de fim de ano perde importância diante da luz do sol entrando em uma casa cheia de amor — e chinelos espalhados pelo chão. 🌞❤️

Portanto, antes de se indignar com sandálias, frisos de propaganda ou símbolos abstratos, lembremos: o valor está na vida simples, na alegria e no afeto diário, não na polêmica. Quem entende isso, sorri. Quem não entende… bem, que continue reclamando das "legítimas", como dizia o saudoso Chico Anísio. 🙄

Rio de Janeiro terá placas para marcar locais de repressão da ditadura


Busto de Rubens Paiva em frente ao antigo Doi-Codi


O Município do Rio de Janeiro sancionou a Lei nº 9.192, de 8 de dezembro de 2025, que cria o Programa Memória, Verdade e Justiça Carioca, destinado a identificar publicamente locais onde ocorreram prisões, torturas, desaparecimentos forçados e ocultação de corpos durante a ditadura civil-militar (1964–1985). A iniciativa visa preservar a memória histórica, garantir o direito à verdade e promover educação cívica sobre os abusos cometidos pelo regime militar.

O projeto teve origem no PL 437/2025, aprovado como PL 437‑A/2025, de autoria da vereadora Maíra do MST (PT), com coautoria de outros parlamentares, Mônica Benício (PSOL) e Leonel de Esquerda (PT). A proposta foi aprovada em segundo turno na Câmara Municipal com 19 votos favoráveis e 10 contrários.


Adequação legal

Especialistas destacam que a lei está em consonância com a Constituição Federal, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro e a Lei Orgânica do município, que garantem direitos fundamentais, proteção à memória histórica e competências para legislar sobre educação e cultura.

A norma também segue as recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que orienta o Estado a preservar a memória das graves violações de direitos humanos e promover a divulgação pública da verdade sobre o período da ditadura. Além disso, a iniciativa está alinhada a tratados internacionais, como a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, e segue orientações do Ministério Público Federal (MPF), que recomenda políticas de memória e justiça de transição.


Locais contemplados no município

A lei abrange prédios e espaços sob jurisdição municipal, incluindo:


  • DOI-CODI/RJ – Tijuca: centro de tortura e prisão de opositores;
  • DOPS-RJ – Centro: investigação, prisão e tortura;
  • Universidades e prédios acadêmicos: repressão a estudantes e professores;
  • Prédios sindicais e industriais históricos: perseguição a líderes de trabalhadores.


Locais sob jurisdição federal ou militar, como quartéis e bases navais, não podem ser obrigatoriamente sinalizados pela lei municipal, mas poderão integrar rotas educativas e sinalizações públicas em áreas próximas, preservando a memória histórica.


Outros municípios fluminenses

A iniciativa carioca pode servir de modelo para outros municípios do estado do Rio de Janeiro, sendo que algumas cidades já estão no mesmo caminho que os vereadores cariocas:


  • Niterói: Delegacia de Polícia e quartéis usados para interrogatórios e vigilância de militantes. Lá tramita o PL 299/2025 que propõe o “Caminho da Memória, da Verdade e da Justiça”, com placas em prédios militares, DOPS, Ginásio Caio Martins e campus da UFF;
  • Petrópolis: Lá funcionou a Casa da Morte (centro clandestino de tortura e execução de militantes), um dos lugares mais conhecidos de repressão política no estado. Além de uma comissão municipal da verdade e de lei proibindo celebrações de ditaduras, é indispensável haver placas oficiais;
  • Volta Redonda: Trata-se de uma cidade industrial do setor metalúrgico (CSN) com histórico de repressão a trabalhadores e líderes sindicais onde poderiam ser realizadas ações de memória via universidades e MPF;
  • Duque de Caxias: Houve prisões e interrogatórios temporários próximo a quartéis e unidades militares estratégicas. Seria sugestiva a instalação de placas em prédios públicos, parques temáticos educativos sobre direitos humanos.
  • Angra dos Reis (e Ilha Grande): houve locais de prisão temporária, monitoramento militar e um presídio político, os quais poderiam receber placas, roteiros educativos ou centros de memória;
  • Campos dos Goytacazes: Foi polo industrial e sindical importante, com perseguição a líderes sindicais e políticos locais. Ações possíveis: Criação de rotas de memória, placas em antigos prédios administrativos ou sedes sindicais;
  • Itaboraí, São Gonçalo, Teresópolis, Cabo Frio e Macaé: Há documentos ou relatos de perseguição política e prisões temporárias nesses municípios, porém menos registro físico preservado. Seus vereadores poderiam propor placas em prédios públicos, ruas ou escolas, bem como mapas digitais de memória histórica.


Impacto da Lei

A Lei nº 9.192/2025 transforma o espaço urbano em instrumento de educação democrática e preservação da verdade histórica, garantindo que as violações cometidas durante a ditadura nunca sejam esquecidas para que nunca mais se repitam.
Mesmo limitada a prédios municipais, a iniciativa dos vereadores cariocas abre caminho para políticas semelhantes em outras cidades fluminenses, fortalecendo a memória da sociedade e o direito à verdade.


📝Nota: Em Mangaratiba, município onde o autor reside, houve vigilância de trabalhadores e transporte de presos políticos durante o regime militar. Até o momento, não existe lei municipal específica aprovada pela Câmara, porém a memória histórica poderia ser preservada via placas públicas ou exposições, bem como proibindo que pessoas que violaram direitos humanos durante a ditadura tenham seus nomes em praças, ruas, escolas e prédios públicos.

📷: Gabriel de Paiva

DIEESE: 70 anos de defesa do trabalhador e da economia brasileira



Nesta segunda-feira, 22 de dezembro de 2025, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) completa 70 anos de história

Criado em 1955, em um Brasil que se industrializava rapidamente e via crescer a urbanização, o DIEESE nasceu da necessidade urgente de informação confiável para o movimento sindical. Na época, sindicatos e trabalhadores enfrentavam salários defasados, desigualdade acentuada e ausência de dados precisos sobre condições de trabalho. A instituição surgiu, portanto, como uma ferramenta técnica e estratégica, capaz de fornecer estatísticas, estudos socioeconômicos e suporte para negociações coletivas.

Os organizadores foram dirigentes de sindicatos da indústria e do comércio, que buscavam criar uma base científica para fortalecer a atuação dos trabalhadores diante de empregadores e do governo. Ao longo das décadas, o DIEESE consolidou-se como referência nacional em análises econômicas, sociais e trabalhistas, sendo constantemente consultado por sindicatos, órgãos públicos, pesquisadores e pela imprensa.


Contribuições ao longo de sete décadas

Ao longo de 70 anos, o DIEESE construiu um legado único:


  • Décadas de 1950-60: levantamento de dados sobre salários, inflação e mercado de trabalho; produção dos primeiros relatórios técnicos.
  • Décadas de 1970-80: ampliação dos estudos para desemprego, desigualdade e condições de trabalho; maior presença junto a sindicatos de todo o país.
  • Décadas de 1990-2000: modernização com digitalização de dados, desenvolvimento de índices próprios e pesquisas nacionais mais sofisticadas.
  • Décadas de 2010-2020: atuação estratégica em políticas públicas, previdência, informalidade e debates econômicos; fortalecimento da capacitação de líderes sindicais.
  • Atualidade (2025): referência técnica reconhecida para negociações coletivas, pesquisas nacionais e regionais, e planejamento socioeconômico, consolidando-se como uma das instituições mais confiáveis do país no estudo do trabalho e da economia.


Entre suas ferramentas mais conhecidas está o cálculo do salário mínimo ideal, que não se limita ao piso oficial definido pelo governo, mas busca cobrir todas as necessidades básicas de uma família de quatro pessoas — alimentação, moradia, saúde, transporte, educação, lazer e previdência.


O salário mínimo do DIEESE: um parâmetro de dignidade

Segundo o DIEESE, o salário mínimo para 2026 deveria ser cerca de R$ 7.067, muito acima do piso oficial projetado de R$ 1.621. Esse valor reflete o mínimo necessário para que trabalhadores e suas famílias vivam com dignidade, como previsto na Constituição Federal, que garante o direito a remuneração suficiente para sustento pessoal e familiar.

Em comparação internacional, esse valor ainda ficaria abaixo do salário mínimo nominal de países como Alemanha e França, mas, considerando o poder de compra local, aproxima-se do padrão de vida observado em países desenvolvidos, permitindo acesso a bens e serviços essenciais de forma compatível com a dignidade humana.

A discrepância entre o salário mínimo oficial e o valor calculado pelo DIEESE evidencia a distância entre o mínimo legal e o mínimo necessário, mostrando que a atual política de reajustes insuficientes não garante plenamente o direito constitucional ao sustento digno.


A importância de um plano gradual

Embora o valor ideal seja elevado, especialistas apontam que um aumento abrupto poderia gerar inflação, sobrecarga de empresas e pressões fiscais, além de resistência política. Por isso, um plano gradual de aumento do salário mínimo — mesmo de 3% real ao ano — se mostra como uma alternativa equilibrada.

Simulações indicam que, com esse ritmo:


  • O poder de compra do trabalhador aumentaria visivelmente a cada década, mesmo em contextos de crise;
  • Benefícios sociais e previdenciários poderiam ser reajustados entre 50% e 100% do aumento real do mínimo, garantindo manutenção do poder aquisitivo sem sobrecarregar o orçamento;
  • Ao longo de 50 anos, o salário mínimo poderia aproximar-se do valor DIEESE, consolidando um processo de valorização contínua e previsível.


Essa estratégia permitiria uma recuperação gradual da dignidade salarial, proteção social sustentável e estímulo ao consumo, fortalecendo a economia sem provocar choques inflacionários ou desemprego massivo.


Conclusão

O DIEESE celebra sete décadas de atuação como guardião dos direitos dos trabalhadores e referência técnica da economia brasileira. Suas pesquisas, dados e estudos têm sido fundamentais para negociações coletivas, políticas públicas e debates econômicos.

O cálculo do salário mínimo do DIEESE e a discussão sobre um plano gradual de valorização ilustram como é possível conciliar direito constitucional, dignidade do trabalhador e sustentabilidade econômica, mesmo em um país marcado por desigualdade histórica.

Ao completar 70 anos, o DIEESE reafirma sua missão: promover informação, conhecimento e justiça social, mostrando que o futuro da política salarial e do trabalho digno pode ser construído com planejamento, técnica e diálogo, transformando lentamente o ideal em realidade concreta.


📷: Assembleia dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo, 1979, a qual foi registrada por Iugo Koyama, conforme extraído de https://radiopeaobrasil.com.br/dieese-lanca-campanha-de-arrecadacao-para-projeto-sobre-seus-70-anos/

domingo, 21 de dezembro de 2025

Axé, fé e liberdade artística: um debate que pede diálogo público



Nos últimos dias, a cantora Claudia Leitte passou a ocupar o centro de um debate público que extrapola o universo artístico e alcança temas sensíveis da vida social brasileira, como liberdade religiosa, patrimônio cultural e intolerância simbólica. No dia 02 de dezembro de 2025, o Ministério Público do Estado da Bahia ajuizou uma Ação Civil Pública contra a artista, registrada sob o nº 8233054-42.2025.8.05.0001, distribuída para a 7ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Salvador, atribuindo-lhe a prática de intolerância religiosa em razão de alterações feitas, em apresentações públicas, em letras tradicionais do axé music, especialmente aquelas que fazem referência a orixás e elementos das religiões de matriz africana.

O caso rapidamente ganhou destaque na mídia e, segundo amplamente noticiado por veículos como a Gazeta do Povo e outros portais de alcance nacional, o Ministério Público sustenta que a substituição desses termos por referências cristãs — como o uso do nome “Yeshua” em lugar de menções a Iemanjá — não se trataria de um gesto isolado, mas de uma conduta reiterada que contribuiria para o apagamento simbólico de tradições afro-brasileiras. Na ação, o MP requer não apenas indenização por danos morais coletivos, no valor de R$ 2 milhões, mas também o reconhecimento judicial da prática de intolerância religiosa, a imposição de obrigações de não fazer relacionadas à alteração de letras tradicionais e a adoção de medidas de caráter educativo e reparatório.

A defesa da cantora, por sua vez, sustenta que as alterações refletem suas convicções religiosas pessoais e estariam amparadas pela liberdade de expressão artística e pela liberdade de crença, ambas asseguradas pela Constituição Federal. Para esse campo de interpretação, punir ou restringir esse tipo de manifestação poderia abrir um precedente perigoso de censura, especialmente em um país plural e marcado pela diversidade religiosa.

Cumpre registrar, ainda, um aspecto processual relevante. Embora a existência da ação tenha sido amplamente divulgada e a defesa da artista já tenha se manifestado no espaço público, tais manifestações extraprocessuais não produzem efeitos jurídicos diretos no processo. Até o momento, trata-se de uma demanda em fase inicial, sem notícia de decisão judicial de mérito ou mesmo de algum despacho amplamente divulgado, o que reforça que o debate se desenvolveu socialmente antes de qualquer pronunciamento efetivo do Judiciário.

Independentemente do desfecho jurídico que venha a ter, a iniciativa do Ministério Público produziu um fato incontornável: trouxe à arena pública um debate sensível sobre cultura, religião, liberdade artística e memória social. Diante disso, talvez o maior desafio não seja apenas decidir quem tem razão no plano estritamente jurídico, mas compreender como lidar, enquanto sociedade plural, com conflitos simbólicos que atravessam identidades históricas distintas.

É inegável que o axé music não se resume a um gênero musical comercial. Ele nasce e se desenvolve profundamente conectado às tradições afro-brasileiras, às religiões de matriz africana e à história de resistência cultural de populações que, por séculos, sofreram perseguição, invisibilização e apagamento simbólico. Nesse contexto, alterações recorrentes em letras consagradas — sobretudo quando suprimem referências centrais dessa cosmovisão — podem ser percebidas, por parte significativa da sociedade, como uma forma de esvaziamento cultural, ainda que não haja intenção explícita de ofensa.

Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que a liberdade de expressão artística e a liberdade religiosa constituem pilares do Estado Democrático de Direito. A criação artística sempre envolveu releituras, ressignificações e escolhas pessoais, inclusive motivadas por convicções de fé. Reduzir esse aspecto a uma leitura exclusivamente punitiva ou moralizante pode empobrecer o debate e gerar efeitos indesejados, como a sensação de censura ou perseguição religiosa, especialmente em um contexto social já profundamente polarizado.

É justamente nesse ponto que se abre uma alternativa mais fecunda: deslocar o centro da discussão para fora do Judiciário e dos limites estritos de um rito procedimental. O debate público, mediado por iniciativas educativas, culturais e institucionais, permite uma escuta mais ampla, menos adversarial e mais democrática. Nele, artistas, comunidades religiosas, pesquisadores, produtores culturais e o público podem expor suas percepções, dores, expectativas e limites, contribuindo para uma compreensão social mais amadurecida.

Valorizar o diálogo público não significa relativizar a importância do combate à intolerância religiosa. Ao contrário: significa reconhecê-lo como um processo pedagógico contínuo, que se fortalece quando a sociedade compreende as raízes culturais do axé, reconhece a legitimidade das tradições afro-brasileiras e, ao mesmo tempo, aprende a conviver com a diversidade de crenças e expressões individuais.

Reunir opiniões divergentes — de artistas, juristas, líderes religiosos e do público — não é sinal de fragilidade institucional, mas de vitalidade democrática. É nesse espaço de tensão criativa que o pluralismo religioso e cultural pode aprender a coexistir, não pela imposição, mas pelo reconhecimento mútuo, pelo respeito e pela educação.

Mais do que decidir um caso específico, o desafio colocado é o de formar consciências, fortalecer vínculos culturais e construir caminhos de convivência em uma sociedade diversa. E esse é um trabalho que vai muito além dos tribunais.


📷: Rovena Rosa / Agência Brasil