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domingo, 31 de janeiro de 2021

Parcelamentos de dívidas previdenciárias de prefeituras baseados na inconstitucionalidade de uma lei federal...




No dia 29/01/2021 (última sexta-feira de janeiro), foram publicadas, nas páginas 61, 62 e 63/64 da edição n.º 1288 do Diário Oficial do Município de Mangaratiba (DOM), respectivamente as leis municipais 1.330, 1.331 e 1.332, todas de 29 de janeiro de 2021, tratando de assuntos relacionados ao não pagamento das contribuições previdenciárias do período de março a dezembro de 2020:


- Lei 1331/2021: dispõe sobre a suspensão temporária da contribuição previdenciária patronal do Município ao RPPS – Instituto de Previdência dos Servidores Municipais de Mangaratiba – Previ-Mangaratiba;

- Lei 1332/2022: dispõe sobre a alteração da Lei Complementar nº 33, de 08 de outubro de 2014, que reestrutura o Instituto de Previdência de Mangaratiba e dá outras providências;

- Lei 1333/2021: dispõe sobre o parcelamento de contribuições patronais do Município de Mangaratiba com o Instituto de Previdência dos Servidores de Mangaratiba PREVI-Mangaratiba;


Ora, pelo menos uma dessas leis, como se verá a seguir, mostra-se flagrantemente inconstitucional, contrariando o Texto Magno da nossa República.


A princípio, sobre a Lei Municipal n.º 1.330, de 29 de janeiro de 2020, que dispõe sobre a suspensão temporária da contribuição previdenciária patronal do Município ao RPPS – Instituto de Previdência dos Servidores Municipais de Mangaratiba – Previ-Mangaratiba, com base no § 2º do artigo 9º da Lei Complementar Federal n.º 173, de 27 de maio de 2020, regulamentada pela Portaria n.º 14.816, de 19 de junho de 2020, publicada pela SPREV do Ministério da Economia, a mesma deve ser considerada inconstitucional.


Acontece que a Lei Complementar Federal n.º 173/2020, ao estabelecer a suspensão, na forma do regulamento, dos pagamentos dos refinanciamentos de dívidas dos municípios com a Previdência Social, com vencimento entre 1º de março e 31 de dezembro de 2020, de maneira extensiva ao recolhimento das contribuições previdenciárias patronais devidas aos respectivos regimes próprios, desde que autorizada por lei municipal específica, afrontou diretamente preceitos constitucionais relativos à gestão dos Regimes Próprios no que diz respeito ao dúplice custeio, ao equilíbrio atuarial e financeiro e a vedação à moratória. Esse foi o fundamentado questionamento apresentado pela ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE ENTIDADES DE PREVIDÊNCIA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS (ANEPREM), no ajuizamento da ADI n.º 6541.


O motivo invocado pela ANEPREM é que a redação do caput do artigo 40 da Constituição Federal é clara ao afirmar que:


"Art. 40. O regime próprio de previdência social dos servidores titulares de cargos efetivos terá caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente federativo, de servidores ativos, de aposentados e de pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial"


Assim sendo, decorre da Lei Maior o dever de que os servidores públicos e os entes federados devem contribuir para a sustentabilidade dos Regimes Próprios. Senão vejamos o que leciona o digníssimo Dr. Bruno Sá Freire Martins, patrono da ADI referida, e autor da obra DIREITO CONSTITUCIONAL PREVIDENCIÁRIO DO SERVIDOR PÚBLICO:


"No âmbito dos Regimes Próprios de Previdência o custeio do sistema, por força do que estabelece o caput, do art. 40, da Constituição Federal, é feito de forma bipartite, financiado por intermédio das contribuições vertidas para o regime pelos servidores ativos, inativos e pensionistas e pelo Ente estatal ao qual estes estiverem vinculados" (3ª edição, editora LTr, página 34)


Como citado na exordial da ADI, eis que, recentemente, o Egrégio STF assim reconheceu, ponderando que o sistema não pode ser custeado apenas e tão somente por contribuições vertidas pelo servidor ativo e pelos aposentados e pensionistas, ainda que por prazo determinado:


"Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ARTS. 127, IV, E 134 DA LEI 8.112/1990. PENALIDADE DISCIPLINAR DE CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA OU DISPONIBILIDADE. EMENDAS CONSTITUCIONAIS 3/1993, 20/1998 E 41/2003. PENALIDADE QUE SE COMPATIBILIZA COM O CARÁTER CONTRIBUTIVO E SOLIDÁRIO DO REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA DOS SERVIDORES. PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. 1. As Emendas Constitucionais 3/1993, 20/1998 e 41/2003 estabeleceram o caráter contributivo e o princípio da solidariedade para o financiamento do regime próprio de previdência dos servidores públicos. Sistemática que demanda atuação colaborativa entre o respectivo ente público, os servidores ativos, os servidores inativos e os pensionistas. 2. A contribuição previdenciária paga pelo servidor público não é um direito representativo de uma relação sinalagmática entre a contribuição e eventual benefício previdenciário futuro. 3. A aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria ou disponibilidade é compatível com o caráter contributivo e solidário do regime próprio de previdência dos servidores públicos. Precedentes. 4. A perda do cargo público foi prevista no texto constitucional como uma sanção que integra o poder disciplinar da Administração. É medida extrema aplicável ao servidor que apresentar conduta contrária aos princípios básicos e deveres funcionais que fundamentam a atuação da Administração Pública. 5. A impossibilidade de aplicação de sanção administrativa a servidor aposentado, a quem a penalidade de cassação de aposentadoria se mostra como única sanção à disposição da Administração, resultaria em tratamento diverso entre servidores ativos e inativos, para o sancionamento dos mesmos ilícitos, em prejuízo do princípio isonômico e da moralidade administrativa, e representaria indevida restrição ao poder disciplinar da Administração em relação a servidores aposentados que cometeram faltas graves enquanto em atividade, favorecendo a impunidade. 6. Arguição conhecida e julgada improcedente." (ADPF 418, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-105 DIVULG 29-04-2020 PUBLIC 30-04-2020)


Por isso, decorre daí o correto entendimento exposto pela associação de que o parágrafo 2º do artigo 9º da LC 173/2020, ao permitir que os municípios deixem de cumprir com a obrigação previdenciária patronal durante o período compreendido entre março e dezembro do ano passado, contrariou a regra constitucional do financiamento bipartite, ainda que a autorização tenha se dado por prazo certo. 


Outro relevante argumento levantado na ADI é que a autorização para que o custeio seja parcial durante determinado tempo impõe ônus direto à sociedade. Isto porque, conforme estabelece o § 1º do artigo 2º da Lei n.º 9.717/98 a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios são responsáveis pela cobertura de eventuais insuficiências financeiras do respectivo regime próprio, decorrentes do pagamento de benefícios previdenciários. Ou seja, se as finanças dos institutos de previdência se tornarem insuficientes, caberá aos municípios arcarem co os pagamentos das aposentadorias, pensões e demais benefícios.


Sustentou ainda a instituição autora da ADI que, além das ofensas ao caput do artigo 40 da Constituição Federal, a Emenda Constitucional n.º 103/2019 trouxe a seguinte imposição aos Regimes Próprios:


Art. 9º Até que entre em vigor lei complementar que discipline o § 22 do art. 40 da Constituição Federal, aplicam-se aos regimes próprios de previdência social o disposto na Lei nº 9.717, de 27 de novembro de 1998, e o disposto neste artigo.

(...)

§ 9º O parcelamento ou a moratória de débitos dos entes federativos com seus regimes próprios de previdência social fica limitado ao prazo a que se refere o § 11 do art. 195 da Constituição.


E, por sua vez, o parágrafo 11 do art. 195 da Constituição afirma que:


§ 11. São vedados a moratória e o parcelamento em prazo superior a 60 (sessenta) meses e, na forma de lei complementar, a remissão e a anistia das contribuições sociais de que tratam a alínea "a" do inciso I e o inciso II do caput 


Jamais se pode esquecer de que o texto trazido pela Emenda constitui-se em norma de eficácia plena cuja aplicabilidade desde sua entrada em vigor que se deu no momento de sua publicação, como se depreende do artigo 36 da mesma Emenda, o que ocorreu em 13/11/2019. E, deste modo, o constituinte derivado vedou, desde então, que os recursos previdenciários sejam objeto de parcelamentos por prazo superior a 60 meses e também de moratória de qualquer natureza.


Logo, concordando com o raciocínio muito bem exposto na inicial da ADI, cujo entendimento estou adotando em minha posição quanto à referida Lei Complementar Federal, torna-se mesmo evidente a inconstitucionalidade da edição de norma (tanto no âmbito federal quanto no âmbito municipal) que permita a decretação de moratória do pagamento das contribuições previdenciárias por parte dos entes federados.

 

Apesar da ADI em comento ter sido extinta sem o julgamento de mérito, por haver o ministro Alexandre de Moraes entendido que a ANEPREM não possuiria legitimidade ativa para a propositura da demanda, há que ser reconhecida, mesmo que de maneira incidental, a inconstitucionalidade do artigo § 2º do artigo 9º da Lei Complementar 173/2020, por ferir tanto o disposto no caput do artigo 40 da Constituição Federal e no § 9º do artigo 9º da Emenda Constitucional n.º 103/2019.


É certo que não caberá o ajuizamento de ADI para fins que questionamento da lei municipal perante a Constituição Federal, mas tão somente a propositura de uma representação por inconstitucionalidade diante da Constituição Estadual, através de algum legitimado. Porém, é válida qualquer ponderação incidental nesse sentido como base argumentativa para dar mais respaldo à pretensão de questionar os termos de parcelamento que vierem a ser celebrados.


Mas para que se compreenda qual o questionamento a respeito da Lei n.º 1.332/2021 do Município de Mangaratiba, há que se entender a matéria que foi simultaneamente aprovada, sancionada e publicada. Isto é, a Lei n.º 1.331/2021.



Ora, a Lei n.º 1.331/2021 do Município de Mangaratiba (ordinária), alterou o parágrafo 1º do art. 53 da Lei Complementar Municipal n.º 33/2014, deu uma nova redação ao dispositivo. Porém, o texto original do referido parágrafo até então era este:


"§1º O não repasse das contribuições destinadas ao RPPS no prazo legal implicará na atualização destas de acordo com o que dispõe a Lei n°. 492, de 22 de dezembro de 2005."


Tal Lei de n.º 492/2005 do Município de Mangaratiba, que deu nova redação ao artigo 289 do Código Tributário Municipal (Lei n.º 28/1994), fixou elevados percentuais moratórios a título de multa de modo que, se os tributos não forem pagos no vencimento pelos contribuintes, além dos juros de 1% ao mês:


- até 30 dias de atraso: 5% de multa

- de 31 a 390 dias de atraso: 10% de multa

- acima de 90 dias de atraso: 15% de multa

- se o débito for inscrito em dívida ativa, independente do número de dias de atraso: 20% de multa.


Todavia, a Lei n.º 1.331/2021 do Município de Mangaratiba veio trazer uma condição mais suave para os constantes atrasos e inadimplementos nas contribuições patronais. Pois não somente reduziu os juros de 1% para 0,5%, quanto extinguiu a multa prevista no Código Tributário Municipal apenas para as contribuições previdenciárias, prevendo que a atualização se dê com base no IPCA do IBGE, além de não ter sido nem ao menos apresentada uma justificativa no texto da Mensagem que capeou o projeto de lei aprovado pelo Legislativo Municipal.


Conclui-se, com isso, que a Lei n.º 1.331/2021 do Município de Mangaratiba se mostra flagrantemente lesiva aos interesses da previdência municipal e se torna um incentivo ao habitual não pagamento das contribuições praticado pelos prefeitos que se sucederam até hoje na Chefia do Poder Executivo. Sem contar que a norma criou uma desigualdade no tratamento em relação aos demais tributos que são cobrados do contribuinte. Ou seja, por que o particular continuaria a pagar multa em seus atrasos nos demais tributos com o Fisco enquanto a própria Prefeitura pode obter mais facilidades em relação ao PREVI?


Todavia, mesmo que os questionamentos quanto à Lei n.º 1.331/2021 do Município de Mangaratiba se deem mais nos aspectos político e moral, eis que a Lei n.º 1.333/2021 encontra-se viciada de inconstitucionalidade pelas condições em que autoriza o parcelamento das contribuições patronais do PREVI-Mangaratiba em 60 (sessenta) parcelas nas competências de março/2020 a dezembro/2020 e mais o 13º salário de 2020. 


Observe-se que, durante o período objeto do parcelamento, de março até dezembro de 2020, era vigente a redação anterior do parágrafo 1º do art. 53 da Lei Complementar Municipal n.º 33/2014, cuja alteração ocorreu tão somente a partir de 29 de janeiro de 2021. 


Pelo artigo 150, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.


Ainda que a lei nova possa ser aplicada a ato ou fato pretérito nas hipóteses previstas pelo art. 106 do Código Tributário Nacional (CTN), eis que a retroatividade apenas poderá ser aplicada às penalidades. Ou seja, somente é possível afastar as multas pois a retroação in pejus das leis tributárias, consagrada pelo art. 150, III, "a", da CRFB, tem por objetivo vedar a cobrança de tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. Isto porque foi uma preocupação do constituinte atribuir segurança e certeza às relações jurídicas entre os cidadãos e, mesmo, entre estes e o próprio Estado, vedando-se que leis supervenientes fossem aplicadas a fatos ou atos pretéritos, sendo incontestável a importância social da previdência. 


No caso em tela, a redução dos juros de 1% (um por cento) para 0,5 (meio por cento), como foi feito no Município de Mangaratiba, caracteriza uma espécie de retroação in pejus porque beneficia o ente federado. Logo, cuida-se da lei mais gravosa para a Previdência e mais benigna para o Município, ainda que este seja formalmente o contribuinte.


Por óbvio, a lei que cria ou aumenta tributo só deve incidir sobre fatos ocorridos após a sua entrada em vigor. Porém, em se tratando de contribuições previdenciárias paras pelo ente federado, a lei que, de algum modo, reduz os juros das contribuições devidas à Previdência, só deve incidir sobre fatos ocorridos após a sua entrada em vigor.


Portanto, além da previsão contida no art. 106, inciso II, alínea "c", do CTN restringir-se à multa tributária, quando a mesma constitui penalidade, em que não há como o legislador local afastar os juros de mora (porque estes possuem natureza jurídica diversa da multa moratória), existe aí uma indagação de inconstitucionalidade da Lei n.º 1.332/2021 por violar o princípio que fundamenta o art. 150, III, "a", da CRFB/88.


Ademais, a Lei n.º 1331/2021 do Município de Mangaratiba, por força expressa de seu art. 2º, só entrou em vigor em 29/01/2021, sem haver nenhuma previsão sobre uma questionável aplicação retroativa. E, neste sentido, onde estaria a base legal para que os juros cobrados quanto às contribuições de um período anterior à vigência da Lei n.º 1.331/2021 passe a ser aplicável a dívidas passadas?




Conclui-se que, mesmo que mesmo com a nefasta alteração do parágrafo 1º do art. 53 da Lei Complementar 33/2014 do Município de Mangaratiba, torna-se inviável juridicamente o artigo 2º da Lei n.º 1.332/2021 sobre o parcelamento com os juros reduzidos para 0,5%, gerando contrariedade jurídica com uma matéria já disciplinada por Lei Complementar e que se achava vigente no período objeto desse parcelamento.

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