Páginas

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Minha inseparável advocacia

Por mais que eu tente, acho difícil divorciar-me definitivamente da advocacia. Talvez por isso não deixe de pagar minha anuidade na OAB. E, se algum dia viesse a pedir baixa na inscrição, rabularia em causa própria nos Juizados Especiais Cíveis quando fosse lesado por alguma empresa...

 Neste mês de abril, tenho trabalhado mais com a advocacia do que com os sorvetes da Moleka. Aqui a economia é sazonal. O verão passou, as temperaturas começam a cair e as crianças já estão em aula. Com exceção dos finais de semana e dos feriados ensolarados, a praia de Muriqui fica vazia.  Daí, se no Carnaval era comum as pessoas comprarem de mim bem mais do que 100 picolés num único dia de calor, agora preciso me satisfazer com a comercialização de umas poucas dezenas do produto como um grande ganho dentro da atividade.

Entretanto, tem pintado um ou outro trabalho burocrático que é melhor prestado por advogados. Isto é, certas diligências tipo fazer  cópia de processos, obter informações aqui ou ali, dar entrada num requerimento, etc. Não são tarefas complexas pelas quais posso cobrar um preço bom, mas é melhor do que ficar uma tarde inteira ralando no meio da semana e as pessoas só comprarem dez picolés.
.
Esta semana fui dois dias seguidos ao Rio de Janeiro por ocasião do  julgamento de um recurso de apelação. Trata-se de um processo de 2007, quando ainda morava lá em Nova Friburgo, e que somente fora sentenciado no ano passado com improcedência. Meu cliente havia sido vítima de uma enchente, quatro anos antes da grande tragédia de 2011, chegando a perder seus bens e quase morreu na avalanche de terra que derrubou parte da casa por ele alugada no bairro Vale dos Pinheiros. Porém, após a longa espera na Justiça, tendo ocorrido uma perícia no local , o magistrado de primeira instância entendeu que a Prefeitura não teria que ser responsabilizada pelo c aso, adotando a ultrapassada Teoria da Culpa Anônima da Administração Pública que atenua em muito as omissões praticadas pelo governo.

Tão logo saiu a sentença, recorri no segundo semestre de 2012 protocolizando o recurso em Itaguaí porque já não morava mais em Friburgo (meu cliente também já não vive mais lá e agora se encontra na Região dos Lagos). O apelo foi então distribuído para a 9ª Câmara Cível e caiu nas mãos do desembargador Dr. Carlos Santos de Oliveira. E aí dei sorte de pegar uma turma julgadora que já havia se pronunciado favoravelmente em outro caso semelhante. Antes de viajar ao Rio para fazer a sustentação oral, elaborei os memoriais para distribuir no gabinete de cada magistrado do órgão e descobri que, em 2011, o município de Petrópolis foi condenado pela destruição da casa de moradores daquela cidade devido a um deslizamento de terra. Eis aí a ementa do acórdão cujo desembargador relator foi o Dr. Rogério de Oliveira Souza:


"APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. CHUVAS INTENSAS. DESLIZAMENTO DE TERRA. DESTRUIÇÃO DA RESIDÊNCIA DE MUNÍCIPES. CONDUTA OMISSIVA DO MUNICÍPIO. AUSÊNCIA DE MEDIDAS A FIM DE EVITAR INVASÕES, LANÇAMENTO DE DEJETOS E DESMATAMENTOS EM ÁREA DESTINADA A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL. FATORES QUE CONTRIBUÍRAM PARA O RESULTADO DANOSO. CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR INOCORRENTES. DANOS MATERIAIS E MORAIS DEVIDOS. MAJORAÇÃO DO VALOR COMPENSATÓRIO. Evidenciada a omissão do Estado em coibir a ocupação irregular, o lançamento de lixo e o desmatamento de área destinada à preservação do meio ambiente, acrescida do fato de que tais omissões contribuíram para a ocorrência do evento danoso, fica evidente o dever de indenizar. Caso fortuito ou força maior que inocorrentes, porquanto previsíveis e evitáveis as conseqüências advindas do fenômeno da natureza. Valor do dano moral que deve ser majorado consoante a gravidade das omissões, que ainda contribuem para a ocorrência do evento danoso na atualidade. Conhecimento e provimento do 1º recurso e desprovimento do 2º recurso." (Processo n.º 0006730-28.2002.8.19.0042 - Julgamento em 05/04/2011)

O julgamento do meu recurso não foi diferente. Embora não tenha ainda em mãos o inteiro teor da decisão, que só estará disponível com a sua publicação no Diário Oficial, eis que o raciocínio jurídico do Dr. Carlos foi praticamente idêntico ao de seu colega de Câmara. E a Prefeitura de Nova Friburgo saiu condenada a pagar R$ 20.000,00 para  o meu cliente pelos danos morais que ele sofreu. Uma quantia que, se comparada com a prática atual da Justiça brasileira, estaria acima da média das verbas arbitradas  na aplicação do instituto porque há juízes e desembargadores dando bem menos para situações parecidas (tragédias sem morte e sem lesões corporais graves caracterizadas mais pelo abalo psicológico e pelo fato de  alguém ficar desabrigado).

Todavia, a Justiça evolui dentro de um ritmo que tenta acompanhar as expectativas da média. Estamos numa economia de mercado que convive com a forte predominância do corporativismo político no Estado e a exploração  milenar do trabalhador. A sociedade ainda é bastante desigual, bem como a nossa maneira de pensar, e até poucas décadas atrás o Brasil estava debaixo de um autoritário regime militar no qual mandava "quem pode". Tragédias climáticas aconteciam e ficava tudo por isso mesmo. Se a casa de um pobre caiu, prefeitura nenhuma tinha que indenizar o morador. Ainda mais se fosse inquilino de um imóvel ou se o acidente acontecesse numa comunidade carente com ocupação irregular do solo sendo fruto de invasão em área de proteção ambiental.

Pois bem. Posso dizer que vale a pena ter ido ao Rio nesta terça sustentar meu recurso no Tribunal mesmo tendo aguardado mais de quatro horas após a abertura da sessão devido  aos outros casos que tinham preferência na pauta e que se tornaram verdadeiras aulas de Direito e de vida. Tiveram prioridades os processos do desembargador Rogério  que, por insistência pessoal e de compromisso profissional, compareceu para julgar determinadas ações de importância para a coletividade ainda que em estado de recuperação pós-cirúrgica. Um dos processos foi o mandado de segurança de n.º 0050854-76.2012.8.19.0000, impetrado pelos sindicatos dos médicos e dos enfermeiros contra o desmonte do SUS feito pelo governo Sérgio Cabral. As entidades dos trabalhadores conseguiram ali a heroica anulação de um edital que pretende transferir serviços essenciais de saúde para ONGs...

Assim, voltei para a casa satisfeito com o resultado do meu processo de seis anos de tramitação e também com o alto nível de debate entre os magistrados que compõem a 9ª Câmara Cível do TJERJ. Pois, fugindo à mediocridade de grande parte dos colegiados julgadores deste país, observei que, neste órgão, os desembargadores costumam divergir fundamentadamente uns dos outros  na defesa do entendimento jurídico que acreditam ao invés de somente acompanharem o relator. E vi no julgamento do mandado de segurança citado uma admirável independência do Poder Executivo, contrariando ousadamente os interesses de um governo que, como se sabe, tem  sido bastante venal para a  maioria da população fluminense. E, se o Judiciário inteiro agisse assim, daria  mais gosto advogar porque veríamos resultados mais frequentes na transformação desse mundo hostil no qual vivemos.

Pouco antes do julgamento, ouvi dois profissionais da saúde conversando entre si numa lanchonete. Um deles disse que "a Medicina é uma amante que requer exclusividade". Porém, pensando nesta frase, eu diria que o Direito e a busca da realização da Justiça também são. Por mais que nos deparemos com decisões boas ou más dos magistrados, o inconformismo com determinadas questões não permite que sosseguemos facilmente.

Um comentário:

  1. Já não moro mais em Nova Friburgo, mas espero que muita gente lá, que foi lesada pelas chuvas de janeiro de 2011, encham o Fórum da Comarca de processos contra a Prefeitura. Afinal, foram centenas de mortos e milhares de desabrigados. É preciso que haja Justiça! O cidadão precisa correr atrás porque o Direito não socorre quem dorme.

    ResponderExcluir