Páginas

quinta-feira, 26 de abril de 2012

O Evangelho que sobreviveu às cortinas de ferro da URSS

É impossível não crer que Deus de alguma maneira age no curso da História!

Na Rússia, o povo viveu debaixo de um totalitarismo aniquilador por sete décadas do século XX. Após a revolução bolchevique de 1917, junto com a repressão política, vieram também as perseguições religiosas do regime soviético combatendo duramente as igrejas cristãs e tomando todas as medidas ao seu alcance para tirar a Bíblia de circulação. No lugar da fé esperançosa num Deus amoroso, o governo pregava o estéril ateísmo pois a religião era vista como uma “estrutura do capitalismo” pelos comunistas.

Entretanto, no século XIX, dois escritores russos parecem ter sido divinamente inspirados para anunciarem o Evangelho para as gerações seguintes através de suas letras. Eram eles Leon Tolstoi (1828-1910) e Fiodor Dostoievski (1821-1881). Ambos foram contemporâneos e escreveram seus brilhantes romances nas últimas décadas do czarismo, eternalizando-se na literatura universal.

Tolstoi foi sem dúvida um asceta. Um homem com seu interior perturbado e que tentou seguir o Sermão da Montanha (Mateus 5, 6 e 7) literalmente numa verdadeira ambição de santidade. Procurou, dentro de sua compreensão, atingir aquilo que acreditava ser o ideal ético cristão. Nesta busca, ele expôs em si mesmo (e nos seus escritos) o grande drama humano em praticar com retidão a lei divina. Mostrou para seus observadores o quanto somos pecadores, contraditórios, incapazes de alcançar a perfeição e carentes da graça.

Estudando um pouco da biografia de Tolstoi, descobrimos que ele ao menos buscou ser sincero em relação à crença que tinha. Tendo quase levado sua família à miséria ao libertar seus servos e tentar se desfazer de suas posses, eis que os últimos dias deste renomado escritor foi como um andarilho quando então morreu numa estação ferroviária rural. E, por várias vezes, ele desejou dar fim em sua vida, provavelmente em decorrência da angústia por não conseguir atingir os elevadíssimos ideais de Deus.

Praticamente o oposto de Tolstoi, viveu Dostoiévski num ambiente de carnalidade e de jogatina. Foi um homem que aproveitou a vida conforme os seus desejos e se apegou imensamente às letras e de uma maneira bem intensa em diversos momentos seus.

Ao invés de caminhar pelas vereadas do ascetismo, Dostoiévski seguiu uma visão mais liberal. Seus escritos revelaram um Deus bondoso e amoroso capaz de aceitar o ser humano com todas as suas terríveis falhas. É a graça divina se fazendo presente nas nossas fraquezas de uma maneira incondicional e acessível.

É possível que, por causa de sua a experiência de vida, Dostoiévski tenha conhecido a graça de uma maneira tão especial. Quando condenado à morte pelo czar, eis que, inesperadamente ele recebeu a notícia de ter recebido uma indulgência quando já estava diante do pelotão de fuzilamento. Aquele momento radical certamente que o marcou de maneira profunda, levando-o a perceber tempos depois a manifestação da misericórdia de Deus. Tendo sua pena convertida em anos de trabalho forçado na Sibéria e ganhado um exemplar do Novo Testamento de uma senhora, ele valorizou como nunca aquela sua segunda oportunidade de viver a ponto de ter escrito:

“Se alguém me provasse que Cristo estava fora da verdade (…) então eu preferiria permanecer com Cristo a aderir à verdade”.

Não é por menos que em seu livro Alma Sobrevivente, o escritor cristão norte-americano Philip Yancey chama Tolstoi e Dostoiévski de seus “mentores espirituais”. E, se pensarmos bem, ambos romancistas encarnam a mensagem de Paulo dada na epístola aos Romanos, o que os torna verdadeiros “profetas” para o povo russo (e para o resto da humanidade).

Com Tolstoi, aprendo que sou pecador e que minhas boas obras não passam de um "trapo de imundície", como bem disse o profeta Isaías. Compreendo o quanto sou reincidentemente falho, mesquinho, hipócrita, avarento e carnal. Mas com Dostoiévski conheço o Deus que me ama e que me aceita com todos os meus pecados. O Deus que me dá sempre uma segunda chance para aprender a viver com alegria e satisfação diante de sua Santa Face.

Enfim, por mais que os stalinistas tivessem tentado calar a voz divina tirando a Bíblia de circulação, a Palavra continuou viva e operante na Rússia pelos 70 anos de comunismo. E, mesmo que a História não tenha muitos registros a nos relatar, creio que pessoas vieram a conhecer o Evangelho de Cristo por meio das obras desses dois nobres escritores sobreviventes à censura do regime soviético e, com isto, se converteram.


OBS: As fotos acima foram extraídas da Wikipédia. A primeira (de Tolstoi), tirada em 1908, tem sua autoria atribuída a Sergey Mikhaylovich Prokudin-Gorsky (1863-1944). Já a segunda mostra Dostoiévski em 1863 sendo desconhecida a origem do material.

12 comentários:

  1. Chocante! Você sempre trás textos enriquecedores. Eu não sabia destas biografias.

    Tolstoi, infelizmente tentou com esforço próprio vivenciar os ensinamentos de Cristo, sendo inclemente para consigo mesmo. Deus não tem compromisso com a nossa ignorância, portanto é de se entender que ele tenha tido um fim tão triste. Descansamos no entanto, lembrando que um Lázaro sempre é conduzido para o paraíso, pelos anjos.

    Vejo por outro lado um Dostoiévski que estava desperdiçando a sua vida, sem desfrutar da graça que nos trás novos valores. Esqueceu que Jesus amou a pecadora, mas disse: vai e não peques mais. Descansamos, todavia, neste amor tão grande de Deus que lhe proporcionou uma oportunidade para viver realmente sob a graça e descobrir uma vida abundante além dos prazeres que destroem.

    Beijo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Gui.

      Obrigado por sua contribuição!

      O interessante era que Tolstoi dizia que as pessoas não devessem julgar os santos ideais de Deus com base em sua incapacidade de realizá-los. "Não julguem Cristo com base naqueles dentre nós que imperfeitamente carregam seu nome", foi o que li a respeito dele no livro Alma sobrevivente do Yancey.

      È certo que nem Tolstoi ou Dostoiévski foram fomens perfeitos ou digamos exemplares como modelos de comportamento para serem imitados. Porém, ambos, por suas próprias maneiras, buscaram compreender a Suprema Realidade.

      Sobre Dostoiévski, vejo nele a figura daquele publicano da parábola contada por Jesus, o qual entrou no Templo e pediu misericórdia por ser pecador.

      É certo que uma vida fundada nos prazeres leva à destruição. Porém, quem é que não tropeça e cai? A Epístola de João fala sobre isto e, se dissermos que não temos cometido pecado, mentimos enganando a nós mesmos e a Verdade não se encontraria em nós. Mas se confessarmos os nossos pecados, Deus é fiel e justo para nos purificar de toda a injustiça.

      Penso que a graça não afasta o homem da observância das leis divinas. Pelo contrário. Ela torna a nossa caminhada mais confortável, reanimadora, cheia de compreensão para com o outro que tropeça (e com nós mesmos), bem como nos conduz a um descanso interior pacificador. É quando entendemos que viver desregradamente conforme nossas paixões iremos nos destruir. Porém, se aceitarmos o conselho do Deus bondoso que nos ama e só quer ver o nosso bem, iremos buscar acertar o alvo. Se não chegarmos lá, não desistiremos. Vamos nos levantar e prosseguir na prática do bem.

      É assim que tento encarar a minha vida espiritual sem neuras, legalismos, autopunição ou desistências. Quando vejo que estou me desorientando, lembro de um Deus que me ama profundamente. Mais do que eu a mim mesmo.

      Abraços.

      Excluir
    2. EM tempo!

      O livro do Philip Yancey é só um resumo pequeno das célebres obras desses dois escritores. Um convite para nos aprofundarmos!

      Ano passado li um romance maravilhoso do Tolstoi chamado A Morte de Ivan Ilitch, o qual considero uma leitura obrigatória para quem é da área do Direito. Inclusive porque não chega a ser longo. Muito bom!

      Outro que vale a pena ler deste mesmo autor é Senhores e Servos.

      Excluir
  2. Rodrigão, se não me engano o mesmo Dostoiévski no seu livro Os Irmãos Karamazov diz: "SE DEUS SABE TUDO, PORQUE PRECISAMOS REZAR ENTÃO?".

    Dos dois extremos ainda que com visão distorcida, prefiro ficar com o Dostoiévski que não se apóia no próprio mérito!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo contigo, Franklin!

      Mas a pergunta feita por Dostoiévski em seu livro foi bem interessante, diga-se de passagem.

      Por que orar?!

      Primeiramente vejo a oração não como um mandamento inflexível, mas sim como uma orientação. Algo que serve tanto para que tenhamos o bom hábito de nos lembrarmos de Deus em meio a uma vida corrida e agitada (os judeus ortodoxos e os muçulmanos fazem duas determinadas rezas diárias), como também serve para desenvolvermos um relacionamento com o Eterno na maneira simples de como podemos nos expressar.

      Vale indagar por que teria Jesus ensinado o Pai Nosso aos seus discípulos?

      Embora eu entenda que o propósito desta oração não seja o de recitar palavras em costumeiras repetições (nada contra quem faça), vejo o Pai Nosso como um modelo. Uma maneira de, reconhecendo o divino cuidado paternal, expressarmos a Deus bons sentimentos, lembrarmos de sua santidade, não nos esquecermos do objetivo do Evangelho que é a promoção do Reino, pedirmos coisas dentro da vontade do Soberado (em conformidade com o "plano" do Pai para a humanidade), não sermos ambiciosos nos bens que desejamos, mas sim pensando no atendimento das necessidades que é "o pão nosso de cada dia", além de pormos em prática o perdão que deve ser exercido do contexto da bendita graça, pedindo forças para lidarmos com as tentações e ficarmos livres do mal.

      Ainda sobre Dostoiévski, acrescento também o que Paulo disse em sua carta aos Romanos:

      "Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos (...) Pois, quanto a ter morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus" (Rm 6.1-2,10-11; ARA)

      Bem, creio que esta seja uma visão correta da graça, a qual não se apoia no mérito e também não se torna desculpa para o homem viver na prática do pecado sem se esforçar para praticar o bem. E creio que esse esforço humano deve ser feito sempre dentro da graça, nunca debaixo de lei.

      Abraços.

      Excluir
  3. Entendi Rodrigão, não sei se você entendeu bem minha postura. Em resumo eu disse que o amor e a graça de Deus, tiveram os seus caminhos para alcançar os dois, embora eles tivessem diferentes visões do caminhar com Deus.
    "As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos." Fico triste quando ouço pessoas dizerem que não sabem porque sofrem tanto, se agradam a Deus em tudo.
    Acreditam então, que seus sofrimentos são impingidos por Deus, por outro lado, se entendem perfeitos no caminhar com Deus.

    Eu credito que o Tolstoi, não estava lutando por ter méritos e sim, ele acreditava que só poderia ser salvo se fosse perfeito em obediência. Ou seja não era o mérito em si. Me entende? As vezes tenho dificuldade de passar exatamente o que penso.

    Beijão amigo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Gui.

      Se cremos que somos salvos por graça, um favor imerecido, por que o sofrimento teria alguma relação com o mérito?!

      O infortúvio vem para todos e Deus faz o sol se levantar sobre justos e injustos bem como trás a chuva sobre a cabeça de todo mundo. Só que, infelizmente, muitos deturpam as palavras de Deuteronômio já que as bênção ali me parecem muito mais como espirituais do que materiais, ainda que exista a questão principiológica que ajuta tanto a indivíduos como a povos viverem melhor quando seguem a Justiça.

      Sobre a relação de Tolstoi com a salvação, acho que estamos mais ou menos de acordo. Penso que ele tivesse mais uma ambição de santidade ou de conformação com os elevados ideais de Deus encarnados em Jesus. Vejo-o mais além daquela pessoa que acha que precisa fazer certas coisas boas para garantir um "pedacinho no céu". Pois o que me parece é que Tolstoi estivesse mesmo afim de cumprir mandamentos sem estar preso a um comportamento de barganha com o Criador.

      Paz!

      Excluir
  4. Franklin rsrs "Rodrigão, se não me engano o mesmo Dostoiévski no seu livro Os Irmãos Karamazov diz: "SE DEUS SABE TUDO, PORQUE PRECISAMOS REZAR ENTÃO?".

    Ele não sabe como é gostoso pedir algo a Deus e receber. Se Ele fizesse tudo sem que a gente interagisse com Ele, teria sal? kkkkkkkkkk

    Beijo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Gui,

      Embora você tenha feito este comentário dirigido ao Franklin, permita-me fazer uma observação.

      Eu diria que é gostoso até receber o não de Deus porque, no fim das contas, acaba nos servindo de um aprendizado para que possamos educar as nossas petições.

      Conforme eu acabei de resaponder ao Franklin falando acerca do Pai Nosso, é preciso que, numa oração tenhamos em mente o grandioso projeto do Evangelho que é trazer a realidade do Reino de Deus, cumprirmos a vontade divina em nossas vidas e focarmos no suprimento da nossa necessidade ao invés de ambicionarmos coisas que de fato não precisamos e servem mais para fins de status, prazeres mundanos e egoístas, por inveja do outro irmão, etc.

      Assim, seja qual for a resposta, creio que não recebemos de Deus nem "pedra" e nem "serpentes", mas sim coisas boas.

      Abração!

      Excluir
  5. Quero dizer: ele não sabia, vixe a alma dele não perambula entre noses.

    ResponderExcluir
  6. Excelente texto, Rodrigo. Os irmãos karamázov é uma obra-prima que preciso voltar a ler, pois numa leitura só não dá para saborear tudo o que o livro nos oferece!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Foi uma das melhroes obras de Dostoiévski. Assim como Tolstoi, ele é um autor que nos faz pensar.

      Excluir