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sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!"



"Já era quase a hora sexta, e, escurecendo-se o sol, houve trevas sobre a face da terra até à hora nona. E rasgou-se pelo meio o véu do santuário. Então, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou. Vendo o centurião o que tinha acontecido, deu glória a Deus, dizendo: Verdadeiramente, este homem era justo. E todas as multidões reunidas para este espetáculo, vendo o que havia acontecido, retiraram-se a lamentar, batendo nos peitos. Entretanto, todos os conhecidos de Jesus e as mulheres que o tinham seguido desde a Galileia permaneceram a contemplar de longe estas coisas" (Evangelho de Lucas, capítulo 23, versículos de 44 a 49; versão e tradução ARA)

Interessante saborearmos na Bíblia como que a natureza participou da morte de Jesus. Conforme nos relatam o 3º Evangelho e também os demais sinóticos, teria ocorrido uma escuridão do meio dia ("hora sexta") até às três da tarde ("hora nona"). Um episódio que deve nos motivar para investigar não a sua historicidade, tipo se houve um eclipse ou não, mas, sim, qual a mensagem teológica existente por trás desta narrativa.

Se no batismo do Salvador o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele (Lc 3:21-22), eis que, no Calvário, o firmamento se fechou e o Filho entregou seu espírito ao Pai. Algo que nos lembra as trevas que antecederam a morte dos primogênitos do Egito (Ex 10:22) e também uma profecia de Amós dirigida a Israel, a qual assim diz:

"Sucederá que, naquele dia, diz o SENHOR Deus, farei que o sol  se ponha ao meio-dia e entenebrecerei a terra em dia claro. Converterei as vossas festas em luto e todos os vossos cânticos em lamentações; porei pano de saco sobre todos os lombos e calva toda cabeça; e farei que isso seja como luto por filho único, luto cujo fim será como dia de amarguras." (Am 8:9-10)

Teria essa escuridão sobrenatural uma conexão com algum julgamento divino? Bem, o texto dos evangelhos não nos explicam claramente o motivo, mas podemos entender que a alegria daquela celebração pascal em Jerusalém acabou sendo substituída por um luto pela morte de Jesus (Lc 23:48). Por outro lado, podemos ver nessas trevas a obscurecedora ignorância daqueles que pediram a condenação do Senhor. E, se rejeitaram ao Mestre, da mesma maneira que a geração de Amós não havia prestado a devida atenção ao seu profeta, eis que, em outras palavras, ficariam desorientados (Am 8:11-12). A opção por Barrabás representou a má escolha por um caminho de rebeldia contra o conquistador estrangeiro e que custou a destruição da Cidade Sagrada junto com o seu Templo.

A narrativa também nos fala do rompimento do véu do santuário, uma cortina que separava o inacessível compartimento do Santo dos Santos do restante do Templo pois era lá que ficava a Arca da Aliança, símbolo da Divina Presença, onde apenas o sumo sacerdote entrava uma vez ao ano para fazer a expiação pelos pecados no Yom Kippur ("Dia do Perdão"). Assim sendo, pode-se entender que o rasgo desse véu significou teologicamente a abertura do acesso entre os homens e Deus. É o que nos explica o autor da epístola anônima aos Hebreus ensinando que, ao ter sido ferido o corpo de Cristo, seu sangue nos abriu caminho para o santuário celestial. Com isso, tornavam-se inúteis os sacrifícios de animais realizados na época bem como todo aquele sistema penitencial que mantinha o corruptível sacerdócio sadoquita:

"Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção (...) Porque Cristo não entrou em santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para comparecer agora, por nós, diante de Deus; nem ainda para se oferecer a si  mesmo muitas vezes, como o sumo sacerdote entra cada ano no Santo dos Santos com sangue alheio (...) Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de  Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a casa de Deus, aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura." (Hb 9:11-12,24-25, 10:19-22)

Prosseguindo, não há no 3º Evangelho o desolado grito de abandono do Filho registrado em Marcos e repetido em Mateus. Em Lucas, o autor sagrado parece ter optado por não acentuar o quão terrível foi a morte de Jesus, mas deixou registrada o que pode ter sido a última oração do Mestre, dando a entender o reconhecimento por ele de que a sua morte estava de acordo com a vontade do Pai. Temos aí a citação re-significada de um trecho do Salmo 31 onde Davi exprimiu a sua fé em Deus mesmo diante das adversidades e da angústia.

O fato de Jesus ter recitado este poema bíblico, chamando Deus de "Pai" quando estava morrendo, sugere-nos um ensinamento que deve ser conservado no coração do crente nas vezes em que nos encontramos gravemente doentes ou sofrendo perseguições. Consideremos, pois, os sábios comentários do teólogo namibiano Paul John Isaak da Igreja Evangélica Luterana:

"As palavras finais de Jesus morrendo sobre a cruz Pai nas tuas mãos entrego o meu espírito! também refletem sua fidelidade. Imediatamente após pronunciar essas palavras ele expirou (23:46). Jesus encerrou seu ministério terreno com uma oração tranquila, extraída de Salmos 31:5: "Nas tuas mãos, entrego meu espírito; tu me remiste, SENHOR, Deus da verdade". Nesta oração, o crente declara sua absoluta confiança de que Deus o remirá. A versão de Lucas sobre a crucificação insiste em que Jesus confiou e teve fé em Deus até o fim. Após orar essas palavras, ele morreu. Deus nunca o perdeu de vista." (Comentário bíblico africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, pág. 1279)

Sem dúvida essa é a preparação que necessitamos ter para enfrentarmos corajosamente a nossa passagem e também para fortalecermos os que estão prestes a partir por causa de alguma enfermidade ou acidente. Trata-se de uma situação com a qual muitos ainda não sabem lidar, quer sejam os próprios pacientes de um hospital ou os familiares do doente. Podemos e devemos orar pelo restabelecimento da saúde da pessoa, mas nunca nos esquecendo de que a morte física é um destino natural de todos. Um momento que precisamos encarar com fé e com esperança, colocando nas mãos de Deus tanto o corpo quanto a alma. O Eterno é fiel para nos salvar e não nos deixar perecer no mundo da inexistência.

Curioso é que, no Salmo, o escritor bíblico anteviu o livramento divino em seu favor não permitindo que ele fosse entregue aos seus inimigos (Sl 31:8). No Calvário, porém, o Mestre estava aparentemente nas mãos dos soldados romanos e dos seus opositores que dele zombavam (Lc 23:35-36). Se Deus protegeu Davi de Golias, dos exércitos dos filisteus, da cólera de Saul, da revolta de Absalão e das espadas de tantos outros adversários, eis que, desta vez, permitiu que Jesus viesse a ser morto pelos seus perseguidores. E penso que um bom aprendizado pode ser encontrado quando voltamos ao capítulo 12:

"Digo-vos, pois, amigos meus: não temais os que matam o corpo e, depois disso, nada mais podem fazer (...) Não se vendem cinco pardais por dois asses? Entretanto, nenhum deles está em esquecimento diante de Deus. Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais! Bem mais valeis do que muitos pardais." (Lc 12:4,6-7)

Assim, podemos entender que, no Calvário, o Senhor nos ensinou sobre a vitória que seu discípulo tem sobre a morte. Pois, compreendendo a realidade dessa maneira multidimensional, tornamo-nos capacitados para encarar os mais diversos desafios que se apresentam, inclusive as ameaças e tribulações por causa do Evangelho. Nada poderá nos fazer o homem!

Até então, a situação aparente de abandono havia motivado a zombaria das autoridades e dos soldados em relação a Jesus. Entretanto, assim que o Mestre expirou, o centurião ali presente soube reconhecer a integridade do nosso Senhor. Aquele oficial romano, provavelmente o responsável pelo destacamento encarregado de executar a sentença injusta de Pilatos, foi capaz de confessar algo que, dificilmente, alguém diria acerca de um condenado conforme os valores daquela época. Isto porque, no entendimento comum das pessoas, um homem justo jamais poderia morrer daquela maneira porque a Divindade não permitiria. Logo, a cruz de Cristo veio inaugurar uma nova maneira de pensar e o primeiro a crer nesta mensagem desafiadora foi exatamente um estrangeiro. Alguém que podemos reputar por ignorante em relação às Escrituras Sagradas mas que agiu com sabedoria superior a muitos sacerdotes e escribas, os quais seriam os teólogos da época.

Quanto às multidões ali reunidas, a morte de Jesus provocou uma angustiosa perturbação a ponto das pessoas se auto-flagelarem batendo no peito. Tratava-se, assim, de um sinal de profundo lamento que parece ter tomado conta de todos. Porém, a narrativa nada diz acerca da reação tida pelos discípulos. Estes testemunharam "de longe" os acontecimentos juntamente com as mulheres que acompanharam o grupo desde a Galileia (v. 49).

Certamente que a morte de Jesus nos leva a refletir sobre o porquê da peregrinação que fazemos aqui nesta Terra. O Mestre não caminhou da Galileia para Jerusalém afim de cumprir com mais uma romaria religiosa. Ele veio entregar a sua vida numa cruz! Ali, como seus seguidores ainda distantes dessa compreensão, muitas das vezes contemplamos os fatos procurando entender qual o sentido dessa nossa missão. Aonde Deus pretende nos levar quando estivermos prontos?!

Muito aprendemos com as experiências daqueles primeiros discípulos que testemunharam o sacrifício de Jesus. Mas é certo que tudo o que hoje sabemos ainda deveria estar encoberto para eles de modo que, desde a prisão do Senhor, todos estariam profundamente abalados e precisavam se manter distantes talvez por motivo de proteção. Mas o dia ainda chegaria em que muitos daqueles seguidores também precisariam passar pela cruz. Deste modo, entendemos que, assim como o Salvador deu a sua vida para nos resgatar do pecado, da ignorância e da morte espiritual, também somos chamados para nos dedicarmos ao ideal amoroso de Cristo. Trata-se de cumprir aquilo que Paulo recomendou numa de suas cartas afim de que apresentemos os nossos corpos "por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus" (Rm 12:1), o que, em outros temos, significa uma inteira submissão à vontade divina participando de sua obra.

Tendo essa visão, irmãos, não dá para permanecermos de braços cruzados enquanto tantas vidas se perdem por causa das drogas, da criminalidade, da violência, da miséria, da alienação espiritual, da falta de fé e de esperança. Precisamos sair e proclamar as boas novas do Reino de Deus, anunciando que um outro mundo é possível. Declarando o quanto é grandioso esse amor do Criador, o qual nos aceitou incondicionalmente. Graças a Jesus, podemos convocar todos os homens para que se aproximem de Deus com acessibilidade total e irrestrita, sabendo que serão acolhidos pelo Pai Eterno.

Um ótimo descanso semanal para todos!


OBS: A ilustração acima refere-se a quadro Morte de Jesus pintado pelo artista francês James Tissot (1836-1902). A Obra encontra-se atualmente no Museu do Brooklyn, Nova York. Extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Brooklyn_Museum_-_The_Death_of_Jesus_(La_mort_de_J%C3%A9sus)_-_James_Tissot.jpg

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