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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

"Vigiai!"



"Ainda lhes propôs uma parábola, dizendo: Vede a figueira e todas as árvores. Quando começam a brotar, vendo-o, sabeis, por vós mesmos, que o verão está próximo. Assim também, quando virdes acontecerem estas coisas, sabei que está próximo o reino de Deus. Em verdade vos digo que não passará esta geração, sem que tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão. Acautelai-vos por vós mesmos, para que nunca vos suceda que o vosso coração fique sobrecarregado com as consequências da orgia, da embriaguez e das preocupações deste mundo, e para que aquele dia não venha sobre vós repentinamente, como um laço. Pois há de sobrevir a todos os que vivem sobre a face de toda a terra. Vigiai, pois, a todo tempo, orando, para que possais escapar de todas estas coisas que têm de suceder e estar de pé na presença do Filho do Homem." (Evangelho de Lucas, capítulo 21, versículos de 29 a 36; versão e tradução ARA)

Neste feriado de finados que se passou, fui conhecer a cachoeira de Itimirim, situada no município vizinho de Itaguaí, bem próxima da divisa com Itacuruçá/Mangaratiba e perto da rodovia Rio-Santos. Quando estava retornando pela trilha, um grupo vindo em sentido oposto gritou-me alertando: "Olha a cobra!" Ainda assim, não muito atento, cheguei a passar por cima do animal e, quando olhei para trás, vi uma bela coral com as cores do time do Flamengo (vermelha, preta e mais o branco). Linda! Ela não estava nem aí para a minha presença e nem dos demais ecoturistas. Tranquilamente trafegou perpendicularmente pela picada na mata e retornou para dentro da vegetação. Porém, caso eu houvesse pisado na bicha, seria um adeus blogueiro porque poderia levar uma inesperada picada na perna já que aquela serpente, em se tratando do gênero Micrurus, parece ser mais peçonhenta até do que a jararaca. Se bem que existe também a falsa-coral, sem veneno, o que, confesso, não sei distinguir.

Mas pensando bem, não sei se caberia usar no parágrafo anterior a palavra inesperada. Afinal, estamos em plena primavera, toda a encosta litorânea da Serra do Mar, próxima à BR-101, é considerada "terra quente" e as matas brasileiras são o habitat desses répteis rastejantes. Principalmente os ambientes mais úmidos como as cachoeiras que nós, os seres humanos, insistimos em nos banhar nos dias ensolarados. Logo, a aparição daquele ofídio foi um evento bem previsível.

Igualmente podemos dizer que a vinda do Filho do Homem é algo que deve ser esperado para as gerações desse tempo presente inaugurado por Jesus e por João Batista, desde tal época. Na conclusão magistral do seu Sermão Profético, nosso Mestre amado soube resumir toda a ideia por ele exposta e finalizou exortando os discípulos a vigiarem (verso 36).

Como escrevi no estudo bíblico anterior, o Salvador havia proferido esse discurso escatológico em sua última semana antes de morrer. Era a época da Páscoa judaica (possivelmente final de março ou mês de abril) sendo, portanto, primavera no Hemisfério Norte. Após o rigoroso inverno que faz em Jerusalém, algo parecido com as serras gaúchas e catarinenses, as folhas das figueiras começam a rebrotar. Assim, a paisagem nos montes da Judeia vai progressivamente esverdeando até que, no final de junho, chega o verão - o tempo dos frutos.

Semelhantemente, podemos entender que todas as aflições suportadas no presente servem como um sinal da aproximação de um novo tempo. Ou seja, as guerras, as revoluções, os cataclismos naturais e as perseguições à Igreja caracterizam esse longo momento transitório experimentado pela humanidade. Pois assim como a primavera marca a mudança da estação fria para o calor, com temperaturas oscilando em dias diferentes (hoje mesmo estou encasacado em pleno novembro), podemos dizer que a era atual significa a coexistência entre o novo e o velho. Este tende a terminar enquanto aquele irá permanecer.

Lucas é o único dentre os três sinóticos que esclarece o que vem a ser aquilo que se aproxima, dando um sujeito à segunda oração do versículo 31 do capítulo em estudo. Isto porque, no texto original de Marcos, do qual o 1º e o 3º evangelhos dependem, não se diz claramente quem ou o que "está próximo" (Mc 13:29), um problema também repetido em Mateus 24:33. Nestes dois relatos paralelos, a única pista para o leitor tentar sair da indefinição literária seria atentando para a locução adverbial de lugar "às portas", levando a conclusões que poderão ser diferentes.

Ora, como aprendemos nas parábolas do grão de mostarda e do fermento (Lc 13:18-21), o Reino de Deus é uma realidade com um começo de dimensão ou quantidade bem miúda mas que cresce surpreendentemente até se tornar algo grandioso. Da mesma maneira, podemos dizer que, quando Jesus e João anunciaram as boas-novas, nossos mestres estavam plantando uma linda árvore em meio a uma terra devastada. Era ainda um mundo mergulhado na hostilidade e na amargura onde faltava o amor entre as pessoas. O mal parecia dominar a Bacia do Mediterrâneo através de um império opressor cujo monarca exigia ser reverenciado como um deus. Ai de quem se revoltasse contra o poder de Roma! Os judeus enfrentavam fome, secas, doenças, uma carga tributária pesadíssima e os rebeldes pagavam caro sofrendo prisões, torturas, trabalhos forçados nas minas e crucificações.

Deste modo, Jesus fez com que o Reino de Deus se tornasse uma realidade presente embora oculta. Suas eternas palavras tornaram-se a semente de um novo tempo, dando início a um processo de transição hoje vivenciado no mundo inteiro. Só o Altíssimo sabe quando toda essa penosa obra estará concluída, mas podemos considerar que já não estamos mais nas primeiras semanas dessa primavera da humanidade. Encontramo-nos, certamente, mais perto do verão do que os primeiros discípulos que o Senhor chamou.

Em que pese a intensificação do mal com a invenção de armas cada vez mais potentes e crimes bem ousados noticiados na TV, também podemos testemunhar sinais do novo tempo no nosso meio. O reconhecimento dos direitos humanos, as conquistas sociais, a inclusão das pessoas portadoras de deficiências e o respeito revolucionário que a legislação atual do Ocidente concedeu à mulher no século XX seriam avanços marcantes em nossa caminhada evolutiva. Coisas pelas quais Jesus também lutou sendo certo que os cristãos primitivos ainda não deveriam vislumbrar todo o horizonte daquela evangelização que empreenderam.

A palavra grega que as nossas bíblias traduzem como "geração" no verso 32 pode significar tanto a totalidade de um povo vivo num dado tempo como também todas as pessoas de um grupo étnico ou social. Logo, podemos considerar que o Salvador pudesse ter falado da humanidade inteira com todas as gerações. Pois assim como muitas pessoas contemporâneas a Jesus presenciaram a invasão de Jerusalém e a destruição do 2º Templo judaico, outros acontecimentos semelhantes caracterizam as angústias de homens e mulheres em lugares/épocas diferentes. Até que o Reino de Deus seja plenificado!

Quando se diz que "passará o céu e a terra", pode não significar necessariamente o fim literal do nosso planeta, mas prefiro nem entrar nessa discussão escatológica inútil que nada acrescenta para a edificação. O certo é que o atual período de maldades não será eternizado. Por mais demorada que esteja sendo essa multimilenar escuridão que encobriu o céu da humanidade, desde o início de sua história, ela tende a ser logo dissipada. O dia já amanheceu com a vinda do Salvador há dois mil anos e, em breve, seremos surpreendidos pelos raios de um sol que brilha acima dessas "nuvens". Basta soprar um ventinho que então veremos o clarão forte e intenso do meio-dia. Repentinamente, num piscar de olhos, tudo pode mudar.

Contudo, Jesus preocupa-se com o coração de seus seguidores (verso 34). Como um profundo conhecedor da alma humana, o Mestre tinha total consciência da nossa ambivalência e do quanto somos vulneráveis às tentações pecaminosas de todos os tipos. Por isso o texto bíblico fala para ficarmos atentos com com "as consequências da orgia, da embriaguez e das preocupações deste mundo" porque são coisas capazes de nos afastar da dimensão do Reino de Deus cegando os sentidos espirituais do crente.

O termo orgia tem a ver com a devassidão sexual (relações ilícitas) mas podemos dar uma interpretação mais extensiva ao vocábulo. Seria então a busca obstinada pela auto-satisfação em que o prazer/bem estar passa a ser colocado em primeiro lugar na vida da pessoa. O alvo do indivíduo torna-se o seu "eu" e não o outro, despertando assim uma impulsividade instintiva que se torna aniquiladora, independente do sujeito ter vida sexual ou não.

Já a embriaguez significa uma perda dos sentidos por um estado de torpor. O sujeito torna-se espiritualmente indolente e incapaz de se conduzir conforme a direção de Deus de modo que ele perde a noção de certos acontecimentos em sua volta. Seria quando, por exemplo, a Igreja fica insensível às necessidades do próximo e não enxerga mais o pequenino batendo em sua porta.

Quanto às preocupações deste mundo, poderíamos incluir aí não somente as ambições loucas de poder como também a nossa absorção pelas coisas do cotidiano comum. Pois há pessoas que, mesmo sem matar, sem adulterar e sem roubar, vivem completamente dominadas pela ansiosa solicitude pela vida. Os cuidados com os rendimentos salarias, o pagamento de contas, o tratamento de saúde, as compras da casa, o carro e o orçamento doméstico ocupam a totalidade de seus pensamentos a ponto delas não conseguirem mais se ocupar com o Reino de Deus. Podem até frequentar uma congregação eclesiástica, mas continuam escravas da rotina que levam.

O remédio para o crente não se desviar do Reino é mesmo vigiar. Jesus orienta os discípulos a cultivarem uma vida de oração constante porque é através de um relacionamento de comunhão com o Pai que nos fortalecemos interiormente para o enfrentamento desses desafios do presente. Desafios estes que muitas das vezes se encontram mais dentro do que fora de nós visto serem situações relacionadas com as escolhas que fazemos. Logo, se prefiro negar a fé diante das perseguições e cedendo às seduções do mundo a ponto de abandonar os caminhos do Senhor, seria por motivo de decisão pessoal. Cada um é responsável pelo que voluntariamente resolve fazer de errado ou se omitir quando deveria tomar posição.

É certo que todos tropeçam e cometem falhas. Jesus de modo algum teria sido incompreensivo com seus discípulos a ponto de exigir deles uma total perfeição nos resultados. O Mestre jamais rebaixou o padrão de Deus, mas cabe ao ser humano querer acertar o alvo, prosseguindo perseverante rumo ao Reino. Isto sim é que eu entendo por estar "em pé na presença do Filho do Homem", como poderemos aprofundar melhor avançando na leitura do conhecido episódio da agonia experimentada pelo Salvador no jardim do Getsêmani (Lc 22:39-46).

O capítulo 21 é então finalizado com um curto resumo da rotina de Jesus em sua última semana na cidade de Jerusalém antes de ser crucificado pelos romanos, como podemos ler nos versos 37 e 38. Durante o dia, ele ensinava o povo no Templo, mas o seu lugar de repouso ficava no lado oposto, isto é, no Monte das Oliveiras. Era fora do corrompido sistema religioso que o Senhor conversava intimamente com os seus discípulos. Toda aquela estrutura era para ele como parte desse mundo perecível que será substituído pelo que é eterno. Pois, na dimensão do Reino, não sobrará pedra sobre pedra e o Mestre estava lá encarando a árdua tarefa de trazer esclarecimento aos ouvintes.


OBS: A ilustração acima refere-se à foto de uma figueira (Ficus carica), a qual extraí do acervo virtual da Wikipédia. A autoria da imagem é atribuída a Javier Mantin, mas dedicada ao domínio público, conforme consta em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Ficus_carica_habitus_2009December07_DehesaBoyaldePuertollano.jpg

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