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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

"Ora, Satanás entrou em Judas..."



"Estava próxima a Festa dos Pães Asmos, chamada Páscoa. Preocupavam-se os principais sacerdotes e os escribas em como tirar a vida de Jesus; porque temiam o povo. Ora, Satanás entrou em Judas, chamado Iscariotes, que era um dos doze. Este foi entender-se com os principais sacerdotes e os capitães sobre como lhes entregaria a Jesus; então, eles se alegraram e combinaram em lhe dar dinheiro. Judas concordou e buscava uma boa ocasião de lho entregar sem tumulto." (Evangelho de Lucas, capítulo 22, versículos de 1 a 6; versão e tradução ARA)

Os quatro evangelhos canônicos, que narram um pouco da história de Jesus, nos falam de uma traição dentro do seu discipulado. Sem que algum dos seguidores mais próximos do Senhor tomasse a iniciativa de entregá-lo aos principais sacerdotes, estes, talvez, não teriam conseguido alcançar aquilo que desejavam fazer. Como nos mostram os versos 47 e 48 do capítulo 19 de Lucas, as autoridades religiosas viam na reação do povo um impedimento para poderem matar o Mestre. Durante o dia, Jesus passava suas horas ensinando no Templo (21:37-38) de modo que a multidão de ouvintes iria evidentemente protegê-lo de qualquer tentativa de prisão porque o consideravam profeta igual a João Batista, o qual fora assassinado covardemente por Herodes.

O escritor bíblico informa que "Satanás entrou em Judas" e o mesmo teria tomado a iniciativa de procurar os sacerdotes e os capitães [da guarda do Templo]. Tal relato não significa, a meu ver, que ele tenha ficado "possesso", como se houvesse a incorporação de um espírito maligno. Antes, o contexto me leva a entender que a maldade foi concebida no coração do discípulo de maneira que ele se tornou capaz de agir traiçoeiramente contra o seu Mestre.

Confesso que não é fácil compreender a atitude de Judas. Ultimamente, muito tem sido debatido nos meios teológico e secular acerca de sua conduta, principalmente quanto aos motivos que o levaram a se posicionar contra Jesus naquele momento. A explicação simplista de que a causa de tudo fora somente o dinheiro dado pelos sacerdotes parece-me insuficiente.

Se voltarmos algumas páginas nas nossas bíblias, encontraremos a primeira menção de Judas no livro de Lucas durante o episódio da escolha dos doze apóstolos. Ali o autor sagrado apenas afirma que o discípulo "se tornou traidor" (6:16). Isto é, até resolver entregar Jesus, Judas acompanhou o Mestre pelas cidades e povoados por onde o grupo andou atrás das ovelhas perdidas da casa de Israel, navegou pelas águas do Mar da Galileia vendo Jesus acalmar a tempestade (8:22-25), presenciou a realização de inúmeros milagres, ouviu muitos ensinamentos sábios e foi, inclusive, comissionado para pregar o Reino de Deus (9:1-2) de modo que aquele apóstolo possa ter também realizado curas e expulsado demônios igual aos demais enviados. Nas controvérsias entre o Mestre e os fariseus, em momento algum ele criou alguma dissidência e suponho que, se pesquisarmos com atenção e profundidade em toda a Bíblia, iremos encontrar até qualidades virtuosas na sua pessoa.

Penso que não podemos interpretar Judas ignorando o que vem antes e depois desta seção em análise. No capítulo 21, versos 34 a 36, Jesus falou sobre o dever da vigilância em seu Sermão Profético. Conhecendo a vulnerabilidade do ser humano quanto  às diversas tentações capazes de nos desviar do foco do Reino de Deus, nosso Senhor estava preocupado com o coração de seus seguidores e da futura Igreja. Sua prisão, julgamento e morte serviriam de grande teste para o grupo aprender importantes lições de perseverança e podemos também dizer que o discurso escatológico começou a se cumprir ali naqueles acontecimentos que envolvem a Ceia.

Penso que, quando estudamos Judas, ao invés de malharmos o apóstolo traidor, devemos é refletir sobre o mesmo potencial de maldade existente dentro de nós. Podemos estar há anos dentro da Igreja, atuando até com zelo na obra do Senhor e liderando uma congregação. Porém, se não permanecermos vigilantes, trairemos a proposta do Evangelho de Cristo com doces beijos de louvor e falsa adoração cultual. Vejam que alguém pode muito bem se tornar um canal de Deus para auxiliar na libertação de outros em relação aos assédios do mundo espiritual mas isto não significa estar imune às tentações do mal. Antes digo que as maiores lutas que um homem pode ter dizem respeito justamente à área ministerial conforme aconteceu quando foi Jesus tentado no deserto (4:1-13).

Como podemos conferir indo mais adiante no texto, eis que, durante a celebração da Santa Ceia, Jesus irá nos revelar a soberania do plano de Deus ao dizer que a sua morte foi algo pré-determinado. Ou seja, mesmo que o evento tenha se dado em decorrência de um ato maligno de Judas, o diabólico encontra-se encerrado dentro dos seus limites não alcançando jamais as dimensões da eternidade. A cruz tornou-se a vitória do Filho do Homem, "mas ai daquele por intermédio de quem ele está sendo traído" (verso 22).

Sem dúvida que o pecado é algo indiscutivelmente danoso. Seja para quem se torna alvo da maldade e mais ainda para quem a pratica. Assim, não podemos perder de vista que Judas causou prejuízo para si próprio com o que fez. Se Jesus conseguiu interceder por Simão Pedro (versos 31 e 32), o mesmo resultado não obteve em relação a Judas. E suponho que o Mestre teria orado por cada um daqueles seguidores. Sabemos sobre o seu fim trágico pelas penas dos escritores de Mateus e de Atos dos Apóstolos onde os versos 16 a 19 do capítulo 1º deste livro assim nos informam dando uma continuidade aos acontecimentos registrados em Lucas:

"Irmãos, convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo proferiu anteriormente por boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles que precederam a Jesus, porque ele era contado entre nós e teve parte neste ministério. (Ora, este homem adquiriu um campo com o preço da iniquidade; e, precipitando-se, rompeu-se pelo meio, e todas as suas entranhas [intestino] se derramaram; e isto chegou ao conhecimento de todos os habitantes de Jerusalém, de maneira que em sua própria língua esse campo era chamado Aceldama, isto é, Campo de Sangue)"

Creio ser para a nossa edificação pessoal e auto-conhecimento que os relatos sobre Judas encontram-se nos evangelhos assim como a Bíblia não se omite acerca da falha dos seus personagens como Caim, Ló, Esaú, Saul e tantos outros que protagonizaram a figura do anti-herói. Malhar o boneco do traidor nos dias de Sábado de Aleluia considero uma atitude de total ignorância! Compreendê-lo, porém, parece ser a chave para entendermos melhor a nós mesmos, tratando das áreas vulneráveis dos nossos corações afim de não permitirmos a condução das nossas escolhas pelo mal.

Desejo um ótimo descanso semanal para todos e ótimas reflexões.


OBS: A ilustração acima trata-se de uma pintura anônima do século XII retratando o beijo de Judas. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia conforme consta em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Kuss_des_judas.jpg

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