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segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

O mimimi do “pé direito” e a beleza das coisas simples



✨ "Chinelas e cueiros sujos… são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor." – Eça de Queirós


Comecemos a tarde de hoje com um clássico português, citado hoje no site jurídico Migalhas. Porque, convenhamos, se até Eça reconhecia a beleza do cotidiano despretensioso — chinelos espalhados, fraldas sujas, risos de crianças — quem somos nós para ignorar que Havaianas podem ser muito mais do que sandálias? 🩴

O comercial com a atriz Fernanda Torres tornou-se, para alguns setores da direita, uma afronta simbólica ao “pé direito”. E assim surgiu a indignação moralista: boicotes, migração de sandálias para outras marcas e debates calorosos sobre o que é aceitável ou não. 


Fernanda Torres em campanha publicitária - Instagram

No entanto, como o meme que circula nas redes já nos ensina, a verdadeira questão não está na Havaiana em si, mas na incapacidade de enxergar o valor do afeto cotidiano.

O meme é simples, mas espirituoso: recorre a Eça, mistura literatura clássica com emojis modernos e Havaianas, e nos lembra que o cotidiano popular, cheio de pequenas imperfeições, tem sua própria beleza. 

O "mimimi" político? Deixemos de lado. A guerra cultural em torno de um trocadilho de fim de ano perde importância diante da luz do sol entrando em uma casa cheia de amor — e chinelos espalhados pelo chão. 🌞❤️

Portanto, antes de se indignar com sandálias, frisos de propaganda ou símbolos abstratos, lembremos: o valor está na vida simples, na alegria e no afeto diário, não na polêmica. Quem entende isso, sorri. Quem não entende… bem, que continue reclamando das "legítimas", como dizia o saudoso Chico Anísio. 🙄

Rio de Janeiro terá placas para marcar locais de repressão da ditadura


Busto de Rubens Paiva em frente ao antigo Doi-Codi


O Município do Rio de Janeiro sancionou a Lei nº 9.192, de 8 de dezembro de 2025, que cria o Programa Memória, Verdade e Justiça Carioca, destinado a identificar publicamente locais onde ocorreram prisões, torturas, desaparecimentos forçados e ocultação de corpos durante a ditadura civil-militar (1964–1985). A iniciativa visa preservar a memória histórica, garantir o direito à verdade e promover educação cívica sobre os abusos cometidos pelo regime militar.

O projeto teve origem no PL 437/2025, aprovado como PL 437‑A/2025, de autoria da vereadora Maíra do MST (PT), com coautoria de outros parlamentares, Mônica Benício (PSOL) e Leonel de Esquerda (PT). A proposta foi aprovada em segundo turno na Câmara Municipal com 19 votos favoráveis e 10 contrários.


Adequação legal

Especialistas destacam que a lei está em consonância com a Constituição Federal, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro e a Lei Orgânica do município, que garantem direitos fundamentais, proteção à memória histórica e competências para legislar sobre educação e cultura.

A norma também segue as recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que orienta o Estado a preservar a memória das graves violações de direitos humanos e promover a divulgação pública da verdade sobre o período da ditadura. Além disso, a iniciativa está alinhada a tratados internacionais, como a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, e segue orientações do Ministério Público Federal (MPF), que recomenda políticas de memória e justiça de transição.


Locais contemplados no município

A lei abrange prédios e espaços sob jurisdição municipal, incluindo:


  • DOI-CODI/RJ – Tijuca: centro de tortura e prisão de opositores;
  • DOPS-RJ – Centro: investigação, prisão e tortura;
  • Universidades e prédios acadêmicos: repressão a estudantes e professores;
  • Prédios sindicais e industriais históricos: perseguição a líderes de trabalhadores.


Locais sob jurisdição federal ou militar, como quartéis e bases navais, não podem ser obrigatoriamente sinalizados pela lei municipal, mas poderão integrar rotas educativas e sinalizações públicas em áreas próximas, preservando a memória histórica.


Outros municípios fluminenses

A iniciativa carioca pode servir de modelo para outros municípios do estado do Rio de Janeiro, sendo que algumas cidades já estão no mesmo caminho que os vereadores cariocas:


  • Niterói: Delegacia de Polícia e quartéis usados para interrogatórios e vigilância de militantes. Lá tramita o PL 299/2025 que propõe o “Caminho da Memória, da Verdade e da Justiça”, com placas em prédios militares, DOPS, Ginásio Caio Martins e campus da UFF;
  • Petrópolis: Lá funcionou a Casa da Morte (centro clandestino de tortura e execução de militantes), um dos lugares mais conhecidos de repressão política no estado. Além de uma comissão municipal da verdade e de lei proibindo celebrações de ditaduras, é indispensável haver placas oficiais;
  • Volta Redonda: Trata-se de uma cidade industrial do setor metalúrgico (CSN) com histórico de repressão a trabalhadores e líderes sindicais onde poderiam ser realizadas ações de memória via universidades e MPF;
  • Duque de Caxias: Houve prisões e interrogatórios temporários próximo a quartéis e unidades militares estratégicas. Seria sugestiva a instalação de placas em prédios públicos, parques temáticos educativos sobre direitos humanos.
  • Angra dos Reis (e Ilha Grande): houve locais de prisão temporária, monitoramento militar e um presídio político, os quais poderiam receber placas, roteiros educativos ou centros de memória;
  • Campos dos Goytacazes: Foi polo industrial e sindical importante, com perseguição a líderes sindicais e políticos locais. Ações possíveis: Criação de rotas de memória, placas em antigos prédios administrativos ou sedes sindicais;
  • Itaboraí, São Gonçalo, Teresópolis, Cabo Frio e Macaé: Há documentos ou relatos de perseguição política e prisões temporárias nesses municípios, porém menos registro físico preservado. Seus vereadores poderiam propor placas em prédios públicos, ruas ou escolas, bem como mapas digitais de memória histórica.


Impacto da Lei

A Lei nº 9.192/2025 transforma o espaço urbano em instrumento de educação democrática e preservação da verdade histórica, garantindo que as violações cometidas durante a ditadura nunca sejam esquecidas para que nunca mais se repitam.
Mesmo limitada a prédios municipais, a iniciativa dos vereadores cariocas abre caminho para políticas semelhantes em outras cidades fluminenses, fortalecendo a memória da sociedade e o direito à verdade.


📝Nota: Em Mangaratiba, município onde o autor reside, houve vigilância de trabalhadores e transporte de presos políticos durante o regime militar. Até o momento, não existe lei municipal específica aprovada pela Câmara, porém a memória histórica poderia ser preservada via placas públicas ou exposições, bem como proibindo que pessoas que violaram direitos humanos durante a ditadura tenham seus nomes em praças, ruas, escolas e prédios públicos.

📷: Gabriel de Paiva

DIEESE: 70 anos de defesa do trabalhador e da economia brasileira



Nesta segunda-feira, 22 de dezembro de 2025, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) completa 70 anos de história

Criado em 1955, em um Brasil que se industrializava rapidamente e via crescer a urbanização, o DIEESE nasceu da necessidade urgente de informação confiável para o movimento sindical. Na época, sindicatos e trabalhadores enfrentavam salários defasados, desigualdade acentuada e ausência de dados precisos sobre condições de trabalho. A instituição surgiu, portanto, como uma ferramenta técnica e estratégica, capaz de fornecer estatísticas, estudos socioeconômicos e suporte para negociações coletivas.

Os organizadores foram dirigentes de sindicatos da indústria e do comércio, que buscavam criar uma base científica para fortalecer a atuação dos trabalhadores diante de empregadores e do governo. Ao longo das décadas, o DIEESE consolidou-se como referência nacional em análises econômicas, sociais e trabalhistas, sendo constantemente consultado por sindicatos, órgãos públicos, pesquisadores e pela imprensa.


Contribuições ao longo de sete décadas

Ao longo de 70 anos, o DIEESE construiu um legado único:


  • Décadas de 1950-60: levantamento de dados sobre salários, inflação e mercado de trabalho; produção dos primeiros relatórios técnicos.
  • Décadas de 1970-80: ampliação dos estudos para desemprego, desigualdade e condições de trabalho; maior presença junto a sindicatos de todo o país.
  • Décadas de 1990-2000: modernização com digitalização de dados, desenvolvimento de índices próprios e pesquisas nacionais mais sofisticadas.
  • Décadas de 2010-2020: atuação estratégica em políticas públicas, previdência, informalidade e debates econômicos; fortalecimento da capacitação de líderes sindicais.
  • Atualidade (2025): referência técnica reconhecida para negociações coletivas, pesquisas nacionais e regionais, e planejamento socioeconômico, consolidando-se como uma das instituições mais confiáveis do país no estudo do trabalho e da economia.


Entre suas ferramentas mais conhecidas está o cálculo do salário mínimo ideal, que não se limita ao piso oficial definido pelo governo, mas busca cobrir todas as necessidades básicas de uma família de quatro pessoas — alimentação, moradia, saúde, transporte, educação, lazer e previdência.


O salário mínimo do DIEESE: um parâmetro de dignidade

Segundo o DIEESE, o salário mínimo para 2026 deveria ser cerca de R$ 7.067, muito acima do piso oficial projetado de R$ 1.621. Esse valor reflete o mínimo necessário para que trabalhadores e suas famílias vivam com dignidade, como previsto na Constituição Federal, que garante o direito a remuneração suficiente para sustento pessoal e familiar.

Em comparação internacional, esse valor ainda ficaria abaixo do salário mínimo nominal de países como Alemanha e França, mas, considerando o poder de compra local, aproxima-se do padrão de vida observado em países desenvolvidos, permitindo acesso a bens e serviços essenciais de forma compatível com a dignidade humana.

A discrepância entre o salário mínimo oficial e o valor calculado pelo DIEESE evidencia a distância entre o mínimo legal e o mínimo necessário, mostrando que a atual política de reajustes insuficientes não garante plenamente o direito constitucional ao sustento digno.


A importância de um plano gradual

Embora o valor ideal seja elevado, especialistas apontam que um aumento abrupto poderia gerar inflação, sobrecarga de empresas e pressões fiscais, além de resistência política. Por isso, um plano gradual de aumento do salário mínimo — mesmo de 3% real ao ano — se mostra como uma alternativa equilibrada.

Simulações indicam que, com esse ritmo:


  • O poder de compra do trabalhador aumentaria visivelmente a cada década, mesmo em contextos de crise;
  • Benefícios sociais e previdenciários poderiam ser reajustados entre 50% e 100% do aumento real do mínimo, garantindo manutenção do poder aquisitivo sem sobrecarregar o orçamento;
  • Ao longo de 50 anos, o salário mínimo poderia aproximar-se do valor DIEESE, consolidando um processo de valorização contínua e previsível.


Essa estratégia permitiria uma recuperação gradual da dignidade salarial, proteção social sustentável e estímulo ao consumo, fortalecendo a economia sem provocar choques inflacionários ou desemprego massivo.


Conclusão

O DIEESE celebra sete décadas de atuação como guardião dos direitos dos trabalhadores e referência técnica da economia brasileira. Suas pesquisas, dados e estudos têm sido fundamentais para negociações coletivas, políticas públicas e debates econômicos.

O cálculo do salário mínimo do DIEESE e a discussão sobre um plano gradual de valorização ilustram como é possível conciliar direito constitucional, dignidade do trabalhador e sustentabilidade econômica, mesmo em um país marcado por desigualdade histórica.

Ao completar 70 anos, o DIEESE reafirma sua missão: promover informação, conhecimento e justiça social, mostrando que o futuro da política salarial e do trabalho digno pode ser construído com planejamento, técnica e diálogo, transformando lentamente o ideal em realidade concreta.


📷: Assembleia dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo, 1979, a qual foi registrada por Iugo Koyama, conforme extraído de https://radiopeaobrasil.com.br/dieese-lanca-campanha-de-arrecadacao-para-projeto-sobre-seus-70-anos/

domingo, 21 de dezembro de 2025

Axé, fé e liberdade artística: um debate que pede diálogo público



Nos últimos dias, a cantora Claudia Leitte passou a ocupar o centro de um debate público que extrapola o universo artístico e alcança temas sensíveis da vida social brasileira, como liberdade religiosa, patrimônio cultural e intolerância simbólica. No dia 02 de dezembro de 2025, o Ministério Público do Estado da Bahia ajuizou uma Ação Civil Pública contra a artista, registrada sob o nº 8233054-42.2025.8.05.0001, distribuída para a 7ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Salvador, atribuindo-lhe a prática de intolerância religiosa em razão de alterações feitas, em apresentações públicas, em letras tradicionais do axé music, especialmente aquelas que fazem referência a orixás e elementos das religiões de matriz africana.

O caso rapidamente ganhou destaque na mídia e, segundo amplamente noticiado por veículos como a Gazeta do Povo e outros portais de alcance nacional, o Ministério Público sustenta que a substituição desses termos por referências cristãs — como o uso do nome “Yeshua” em lugar de menções a Iemanjá — não se trataria de um gesto isolado, mas de uma conduta reiterada que contribuiria para o apagamento simbólico de tradições afro-brasileiras. Na ação, o MP requer não apenas indenização por danos morais coletivos, no valor de R$ 2 milhões, mas também o reconhecimento judicial da prática de intolerância religiosa, a imposição de obrigações de não fazer relacionadas à alteração de letras tradicionais e a adoção de medidas de caráter educativo e reparatório.

A defesa da cantora, por sua vez, sustenta que as alterações refletem suas convicções religiosas pessoais e estariam amparadas pela liberdade de expressão artística e pela liberdade de crença, ambas asseguradas pela Constituição Federal. Para esse campo de interpretação, punir ou restringir esse tipo de manifestação poderia abrir um precedente perigoso de censura, especialmente em um país plural e marcado pela diversidade religiosa.

Cumpre registrar, ainda, um aspecto processual relevante. Embora a existência da ação tenha sido amplamente divulgada e a defesa da artista já tenha se manifestado no espaço público, tais manifestações extraprocessuais não produzem efeitos jurídicos diretos no processo. Até o momento, trata-se de uma demanda em fase inicial, sem notícia de decisão judicial de mérito ou mesmo de algum despacho amplamente divulgado, o que reforça que o debate se desenvolveu socialmente antes de qualquer pronunciamento efetivo do Judiciário.

Independentemente do desfecho jurídico que venha a ter, a iniciativa do Ministério Público produziu um fato incontornável: trouxe à arena pública um debate sensível sobre cultura, religião, liberdade artística e memória social. Diante disso, talvez o maior desafio não seja apenas decidir quem tem razão no plano estritamente jurídico, mas compreender como lidar, enquanto sociedade plural, com conflitos simbólicos que atravessam identidades históricas distintas.

É inegável que o axé music não se resume a um gênero musical comercial. Ele nasce e se desenvolve profundamente conectado às tradições afro-brasileiras, às religiões de matriz africana e à história de resistência cultural de populações que, por séculos, sofreram perseguição, invisibilização e apagamento simbólico. Nesse contexto, alterações recorrentes em letras consagradas — sobretudo quando suprimem referências centrais dessa cosmovisão — podem ser percebidas, por parte significativa da sociedade, como uma forma de esvaziamento cultural, ainda que não haja intenção explícita de ofensa.

Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que a liberdade de expressão artística e a liberdade religiosa constituem pilares do Estado Democrático de Direito. A criação artística sempre envolveu releituras, ressignificações e escolhas pessoais, inclusive motivadas por convicções de fé. Reduzir esse aspecto a uma leitura exclusivamente punitiva ou moralizante pode empobrecer o debate e gerar efeitos indesejados, como a sensação de censura ou perseguição religiosa, especialmente em um contexto social já profundamente polarizado.

É justamente nesse ponto que se abre uma alternativa mais fecunda: deslocar o centro da discussão para fora do Judiciário e dos limites estritos de um rito procedimental. O debate público, mediado por iniciativas educativas, culturais e institucionais, permite uma escuta mais ampla, menos adversarial e mais democrática. Nele, artistas, comunidades religiosas, pesquisadores, produtores culturais e o público podem expor suas percepções, dores, expectativas e limites, contribuindo para uma compreensão social mais amadurecida.

Valorizar o diálogo público não significa relativizar a importância do combate à intolerância religiosa. Ao contrário: significa reconhecê-lo como um processo pedagógico contínuo, que se fortalece quando a sociedade compreende as raízes culturais do axé, reconhece a legitimidade das tradições afro-brasileiras e, ao mesmo tempo, aprende a conviver com a diversidade de crenças e expressões individuais.

Reunir opiniões divergentes — de artistas, juristas, líderes religiosos e do público — não é sinal de fragilidade institucional, mas de vitalidade democrática. É nesse espaço de tensão criativa que o pluralismo religioso e cultural pode aprender a coexistir, não pela imposição, mas pelo reconhecimento mútuo, pelo respeito e pela educação.

Mais do que decidir um caso específico, o desafio colocado é o de formar consciências, fortalecer vínculos culturais e construir caminhos de convivência em uma sociedade diversa. E esse é um trabalho que vai muito além dos tribunais.


📷: Rovena Rosa / Agência Brasil

Verão



Inspirado no Verão de Giuseppe Arcimboldo — em que a estação aparece como rosto feito de frutos maduros —, a estação no Brasil e no Hemisfério Sul também pode ser lida como um retrato coletivo: uma soma de tempos, afetos, excessos e promessas.


Aqui, o verão começa em dezembro, quando o ano ainda pulsa com as ruas lotadas de consumidores indo às compras. É estação que não chega sozinha: vem acompanhada do encerramento do calendário escolar, das férias, das malas improvisadas, das estradas cheias, dos aeroportos lotados. O calor não é apenas climático; é social. O país desacelera em alguns setores e acelera em outros. A rotina se reorganiza.


O verão brasileiro é inseparável do Natal e do Ano Novo — datas que, sob o sol forte, ganham outro sentido. As mesas se abrem, as famílias se reúnem, mesmo entre ausências e silêncios. Há reencontros, há conflitos, há tentativas de recomeço. Entre rabanadas e frutas geladas, o ano se despede e outro se anuncia, como se o calor ajudasse a dissolver o que ficou pesado demais.


Janeiro chega com cara de promessa. Para muitos, é tempo de viagem, de praia, de pés na areia e sal na pele. Para outros, é tempo de trabalho redobrado, de cidades vazias e transporte irregular. O verão, como em Arcimboldo, é abundante — mas desigual. Enquanto uns desfrutam, outros resistem às ondas de calor, às contas altas, à falta de sombra e de água.


Fevereiro traz o retorno gradual da rotina e, com ele, o Carnaval. A estação então se torna corpo em movimento: música, rua, suor, fantasia, crítica e alegria misturadas. O verão brasileiro é também expressão cultural, ocupação do espaço público, invenção coletiva de felicidade — ainda que breve.


Em março, o verão se despede oficialmente. As aulas retornam, o calendário volta a se impor, mas o calor insiste. Ele se prolonga até abril, lembrando que os ciclos naturais nem sempre obedecem às datas formais. Como na vida, as transições são difusas.


E quando as primeiras chuvas mais constantes chegam, ecoam versos conhecidos:

São as águas de março fechando o verão…

A canção de Tom Jobim traduz o sentimento nacional: o verão não termina de forma abrupta; ele se dissolve. Leva consigo excessos, cansaços, amores rápidos, promessas não cumpridas — e deixa a expectativa de recomeço.


Assim como no quadro de Arcimboldo, o verão no Brasil é feito de múltiplos elementos: natureza, tempo, corpo, política, afeto e memória. É estação de plenitude, mas também de desgaste. De alegria e de alerta. Um rosto coletivo composto de sol, suor, música, festa e desigualdade — belo, intenso e, inevitavelmente, passageiro.

MPF Processa a União por Ataques à Memória de João Cândido: Um Marco no Direito à Memória no Brasil



No final deste ano de 2025, o Ministério Público Federal (MPF) tomou uma iniciativa sem precedentes ao ajuizar uma ação civil pública contra a União, questionando manifestações oficiais da Marinha do Brasil que, segundo o órgão ministerial, atacaram a memória histórica de João Cândido Felisberto — líder da Revolta da Chibata, um dos episódios mais emblemáticos da luta contra a violência institucional e o racismo no país.

A ação, ainda no início de seu trâmite (sem contestação apresentada até o momento), está registrada sob número 5138220-44.2025.4.02.5101 e demanda, sobretudo, a responsabilização civil da União por dano moral coletivo, com pedido de indenização de R$ 5 milhões, cujo montante deve ser aplicado exclusivamente em projetos de valorização da memória de João Cândido e de enfrentamento ao racismo estrutural.


O Caso: Do Debate Legislativo à Justiça Federal

A controvérsia teve origem em abril de 2024, quando o comandante da Marinha, em carta à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, tomou posição contrária à proposta de incluir João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria – o registro simbólico das figuras que o Estado brasileiro reconhece como essenciais para sua história. Nesta carta, o militar qualificou a Revolta da Chibata como uma “deplorável página da história nacional”, atribuindo adjetivações negativas aos revoltosos.

Para o MPF, a postura oficial não se limita a uma opinião histórica: trata-se de um ato institucional que desabona um personagem já anistiado e cuja história expressa valores democráticos e de resistência contra desigualdades. Ao fazer isso, a Marinha — e por extensão o Estado — estaria violando normas constitucionais, tratados internacionais e a própria lei de anistia que restabeleceu a honra de João Cândido e seus companheiros.


Quem foi João Cândido e a Revolta da Chibata?

João Cândido Felisberto é uma das figuras mais relevantes da história do Brasil republicano. Em novembro de 1910, ele liderou a Revolta da Chibata, um movimento de marinheiros contra as práticas de punição corporal — em particular a chibata — que eram aplicadas de forma degradante, desumana e desproporcional, afetando principalmente soldados negros e pobres.

Os revoltosos tomaram o controle de navios estratégicos da Marinha na Baía de Guanabara e exigiram o fim dos castigos físicos e a melhoria das condições de trabalho; após negociações, essas exigências foram formalmente aceitas. No entanto, dias depois, muitos participantes foram presos, perseguidos e marginalizados, e João Cândido passou os anos seguintes longe de qualquer reconhecimento oficial.

Com o passar do tempo, sua luta foi sendo resgatada pela historiografia, pela cultura popular — inclusive no samba e em livros — e pelo movimento negro brasileiro. Experiências coletivas de resistência ganharam novo significado, e Cândido passou a ser visto como um símbolo de luta contra a violência institucional e de combate ao racismo estrutural.


O Direito à Memória: Um Conceito Jurídico em Jogo

O cerne da ação do MPF não se resume à discussão sobre heroísmo ou glória histórica. Trata-se de direito constitucional à memória e à preservação da dignidade histórica de agentes coletivos e individuais que contribuíram para a promoção de direitos fundamentais.

No entendimento do MPF, a manifestação oficial da Marinha deslegitima esse direito quando desqualifica um personagem cuja memória foi formalmente alçada à condição de reparação histórica pela própria lei de anistia — Lei nº 11.756/2008 — o que confere ao debate uma dimensão jurídica que ultrapassa o simples jogo de opiniões.

Além disso, a ação aponta que as declarações institucionais podem violar:


  • Princípios constitucionais relacionados à dignidade da pessoa humana e ao pluralismo de ideias;
  • Tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil;
  • Normas de proteção ao patrimônio histórico-cultural, quando o Estado se recusa a reconhecer a relevância de uma narrativa que faz parte de sua própria formação social.


Obstáculos Jurídicos à Vista

Para que o MPF alcance êxito, o processo terá de enfrentar e superar algumas questões decisivas:


1. Liberdade de expressão institucional x legalidade de atos estatais
A União poderá sustentar que uma instituição pública tem o direito de manifestar sua interpretação histórica. O desafio será demonstrar que, quando esse discurso parte de um órgão oficial e impacta a honra histórica de quem foi legalmente anistiado, ele ultrapassa a fronteira da mera opinião e se configura em dano moral coletivo.


2. Prova do nexo causal com o dano moral coletivo
O MPF terá de demonstrar que a divulgação de documentos oficiais com expressões depreciativas gerou ou pode gerar um impacto social negativo envolvendo a memória coletiva, e que esse impacto exige reparação jurídica.


3. Interpretação da lei de anistia de 2008
A defesa da memória de João Cândido se apoia não só no texto da lei, mas também no seu espírito reparador e simbólico — o que implica que a própria lei tenha efeitos interpretativos mais amplos do que uma simples declaração formal de anistia.


Implicações Políticas e Culturais

Mais do que um embate judicial, a ação do MPF insere-se em um debate mais amplo sobre quem escreve a história do Brasil e de que maneira se reconhecem as lutas coletivas por direitos. Isso tem reflexos diretos sobre a maneira como escolas, instituições públicas e a sociedade civil compreendem episódios históricos que envolvem desigualdades raciais e relações de poder.

Reconhecer ou negar a importância de figuras como João Cândido — no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria ou no imaginário coletivo — simboliza muito mais do que um título honorífico: é reconhecer que o Estado brasileiro tem a responsabilidade de enfrentar seu passado de violência e discriminação, não apenas de celebrá-lo quando conveniente.

Ao final, a ação do MPF pode abrir caminho para que o direito à memória histórica seja tratado como um direito fundamental concreto, e não como tema acessório ou meramente cultural.


📌 Nota pessoal do autor

Vale lembrar, como destacado em meu artigo do mês passado (Novembro de 1910: quando a chibata virou história), que meu bisavô, Francisco Ancora da Luz (1883 - 1951), foi contemporâneo de João Cândido, vivendo na mesma época dessas experiências dramáticas e formativas do Brasil republicano — um vínculo geracional que reforça a importância de resguardar a memória daqueles que resistiram, lutaram e ensinaram, mesmo na adversidade, sobre dignidade e direitos.


📷: Foto do Marinheiro João Cândido no Jornal Gazeta de Notícias, de 31 de dezembro de 1912. Imagem de domínio público, extraída da Wikipedia.

A EC 138/2025 e os professores que pediram exoneração: efeitos jurídicos, limites e caminhos possíveis



No artigo anteriormente publicado neste blogCongresso promulga emenda que amplia possibilidade de acumulação de cargos por professores — foi abordada a relevância da Emenda Constitucional nº 138/2025, que alterou o artigo 37 da Constituição Federal para ampliar as hipóteses de acumulação de cargos por docentes da educação pública, desde que haja compatibilidade de horários e observância do teto constitucional.

A promulgação da emenda foi recebida com alívio por muitos professores e redes de ensino, especialmente em um contexto de escassez de profissionais qualificados no magistério. No entanto, a mudança constitucional também reacendeu um debate sensível: o que fazer em relação aos professores que, antes da EC 138/2025, não tiveram outra alternativa senão pedir exoneração de um de seus cargos, diante de interpretações restritivas sobre acumulação, muitas vezes impulsionadas por cruzamentos de dados realizados pelos Tribunais de Contas?


A situação anterior e o dilema vivido por professores

Antes da EC 138/2025, a redação do artigo 37, XVI, da Constituição gerava insegurança jurídica. A noção de “cargo técnico ou científico”, quando acumulado com o de professor, sempre foi objeto de interpretações divergentes. Na prática, professores aprovados em concursos públicos acabaram sendo pressionados a optar por um dos vínculos, sob risco de processos administrativos, devolução de valores ou imputações pelos órgãos de controle.

Em muitos casos, o pedido de exoneração não decorreu de uma escolha livre, mas de um contexto de forte constrangimento institucional, em que a alternativa apresentada era sair voluntariamente ou enfrentar sanções mais gravosas. Esse histórico explica por que a EC 138/2025, embora não trate expressamente do passado, provocou questionamentos legítimos sobre seus efeitos indiretos em situações pretéritas.


Argumentos contrários: limites constitucionais e segurança jurídica

Do ponto de vista jurídico, é preciso reconhecer os argumentos contrários a qualquer tentativa de correção automática dessas exonerações. Emendas constitucionais, como regra, produzem efeitos para o futuro, não desfazendo atos administrativos já consumados. Uma norma que determinasse, de forma genérica, a reintegração automática de servidores exonerados poderia violar princípios como:


  • a irretroatividade das normas;
  • o concurso público;
  • a segurança jurídica;
  • a separação de poderes.


Além disso, soluções amplas e automáticas tenderiam a gerar alto impacto orçamentário e forte resistência dos Tribunais de Contas, aumentando o risco de judicialização e de declaração de inconstitucionalidade.


Argumentos favoráveis: mudança constitucional e revisão de atos administrativos

Por outro lado, há argumentos relevantes em favor da reavaliação desses casos, desde que feita com cautela. A EC 138/2025 deixou claro que a interpretação anteriormente aplicada era excessivamente restritiva e não correspondia à finalidade constitucional de valorização do magistério.

Nesse contexto, sustenta-se que a exoneração ocorrida exclusivamente em razão da antiga leitura do texto constitucional pode ser objeto de revisão administrativa, não para garantir direitos automáticos, mas para verificar se:


  • a exoneração decorreu efetivamente da questão da acumulação;
  • atualmente haveria compatibilidade de horários;
  • o cargo ainda existe e atende ao interesse público;
  • a Administração possui necessidade de recomposição de seu quadro docente.


Não se trata de aplicar a emenda retroativamente, mas de reexaminar atos administrativos à luz de um novo parâmetro constitucional, reconhecendo que muitos deles foram praticados em um ambiente de insegurança jurídica.


O papel dos estados e municípios: caminhos legislativos possíveis

Diante desse cenário, surge uma possibilidade institucionalmente mais segura: a atuação das Câmaras Municipais e das Assembleias Legislativas na elaboração de leis que não imponham soluções automáticas, mas criem procedimentos de revisão individualizada das exonerações ocorridas em determinado período.

Para evitar a inconstitucionalidade, essas normas podem:


  • autorizar expressamente a Administração a reanalisar pedidos de exoneração relacionados à acumulação de cargos;
  • exigir requerimento do interessado, com comprovação documental;
  • estabelecer critérios objetivos de análise;
  • vedar efeitos financeiros retroativos;
  • condicionar eventual retorno ao interesse público e à existência do cargo.


Importante destacar que não se propõe qualquer forma de indenização, mas justamente uma alternativa administrativa que reduza a judicialização em massa, oferecendo uma resposta institucional mais racional e equilibrada.


Uma resposta ao apagão no magistério

Além do aspecto jurídico, há um dado concreto que não pode ser ignorado: o apagão no magistério, especialmente em áreas estratégicas e em regiões mais vulneráveis. Professores experientes, já concursados e conhecedores da rede pública, foram afastados do serviço não por falta de capacidade ou compromisso, mas por um desenho constitucional que agora foi corrigido.

Criar mecanismos legais para revisar essas exonerações, com responsabilidade e respeito à Constituição, não é privilégio, mas uma política pública inteligente de valorização da educação e recomposição de quadros.

A EC 138/2025 abriu uma porta. Cabe agora aos entes federativos decidir se irão fechá-la com receio do passado ou utilizá-la, com prudência, para enfrentar um dos maiores desafios atuais da educação pública brasileira.