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sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Entre a moenda e o bosque: reflexões sobre 2026



Há uma frase do abolicionista Joaquim Nabuco com a qual muito me identifico:


A política é uma moenda: entrado o braço, vai-se todo o corpo.


Nabuco falava da força irresistível com que a vida pública absorve aqueles que, mesmo querendo viver apenas das ideias, acabam sendo puxados pela necessidade interior de agir diante das circunstâncias.

Com o tempo, percebi que essa frase também se cruza com outra imagem clássica da literatura antiga: o apólogo de Jotão, em que as árvores do bosque procuram alguém para governá-las... A oliveira, a figueira e a videira — todas produtivas, úteis e virtuosas — recusam o cargo, cada uma preferindo seguir sua própria função. No fim, quem aceita reinar é o espinheiro, a planta sem fruto e sem sombra, que ameaça queimar quem não se curvar diante dela.

Muito além de qualquer leitura religiosa, o apólogo é uma metáfora política poderosa: quando os que têm algo a oferecer se afastam, o espaço fica livre para quem nada entrega.

E assim, entre a moenda de Nabuco e o bosque de Jotão, fui reconhecendo partes da minha própria história. Entrei na política ainda adolescente, no movimento estudantil de Juiz de Fora, e depois caminhei pela serra de Nova Friburgo, pela defesa ambiental, pelos direitos coletivos, pelas causas das pessoas com deficiência, pelos movimentos anticorrupção, pelas lutas sindicais e pela transparência institucional.

Desde 2012, a Costa Verde se tornou também parte fundamental da minha vida. Em Mangaratiba, ajudei a criar a ONG Mangaratiba Cidade Transparente, atuei em pautas de cidadania, acompanhei processos de revisão do eleitorado e mantive uma prática constante de defesa da legalidade e da participação social. Ao longo de três décadas, passei por blogues, artigos na imprensa, ações populares, denúncias, debates jurídicos e tantas outras frentes que acabaram somando uma identidade política construída no trabalho diário e não em gabinetes.

Olho para trás e vejo que não entrei inteiro na política — entrei pelo braço. Mas as circunstâncias, as urgências e as ausências de muitos fizeram com que eu fosse, pouco a pouco, entrando por completo. Não por ambição, mas por responsabilidade: cada vez que as boas árvores se afastam, o espinheiro encontra terreno fértil.

É por isso que hoje compartilho algo que venho amadurecendo há algum tempo: meu projeto pessoal de vida para 2026 inclui a intenção de apresentar meu nome como pré-candidato a deputado estadual.

Não se trata de campanha, nem de pedido de voto — isso é algo que a lei não permite e que respeito integralmente. Trata-se apenas de dividir com a sociedade um caminho que se tornou natural diante da minha trajetória e do momento histórico que vivemos.

Ainda não é hora de discutir articulações ou alianças. Isso virá com serenidade e diálogo. Mas é, sim, o momento de dizer que estou disposto a continuar contribuindo para um Rio de Janeiro mais democrático, mais transparente e mais comprometido com o interesse público.

Entre a moenda que não permite a neutralidade e o bosque que não pode ser entregue ao espinheiro, sigo construindo, com humildade, a possibilidade de dar um próximo passo.

Se será este o caminho certo, o tempo dirá. Mas é assim que escolho seguir: com coerência, responsabilidade e o desejo sincero de servir à sociedade do meu estado.

O falso patriotismo do PL e a rejeição do Tratado de Proibição de Armas Nucleares



A Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados rejeitou o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN), assinado pelo Brasil em 2017, durante o governo de Michel Temer. A decisão, liderada pelo relator, deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP), e aprovada por votação simbólica, coloca em evidência mais do que uma questão jurídica: evidencia uma estratégia política clara de construção de narrativa em torno do chamado “patriotismo”.


O que o TPAN representa e por que a rejeição não altera nada?

O TPAN é um tratado internacional que visa proibir o uso, desenvolvimento e posse de armas nucleares. Para o Brasil, que já é signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e possui legislação interna que proíbe qualquer programa nuclear bélico, o novo tratado não altera em nada a capacidade de defesa do país nem a sua soberania real. Em outras palavras, a rejeição aprovada pela CREDN não transforma juridicamente o Brasil em um país mais “patriótico” ou mais “independente” — trata-se de uma decisão puramente simbólica.

O voto do relator foi explícito nesse sentido: ele recomendou a rejeição do TPAN, alegando que o tratado seria ineficaz, especialmente porque nenhuma potência nuclear havia assinado o documento. No entanto, do ponto de vista legal e técnico, o Brasil continua impedido de produzir ou usar armas nucleares, independentemente da rejeição do tratado.


A dimensão política e simbólica?

É nesse contexto que se percebe o que pode ser chamado de “falso patriotismo”. O PL, partido que historicamente já buscou construir uma narrativa nacionalista e ligada à soberania, parece usar a rejeição do TPAN como ferramenta de posicionamento político. Ao se colocar contra o tratado, o partido cria uma narrativa de defesa da soberania e das Forças Armadas, mesmo que não haja impacto real na política de defesa do país.

Paralelamente, a oposição direta ao governo Lula, que desde o início de seu mandato tem resgatado símbolos de soberania e reforçado a política externa brasileira em acordos multilaterais, reforça o caráter instrumental dessa decisão. O PL, ao se apresentar como defensor de um “Brasil forte e soberano”, tenta recuperar o discurso de patriotismo, que atualmente tem sido associado à imagem do presidente Lula no cenário nacional.


Evidências de que o patriotismo do PL é instrumental?

Alguns sinais deixam claro que a narrativa do partido é mais performativa do que substantiva:


  1. Rejeição de um tratado que não altera a capacidade nuclear do Brasil – o que mostra que a ação é simbólica e não técnica.
  2. Registro de membros do PL defendendo posições radicais, incluindo a admiração por figuras internacionais como Donald Trump ou até a ideia de intervenções externas, reforçando um discurso de oposição extrema.
  3. Uso das redes sociais e da visibilidade parlamentar para reforçar a narrativa de “defesa da soberania nacional”, sem que isso se traduza em mudanças concretas na política de defesa.


Mesmo deputados do PT, como Arlindo Chinaglia e Carlos Zarattini, que atuaram para aprofundar o debate sobre o TPAN e manifestaram posições favoráveis à ratificação, ficaram à margem da decisão simbólica aprovada pela comissão.


Conclusão: uma narrativa performativa

A rejeição do TPAN pelo PL e seus aliados não fortalece a soberania do Brasil. Ao contrário, serve como um instrumento de construção de identidade política, com claro objetivo de criar contraste com o governo Lula e resgatar a narrativa de patriotismo que antes parecia monopolizada pela oposição. Trata-se de uma estratégia de patriotismo de fachada, voltada mais para mobilizar bases eleitorais e reforçar a imagem do partido do que para qualquer resultado prático ou soberano no plano nacional ou internacional.

Em última análise, o episódio evidencia a crescente politização de temas de segurança nacional no Brasil, em que discursos de “defesa da pátria” podem ser utilizados como ferramenta de marketing político, desvinculada da realidade jurídica e estratégica do país. O debate sobre soberania, neste caso, mostra-se menos sobre defesa efetiva e mais sobre performatividade política, em um momento em que o PL busca reposicionar sua identidade simbólica e eleitoral no cenário nacional.

Santa Catarina e o retrocesso nas políticas de inclusão: a aprovação do PL 753/2025 e o futuro das cotas raciais


Jeferson Baldo/Agência AL


Nesta semana, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) aprovou o Projeto de Lei nº 753/2025, de autoria do deputado estadual Alex Brasil (PL), que estabelece a proibição da adoção de cotas raciais e outras ações afirmativas nas universidades estaduais e nas instituições que recebem verbas públicas do estado. A proposição, alinhada a uma agenda conservadora que tem ganhado força na política catarinense, segue agora para sanção do governador Jorginho Mello (PL).


O que diz o PL 753/2025?

Embora o texto aprovado não cite literalmente “cotas raciais”, ele omite esse critério das reservas de vagas que permanecem autorizadas, resultando na vedação prática dessas políticas. A proposta permite apenas três categorias de reserva de vagas:


  • pessoas com deficiência (PCD);
  • critérios exclusivamente econômicos (renda);
  • estudantes oriundos de instituições estaduais públicas de ensino médio.


O projeto Legislativo também impõe multas pesadas de R$ 100 mil por edital que descumprir a proibição e prevê a possibilidade de corte ou suspensão de verbas públicas às instituições que adotarem critérios vedados.

Esse conjunto de dispositivos configura um ataque direto às políticas de inclusão que vinham sendo implantadas em ambientes universitários, especialmente nas universidades estaduais como a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).


Como foi a tramitação?

O PL 753/2025 foi aprovado em sessão da Alesc realizada em 10 de dezembro de 2025, por maioria de votos, em uma votação simbólica — ou seja, sem registro nominal no painel eletrônico, ainda que a mesa diretora tenha citado os parlamentares contrários.

Sete deputados se posicionaram contra a proposta, entre eles Fabiano da Luz (PT), Padre Pedro Baldissera (PT), Neodi Saretta (PT), Marquito (PSOL), Dr. Vicente Caropreso (PSDB), Paulinha (Podemos) e Rodrigo Minotto (PDT).


Críticas políticas: retrocesso ou avanço?

Para os defensores da proposta, o argumento central é que as cotas baseadas em critérios raciais colidiriam com princípios jurídicos como a isonomia e impessoalidade, e que apenas critérios socioeconômicos deveriam ser considerados para a reserva de vagas.

No entanto, corretamente a oposição classifica o projeto como retrógrado, discriminatório e um retrocesso nas políticas públicas de inclusão. O deputado Fabiano da Luz, um dos principais críticos, declarou que a iniciativa “envergonha Santa Catarina” e que as cotas não são privilégios, mas instrumentos de correção de desigualdades históricas profundamente estruturadas na sociedade brasileira. Ele anunciou que o projeto será alvo de ação judicial assim que for sancionado, por considerar que a proposta viola princípios constitucionais e objetivos fundamentais da República, como a redução das desigualdades sociais.

Além do setor político, universidades e institutos federais, como UFSC, UFFS, IFSC, IFC e a própria Udesc, emitiram notas de repúdio à aprovação do projeto, destacando que a medida ignora evidências acadêmicas sobre a importância das políticas afirmativas e representa um ataque às práticas democráticas e de promoção da diversidade no ambiente educacional.


Por que a norma entra em choque com a legislação federal e o STF?

As ações afirmativas, incluindo as cotas raciais, são reconhecidas e regulamentadas em nível federal — como na Lei nº 12.711/2012 (Lei de Cotas), que estabelece reservas de vagas com critérios sociais e raciais para universidades federais — e já foram reiteradamente validadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como compatíveis com a Constituição. O STF considerou que tais políticas são compatíveis com o princípio da igualdade material, um dos pilares do texto constitucional, justamente por sua capacidade de corrigir desigualdades históricas.

A proibição em Santa Catarina, portanto, cria um proposital conflito normativo e constitucional, na medida em que restringe instrumentos de inclusão que são legitimados por norma federal e por entendimentos consagrados pelo STF. Há também a questão da autonomia universitária, prevista constitucionalmente, que garante às instituições de ensino superior a capacidade de definir seus critérios de ingresso e políticas acadêmicas.

Especialistas em direito constitucional e movimentos sociais apontam que o PL pode ser considerado inconstitucional por violar os princípios da igualdade material, da dignidade humana, dos objetivos fundamentais da República (como a redução das desigualdades) e por invadir áreas de competência legislativa da União.


Impactos práticos sobre direitos educacionais

Caso sancionado, o PL 753/2025 terá efeitos concretos sobre o acesso à educação superior no estado. As políticas de ação afirmativa estão historicamente associadas a ganhos de diversidade e inclusão no ensino, beneficiando estudantes de grupos racialmente discriminados que, de outra forma, encontram barreiras quase intransponíveis para ingressar nas universidades. Estudos acadêmicos identificam que essas políticas ampliam o acesso e melhoram resultados socioeconômicos para os beneficiários ao longo de suas trajetórias profissionais e de vida.

Eliminar ou restringir cotas raciais em instituições estaduais coloca em risco décadas de avanços na democratização do ensino superior e pode gerar exclusão adicional de estudantes marginalizados, além de enfraquecer a missão pública de assegurar igualdade de oportunidades no acesso à educação.


Caminhos de resistência: o que a sociedade civil e a oposição podem fazer?

Diante do iminente risco de sanção do governador e da promulgação futura da lei, a sociedade civil organizada, partidos de oposição, movimentos estudantis, sindicatos e entidades de direitos humanos têm diversas frentes de ação possíveis:


1. Mobilização jurídica

  • Ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF, questionando a compatibilidade da lei com a Constituição, a legislação federal e a jurisprudência consolidada do Supremo sobre ações afirmativas e autonomia universitária.


2. Ações no âmbito estadual

  • Mandados de segurança ou ações civis públicas no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) para barrar a aplicação imediata da lei em situações concretas, caso ela entre em vigor.


3. Organização popular e debate público

  • Campanhas educativas e audiências públicas para ampliar o entendimento da população sobre a importância das políticas de inclusão e os efeitos negativos da lei, fortalecendo o debate democrático.


4. Resistência institucional

  • Manifestação de reitores, professores e estudantes, como já ocorrido com notas públicas, ampliando a pressão sobre o governo e a opinião pública.


5. Ações parlamentares

  • Obstrução legislativa e recursos na própria Alesc ou na esfera federal para pressionar pela revogação ou modificação da lei.


Conclusão

A aprovação do PL 753/2025 representa um ponto crítico na política educacional de Santa Catarina, marcado por um movimento político que busca limitar políticas de inclusão e retroceder em direitos adquiridos por meio de lutas históricas. Sua possível sanção significaria institucionalizar um retrocesso que, além de ferir princípios constitucionais e gerar conflitos jurídicos, ameaça concretamente o direito à educação equitativa e igualitária num estado de enorme desigualdade racial e social.

A resposta da sociedade civil e dos setores progressistas será decisiva para defender a inclusão, a justiça social e os princípios democráticos, utilizando todos os instrumentos legais e políticos disponíveis para impedir a aplicação de uma lei que — se sancionada — pode escrever um dos capítulos mais controversos da história legislativa catarinense.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Como a mobilização virou o jogo: a batalha contra a cassação de Glauber



A votação realizada na Câmara dos Deputados em 10 de dezembro de 2025 sobre o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) trouxe à tona não apenas a decisão sobre o mandato de um parlamentar, mas também múltiplas reflexões sobre o funcionamento do regime democrático e do próprio Parlamento brasileiro.


O resultado da votação e seus impactos

Na votação do Plenário, a Câmara aprovou a suspensão de seis meses do mandato de Glauber Braga, substituindo a cassação defendida pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. A suspensão foi aprovada por 318 votos a 141, e houve três abstenções. Com isso, Glauber Braga não perdeu o mandato e, consequentemente, não ficou inelegível por oito anos, o que abriria a possibilidade de disputar eleições futuras — incluindo, por exemplo, pleitos estaduais como o de governador do Rio de Janeiro.

Esse desfecho coloca em perspectiva uma questão fundamental: a cassação e a inelegibilidade não são resultados automáticos em processos que tratam de suposta quebra de decoro parlamentar. A decisão do Plenário ao optar por suspensão — e não cassação — mostra que há espaço para dosimetria da pena e consideração de variáveis políticas e institucionais, sobretudo quando há forte mobilização política e apoio popular.


Contradições e tensões dentro do Parlamento

O episódio também expôs contradições e tensões no comportamento institucional da Casa. No dia anterior à votação, Glauber Braga ocupou a cadeira da presidência da Câmara como ato de protesto contra a inclusão de seu nome na pauta de cassação — ao lado de outras representações, como a da deputada Carla Zambelli (PL-SP) — e foi retirado à força por agentes da Polícia Legislativa.

O fato de a Câmara ter pautado simultaneamente pedidos de cassação de parlamentares de contextos tão distintos intensificou a percepção de “dois pesos e duas medidas”. Se o Plenário tivesse cassado apenas Glauber, enquanto mantinha ou arquivava outros casos, isso poderia ser interpretado como tratamento desigual de condutas supostamente semelhantes — algo que foi amplamente discutido nas semanas que antecederam a votação.


Limites institucionais e disciplina parlamentar

O episódio reforça a necessidade de estabelecer limites claros para a atuação dos deputados, inclusive no que diz respeito a condutas que possam ferir o decoro parlamentar. Ao mesmo tempo, a forma como o processo foi conduzido e a ampla repercussão pública demonstraram a sensibilidade do eleitorado e dos próprios parlamentares em relação ao equilíbrio entre sanções disciplinares e preservação dos mandatos populares.


O poder da mobilização política e da articulação interna

Um dos elementos mais relevantes dessa história foi o papel da mobilização política e da articulação interna do PSOL e de aliados para defender o mandato de Glauber.

Após a aprovação do parecer pela cassação no Conselho de Ética em abril de 2025, a decisão correu em direção ao Plenário da Câmara. A base de apoio de Glauber trabalhou intensamente para transformar um cenário em que a cassação parecia possível — ou mesmo provável — em um resultado de suspensão. Essa articulação envolveu negociação com deputados de diferentes partidos, promoção de votos estratégicos e mobilização de aliados que entenderam ser preferível uma penalidade alternativa a uma perda total de mandato.

Além disso, a ampla repercussão pública — tanto nas redes sociais quanto na imprensa — criou um custo político elevado para uma cassação simples, levando parlamentares a ponderarem os riscos institucionais de um julgamento que pudesse ser percebido como injusto ou seletivo.


Contexto histórico recente de cassações na Câmara

Historicamente, a cassação de mandatos por quebra de decoro parlamentar na Câmara tem sido rara e geralmente ocorre em casos de grande gravidade ou escândalo — como foi com André Vargas (2014), cassado por envolvimento em esquema de corrupção ligado à Operação Lava Jato; Eduardo Cunha (2016), por ocultação de contas e obstrução de investigação; e Flordelis (2021), em razão do suposto envolvimento no assassinato de seu marido.

Comparado a esses casos — em que havia acusações de crimes graves e repercussão nacional — o episódio de Glauber, apesar de controvertido, se insere em outra dimensão de análise política e institucional. Isso ajuda a compreender por que o Plenário optou por uma pena alternativa à cassação.


A importância de respeito aos mandatos populares e ao equilíbrio entre os Poderes

A votação de ontem colocou em evidência um ponto crucial da democracia brasileira: o respeito aos mandatos populares e a necessidade de que qualquer sanção a um parlamentar seja proporcional, transparente e baseada em critérios sustentáveis. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar a necessidade de que a própria Casa Legislativa preserve sua credibilidade e disciplina interna.

A decisão de suspender o mandato — em vez de cassá-lo — aponta para um equilíbrio delicado entre a punição por condutas inadequadas e a preservação de direitos políticos essenciais. Hoje, mais do que nunca, é fundamental que o Parlamento exerça seu papel com firmeza, mas também com responsabilidade, respeitando os princípios democráticos e o pluralismo que sustentam o Estado de Direito.

Lula em Minas: a indefinição que preocupa e o pêndulo decisivo das eleições de 2026

 


Inegavelmente, a indefinição de um candidato governista claro em Minas Gerais pode, de fato, representar um risco político para a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, especialmente porque o estado tem um papel decisivo no mapa eleitoral brasileiro. Tentarei adiante destrinchar por que isso acontece e em que medida tal incerteza pode impactar o projeto de reeleição em 2026:


🧠 1. Minas é um “estado‑pêndulo” decisivo


Minas Gerais é um dos maiores colégios eleitorais do país e historicamente decide eleições presidenciais: desde 2002, o candidato mais votado em Minas foi também eleito presidente.
Isso amplia a importância de ter um palanque eleitoral forte e definido no estado.


❓ 2. A falta de um candidato claro


Atualmente, o PT e seus aliados ainda não têm um nome definido para a corrida ao governo de Minas em 2026, apesar de Lula ter feito visita ao estado para reforçar presença política.
Alguns fatores por trás disso incluem:


  • Rodrigo Pacheco (PSD), que era considerado o candidato preferido de Lula, não sinaliza mais intenção firme de disputar o governo e pode deixar a vida pública.
  • Nomes cogitados, como Alexandre Kalil (PDT) ou Tadeu Leite (MDB), ainda não têm definição consolidada, e diferentes segmentos debatem apoio ou resistência a cada alternativa.
  • Por outro lado, pesquisas recentes mostram que candidatos de direita (como Cleitinho Azevedo — Republicanos) ocupam posições de liderança na corrida estadual, com cerca de 38% das intenções de voto, enquanto muitos eleitores ainda não definiram suas preferências.


Essa indefinição pode gerar insegurança eleitoral no PT, pois dificulta a construção de um palanque claro e forte em um estado tão relevante para o desenrolar da eleição presidencial.


⚠️ 3. Impactos potenciais sobre a campanha presidencial de Lula


✔️ a) Menor capilaridade local

Sem um candidato robusto ao governo estadual, a campanha de Lula pode encontrar menores sinergias de mobilização em Minas, o que reduz a capacidade de transferir votos entre eleições majoritárias e presidenciais.


✔️ b) Efeito na percepção de competitividade

Eleitores indecisos ou moderados podem interpretar a indefinição como falta de coesão ou fragilidade estratégica do campo governista, podendo refletir em menor confiança no projeto de reeleição.


✔️ c) Aumento da competitividade local

Com a oposição ou candidaturas de centro e direita mais bem definidas localmente, Lula pode enfrentar cenários mais competitivos em Minas do que em outros estados — o que requer esforços adicionais para consolidar apoio.


🎯 4. Por que esse risco não é definitivo?


Apesar dos desafios mencionados:


  • Lula continua liderando cenários nacionais em 2026, e pesquisas indicam vantagens contra potenciais adversários em vários estados, incluindo Minas.
  • A indefinição local pode ser superada com articulação política interna: se o PT e aliados conseguirem um nome competitivo até o início de 2026, ou mesmo articulações de apoio entre lideranças regionais, isso pode restabelecer um palanque forte.
  • Além disso, o foco do PT em políticas públicas e presença institucional no estado (como visitas e eventos federativos) serve como esforço para compensar a falta de um candidato estadual definido no curto prazo.


🧩 Conclusão


Realmente a falta de um candidato governista claro em Minas Gerais, conforme apontam matérias recentes, pode representar um obstáculo para a reeleição de Lula em 2026, sobretudo por dificultar a consolidação de um palanque forte em um estado que tradicionalmente “pende” a favor do vencedor presidencial.

No entanto, esse impacto não é necessariamente irreversível: com direcionamento estratégico, definição de nomes competitivos e articulações políticas, inclusive com líderes de outros partidos estaduais e regionais, o PT ainda tem espaço para reverter ou mitigar esse risco antes da campanha propriamente dita.


OBS: Registro da presença do Presidente Lula durante a última visita a Belo Horizonte, em setembro, para o lançamento nacional do programa "Gás do Povo". Créditos de imagem atribuídos a Flávio Tavares/O Tempo

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Glauber fica!



Nesta quarta-feira (10 de dezembro de 2025), a Câmara dos Deputados votou pela suspensão do mandato do deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) por seis meses — em vez da cassação, como pleiteava a denúncia.


🗳️ Resultado da votação


  • A suspensão foi aprovada por 318 votos a favor e 141 contra.
  • A decisão substituiu o pedido inicial de cassação — o que impediria o deputado de exercer o mandato e o tornaria inelegível por oito anos.


🔎 O que motivou o processo?


O processo de cassação contra Glauber vinha da recomendação do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara, aprovada em abril deste ano. O relator entendeu que o parlamentar havia violado o decoro ao expulsar, com empurrões e chutes, um militante do Movimento Brasil Livre (MBL) — episódio ocorrido em 2024, no plenário da Casa.

Naquele dia, o deputado alegou ter reagido a ofensas contra sua mãe, e sua defesa disse que a cassação seria desproporcional. Houve forte mobilização de aliados, e ele chegou a fazer greve de fome em protesto.


⚠️ O protesto e a tensão na véspera da votação


Na véspera da decisão, no dia 9, Glauber Braga ocupou a cadeira da presidência da Câmara em protesto — como tentativa de chamar atenção para o que considerava um “pacote” de ataques ao seu mandato. Ele foi retirado à força pela Polícia Legislativa, e a transmissão da sessão foi cortada.

Após a ação, ele criticou o que chamou de “critérios seletivos”: enquanto ocupações anteriores por deputados bolsonaristas foram toleradas por dias sem punição, agora sua permanência algumas horas já resultou em expulsão e risco de perda de mandato.


🎯 A avaliação de Glauber e apoio nas redes


Após a votação, Glauber Braga classificou a suspensão como uma “vitória coletiva”, agradeceu o apoio nas redes sociais e afirmou que seguirá atuando — embora não com a intensidade de antes.

Segundo ele, a mobilização nas últimas 48 horas foi essencial para evitar a cassação. Ainda assim, admitiu que a suspensão não seria o ideal, mas era, diante do cenário, “o menos ruim”.


📌 Por que o resultado importa?


  • A substituição da cassação por suspensão implica que o deputado não será automaticamente inelegível por 8 anos. Ou seja, poderá disputar o pleito para governador do Estado do Rio de Janeiro.
  • O caso expõe as contradições e tensões dentro do Parlamento: o mesmo protesto (ocupação da Mesa) que em outros casos foi tolerado resulta aqui em reação imediata.
  • A decisão envia um recado sobre os limites institucionais e disciplina parlamentar — especialmente no que tange a agressões físicas dentro do Congresso.
  • Politicamente, demonstra que nem sempre o pior cenário (cassação) se confirma — quando há apoio político e mobilização.

Para o desespero da extrema direita, Glauber fica!

Sob o Manto das Rochas Antigas



Sinto o calor suave da manhã antes mesmo de abrir os olhos. O vento que desce do paredão rochoso acaricia minha pele, trazendo o cheiro úmido da rocha fria e o perfume da erva-doce rasteira — a mesma erva que minha mãe usou ontem para curar o machucado da minha pequena irmã. Respiro fundo, escuto o rir baixo dos irmãos, o farfalhar das folhas ao longe, a música distante do rio. Esta é minha casa. Esta é a rocha, a terra, o clima da nossa tribo.


🍃 Vida entre rochas e florestas

Vivemos pendurados entre o paredão e a floresta — nem selva densa como você a conhece, nem savana aberta. A floresta é fragmentada, um mosaico: árvores robustas em torno dos igarapés, trechos abertos onde a luz do sol penetra, arbustos secos aqui, palmeiras ribeirinhas ali, trechos de capim alto. As rochas nos dão abrigo; a floresta, sustento.

O clima é mais seco do que ouço falar da “grande floresta” — há chuvas, sim, quando os ventos mudam, mas há meses de ventos secos, de terra batida, quando dormimos com a pele seca e o rio baixa. Por isso valorizamos cada poça, cada manancial, cada planta que cresce junto ao leito. Nossas roças são pequenas clareiras: mandioca silvestre, frutas de estação — nunca tão abundantes quanto os filhos querem. Por isso caçamos, pescamos, coletamos: tamanduás-gigantes, preguiças de garras longas, aves, peixes de couro liso, crustáceos de rio.

Viver aqui exige vigilância, sabedoria. Sei onde colher raízes comestíveis sem arrancar a planta — para que ela renasça. Sei quais frutos adoçam mais se esperarmos o orvalho da manhã. Sei como rastrear preguiças sem espantar o bando. E sei como ouvir os suspiros da rocha quando a chuva vai cair. Aprendi tudo isso com meu pai, com minha mãe, com os anciãos da tribo — e com os sons da natureza.


📖 Crenças, rostos invisíveis e o sangue da terra

Desde pequeno, minha mãe desenhava na terra — círculos, linhas, símbolos — e sussurrava nomes de espíritos antigos. “Este é o espírito do rio”, dizia, apontando para o ribeiro. “Aquele, o espírito da rocha.” Diziam que cada animal, cada árvore, cada vento tinha alma — e que quando alguém morria retornava a essa alma, para andar em outra forma: folha, nuvem, estrela.

As pinturas nas pedras contavam histórias: caçadas, chuvas, nascimentos, mortes, renascimentos. Eu as observava e sentia que meus dedos — pequenos, inquietos — tocaram o mundo invisível. A cada lua nova reuníamos todos — velhos, adultos, crianças — para cantar, para ouvir os mais velhos contarem. A rocha ecoava, a floresta respondia, o vento se calava.

Vivíamos pouco, por nosso padrão moderno. Muitos não viam mais de quarenta primaveras. Crianças que adoeciam, ferimentos de caça, partos difíceis, fome — tudo fragilizava a vida. Mesmo assim, alguns chegavam aos cinquenta sóis contados, fortes, cheios de cicatrizes, de histórias. Eu já temi a morte cedo; mas sempre soube que tudo — eu, meus irmãos, os espíritos, a floresta — fazemos parte de um círculo maior.


🌙 O sonho — viagem pelo continente

Numa noite de lua tênue, dormi pouco. Sonhei com a rocha rachada, separando-se, revelando um túnel de luz. No fim, um mar infinito, um mar que rugia como feras famintas. E uma voz — antiga, como o vento sobre a rocha — dizia:

 

Leve de volta o que veio de lá. Devolva ao mar o presente do céu, e feche o círculo.”


Acordei tremendo. Joguei-me sobre o peito da minha mulher, que dormia roncando baixinho. Olhei meus filhos adormecidos — olhos fechados de paz. “Preciso partir”, sussurrei. Disse à tribo: “O espírito da rocha me mandou. Preciso cruzar a terra até onde o mar come a terra — para devolver algo.”

Ninguém riu. Havia medo — o mundo além da montanha era mistério. Mas os anciãos assentiram. Me deram uma pequena adaga de pedra, um pedaço de ocre vermelho para pintar meu rosto, um punhado de raízes secas e carne de peixe curada. “Vai com a bênção dos espíritos”, disseram. “Que o vento te leve sem derramar teu sangue em vão.”


🛤️ A travessia — floresta, rios, mares, incógnitas

Parti ao amanhecer. Atravessei vales onde os rios grudavam no barro, ascendi colinas cobertas de capins e árvores retorcidas, cruzei florestas onde os troncos eram grossos, raízes retorcidas como serpentes. Vi preguiças enormes, tatus de armadura, peixes de escamas brilhantes quando o rio refletia o céu. Mas também ouvi trovões distantes — sinais de mudança de clima — e senti o cheiro de terra seca antes da chuva.

Cada noite acendia pequena fogueira, pintava o rosto com ocre vermelho, falava aos espíritos da terra: “Guia-me.” Às vezes dormia sentado, contra uma rocha, e ouvia uivar de feras distantes. Outras, acordava coberto de orvalho, cercado por insetos que pareciam operar um ritual silencioso.

Dia após dia fui me movendo — guiado pelas nascentes de rios, pelos pássaros migrantes, pelas estrelas. Escutei cantos que nunca vi: o canto do mico que cruza a madrugada, o ruído dos jacarés submersos, o farfalhar das palhas se dobrando ao vento. Senti que a terra mudava — o calor aumentava, o ar ganhou umidade, o verde ficou mais espesso e profundo.


🌊 Chegada ao oceano — o fim da jornada

Depois de muitas luas caminhadas, quando meus pés já sangravam de calos, avistei — ao longe — uma mancha azul cintilante. Confirmei: era o mar. O mesmo mar que no sonho tremeluzira em mil espelhos. Meu coração bateu como tigre pronto a saltar.

Ao caminhar pela areia fina, respirei o ar salgado pela primeira vez. O vento trouxe o gosto do sal, do mundo vasto, do fim de uma longa estrada. Tirei de minha bolsa de couro um objeto — um pequeno amuleto feito de osso e ocre, com as marcas da rocha onde nasci. Um símbolo da minha tribo, da rocha, da floresta, do rio.

— Espíritos do mar — murmurei, de joelhos na beira da água. — Aceitem este presente que traz o sangue da terra onde nasci. Que o impulso do mar leve de volta a você o ciclo que começou na rocha.

Fitei o horizonte. Coloquei o amuleto na água. As ondas o envolveram, levaram-no. E senti — por um instante — um sopro frio, ancestral, como se os espíritos da floresta, da rocha, do rio e do mar cantassem juntos. A terra se curvou. O mar rugiu leve. O vento soprou com força — e depois se calou.

Levantei, meus pés afundando na areia molhada. O sol se punha num espetáculo de cores impossíveis. Sorri com o rosto pintado de ocre — finalmente entendi: o mundo era um só. E eu era apenas um mensageiro entre rochas e ondas, entre árvores e água salgada.


✨ Um novo ciclo

Naquele momento, soube que meu nome seria lembrado — não pelos meus filhos apenas, mas pelo vento, pelas águas, pelas pedras e pelas folhas. Que minha travessia uniria dois mundos: o da rocha antiga e o do mar distante. Que a fé dos meus antepassados não nascia de templos, mas de ciclos — ciclos de caça e de pesca, de seca e de chuva, de nascimento e de morte.

Fechei os olhos uma última vez, escutando o bater das ondas. E entendi: a vida — mesmo curta — era suficiente para servir de ponte. E a morte, apenas a curva de retorno.


ONDE O MAR GUARDA OS NOMES


O sol ainda hesitava antes de rasgar o horizonte quando Tibiriçá sentiu, pela segunda vez em sua vida, o cheiro de maresia. Agora não era sonho de criança, nem relato dos mais velhos — era o próprio oceano se abrindo diante dele. O litoral se estendia como um espelho inquieto, e a espuma branca beijava a areia com a insistência de quem quer deixar mensagem.

A natureza ali possuía voz própria.

Bandos de guarás riscavam o céu com suas asas vermelhas como brasas vivas. Botos cinzentos acompanhavam embarcações que pescavam mais ao largo, como se fossem velhos amigos brincalhões. Nas águas rasas, cardumes formavam cores vivas que se moviam como pensamento rápido.

Selvas densas, exuberantes, guardavam sons de animais que ele jamais ouvira: o uivo grave de uma onça pintada, o coaxar quase humano dos sapos da noite, o assovio discreto de pássaros minúsculos, ligeiros como sussurros.

Ali, era como se a terra tivesse decidido não apenas nascer, mas celebrar sua existência.


O Encontro 

Foi na curva de um manguezal que Tibiriçá avistou as primeiras canoas. Não eram como as do seu povo — mais longas, estreitas, adornadas com pinturas geométricas. Os homens que remavam tinham o corpo pintado de azul-escuro e porte magro, acostumado ao mar.

Quando suas embarcações se aproximaram, levantaram as mãos num gesto de paz. Tibiriçá, apesar de cauteloso, retribuiu. A comunicação não se fez por palavras — mas por gestos lentos, sorrisos, e a universal curiosidade humana.

A tribo se chamava Aruanã.

Viviam onde o rio encontrava o mar, misturando sal e doce como quem mistura destino. Suas casas, erguidas sobre estacas, pareciam suspensas entre o céu e a terra. Pescavam com redes trançadas de fibras que as mulheres teciam como quem tece heranças.

As crianças aprendiam a nadar antes mesmo de andar. Os mais velhos contavam histórias que diziam que o mar era um espírito feminino — Iara, a Senhora Profunda — e que cada vida levada pelas ondas era devolvida na forma de chuva.


Rituais, crenças e uma noite sagrada

Na lua cheia, os Aruanã reuniam-se na areia para saudar a maré alta. O ritual começava com silêncio. O fogo crepitava, mas ninguém cantava até que o mar subisse o suficiente para tocar os pés do primeiro sacerdote.

Então vinham os tambores.

Um ritmo cadenciado, orgânico, como o pulsar da terra. Dançavam em círculo, louvando os que partiram, pedindo proteção para os vivos, e agradecendo pelos peixes que alimentavam o corpo e o espírito.

As mulheres pintavam rostos com argila branca; os homens, com carvão. Tibiriçá recebeu dois traços no rosto — um para a coragem, outro para a saudade que trazia consigo.

E foi nessa noite que ele entendeu:

— Cada povo carrega seu próprio modo de conversar com o que não vê — pensou.


A despedida 

Ficou ali por dias que pareceram semanas. Aprendeu técnicas de pesca, ouviu mitos sobre constelações, provou frutos que jamais vira.

Mas o coração — o coração era um instrumento antigo, e o dele tocava sempre a mesma música: a lembrança dos seus.

Os Aruanã, percebendo sua inquietude, preparam-lhe mantimentos secos, uma lança leve, e uma pequena escultura em madeira: um pássaro de asas abertas.

— Para não esquecer que já és de dois lugares — lhe disse o velho artesão.

Partiu ao amanhecer, quando o mar é ouro líquido e o mundo parece nascer de novo.


O Retorno 

A mata era menos ameaçadora agora. Ele caminhou com o respeito de quem sabe que a floresta é senhora e não serva. Animais o observavam, mas sem medo. Ele percebia sua presença integrada, e não intrusa.

Quando, finalmente, avistou a aldeia, não conteve o grito.

As crianças correram primeiro. Algumas já não o reconheciam. Outras o lembraram pelo olhar.

Sua mãe chorou antes de tocar seu rosto, como se quisesse confirmar se era sonho ou carne viva.

Seu pai, homem austero, demorou a falar — mas o abraço que lhe deu dizia tudo o que as palavras não alcançam.


O Reencontro 

Sentaram-se ao redor do fogo naquela noite. Tibiriçá narrou o mar, os pássaros de cor de sangue, os homens à beira d’água, os rituais à luz da lua.

Cada frase plantava uma nova semente de curiosidade nos ouvintes; cada gesto seu criava perguntas.

— Há outros como nós — concluiu — e cada um guarda um jeito de viver o mundo.

Seu pai refletiu em silêncio.

— Então — disse por fim — cresceste.

Tibiriçá sorriu.

Sim. Crescera. Não apenas em passos ou distâncias, mas em horizontes.

E guardou consigo a sensação de que aquela viagem era o início — e não o fim — das perguntas que ainda fariam parte do seu destino.


QUANDO UM NOME É UMA NOVA TRILHA


Os dias seguintes foram de perguntas. Mulheres, caçadores, anciãos, jovens curiosos — todos queriam saber como era viver onde o rio se tornava sal, onde o vento carregava cheiro de outra vida.

Tibiriçá narrava como quem tece, com calma, para que cada fio encontre seu lugar. Falava da pesca com redes, das casas suspensas, dos rituais dedicados à Senhora Profunda, das crianças que nadavam como pequenas lontras e da dança que começava só quando o mar tocava o primeiro pé.

E falava também da estranha sensação de ser estrangeiro e pertencente ao mesmo tempo.

Muitos não compreendiam; outros se encantavam. Contudo, uma coisa era evidente:

— Ele havia voltado diferente.


Conselho dos anciãos 

Chamaram-no para o círculo dos velhos — coisa rara para alguém tão jovem. A fogueira crepitava como se quisesse também ouvir sua voz. O pajé mais antigo, Ubirajara, fitou-o longamente.

— Partiste menino, voltaste com passos de muitos.

Outro acrescentou:

— Trouxeste histórias que não são apenas histórias; são pontes.

Um terceiro perguntou, enquanto o fogo refletia em seus olhos:

— És ainda Tibiriçá, o que nasceu à beira do nosso rio? Ou és outro, moldado por outra água?

Ele respirou — e foi sincero:

— Sou feito de ambos. Carrego a lembrança daqui e o aprendizado de lá. E onde eu for, levo os dois comigo.

Os anciãos se entreolharam. Um silêncio denso se fez.

Naquela aldeia, um nome era mais que um som — era destino, mapa e herança. Receber um nome novo era coisa rara, reservada a quem morria metaforicamente e renascia de outro modo.

Ubirajara então se levantou, ergueu no ar a pequena escultura do pássaro de madeira que Tibiriçá trouxera dos Aruanã, e proclamou:

— Aquele que volta maior do que partiu deve carregar um novo sopro.

A partir de hoje, chamarás Arapuá, O Que Carrega Duas Margens.

A tribo murmurou em concordância.

E assim, diante da fogueira ancestral, Tibiriçá morreu como nome — e nasceu como Arapuá.


Mudanças na aldeia

Com o tempo, Arapuá se tornou uma ponte viva entre mundos.

Introduziu novas formas de pesca. Sugeriu que construíssem depósitos elevados para guardar alimentos e impedir que fossem levados por animais. Trouxe a ideia dos rituais de agradecimento antes de grandes expedições, o que fortaleceu os laços espirituais.

Os jovens viam nele inspiração. Os mais velhos, um olhar maduro, fruto não apenas da idade, mas da vivência.

Mas a maior transformação foi intocável — estava no modo como passaram a olhar o horizonte. Antes, temiam o desconhecido; agora, reconheciam que o desconhecido também podia trazer aprendizado.


A trilha que não se fecha 

Às vezes, já tarde, Arapuá caminhava até a beira do rio. Tirava os chinelos, sentia a terra fria sob os pés e olhava para o céu. Procurava constelações que aprendera com os Aruanã e comparava com as que ouvira de seu avô.

Ele sabia — uma parte dele ainda estava lá, onde as ondas guardavam nomes com espuma branca.

E sabia também que aquela viagem não era a última.

Porque agora, mais do que um destino, ele tinha uma direção:

Unir o que o medo mantinha distante.

Assim, guardou no peito a certeza tranquila: — Um dia, voltaria ao mar não como visitante, mas como mensageiro.

Pois alguns nascem para cuidar da aldeia; outros, para cuidar dos caminhos que levam até ela.

E Arapuá, o Que Carrega Duas Margens, era ambos.


O ECO DE ARAPUÁ


Dizem que toda viagem começa antes do passo — começa quando algo se move por dentro. Arapuá, o que carrega duas margens, aprendeu isso não nos caminhos, mas nos sonhos. Nasceu à beira de um rio e voltou com o mar nos olhos. Tornou-se ponte não porque quisesse, mas porque certas vidas nascem destinadas a atravessar.

Se realmente houve um homem que caminhou da selva até o sal, não saberemos. As pedras não contam nomes próprios, e os ossos não revelam sonhos. No entanto, os muros da floresta guardam silhuetas de caçadores, pássaros, espíritos e danças — e entre elas, quem pode afirmar que não esteja gravada a sombra de alguém como Arapuá?

Talvez seu passo tenha sido o de muitos. Talvez sua coragem tenha sido o temor de todos. Talvez o objeto que devolveu ao mar tenha sido apenas um pedaço de madeira ou, quem sabe, o peso simbólico de uma pergunta antiga demais para ser respondida.

Mas se a jornada de Arapuá existiu — ou se existe apenas agora, enquanto é lida — então ela diz o que a arqueologia ainda sussurra: que naquela era remota, enquanto o gelo derretia e a floresta respirava como um gigante desperto, alguém já pressentia que a vida não termina onde os pés param.

E por isso o conto permanece. Como as pinturas sob o musgo, como o ocre que resiste à chuva, como o medo e o fascínio diante de um horizonte que nunca se repete. Arapuá volta ao futuro cada vez que alguém imagina seus passos. Volta quando uma história busca seu dono. Volta quando leitores silenciosos sentem o chamado que ele sentiu.

Porque algumas viagens não têm rota de retorno — apenas a certeza de que existir é atravessar.

E, de algum modo que não sabemos explicar, todos carregamos duas margens dentro de nós. 🌿🌊🕯️