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terça-feira, 30 de agosto de 2011

O Brasil das Severinas

"Juízes e oficiais porás em todas as tuas cidades que o SENHOR teu Deus te der entre as tuas tribos, para que julguem o povo com juízo de justiça." (Deuteronômio 16.18; versão bíblica de Almeida Corrigida e Revisada Fiel)

Neste mês de agosto (25/08/2011), o Tribunal do Júri absolveu a agricultora Severina Maria da Silva, uma sofrida mulher pernambucana de 44 anos que foi acusada de ter mandado matar o próprio "pai".

Mãe de 12 filhos (dos quais sete já morreram) e abusada pelo seu genitor desde seus 9 anos de idade, Severina não teve outra opção para defender a si mesma e sua família quando o Sr. Severino Pedro de Andrade (o "pai") tentou estuprar uma das suas filhas (também sua neta) que, na época, tinha 11 anos. E, para tanto, ele ameaçou Severina. Ou ela deixaria levar a filha para a cama com o "avô", ou seria assassinada pelo próprio "pai".

Durante o julgamento, ocorrido na cidade de Recife, nem a Promotoria pediu a condenação de Severina, muito embora os executores do crime, Edílson Francisco de Amorim e Denisar dos Santos, contratados por Maria Severina para matar o "pai", vieram a ser condenados no ano de 2007 às penas de 17 e 18 anos de prisão, respectivamente.

O principal motivo de sua absolvição foi aquilo que a doutrina jurídica chama de "inexigibilidade de conduta diversa", o que ocorre quando a pessoa, estando coagida de tal forma pelas circunstâncias fáticas, não tem outra opção de agir senão através de uma conduta tipificada como crime. Então, uma vez constatada esta situação excepcional, o fato praticado não pode ser penalmente punido.

Anos atrás, aqui em Nova Friburgo (RJ), houve um homem que, após ser vítima de três tentativas de homicídio, tendo sido até baleado, não lhe restou outra alternativa senão buscar a morte do seu agressor. E, ao ser levado para julgamento, conseguiu a absolvição graças ao depoimento do filho do seu desafeto, em que o rapaz confessou em Juízo que, se o seu pai não tivesse morrido, mataria o réu.

Ainda quando era estudante de Direito, assisti um júri na cidade em que uma mulher moradora da zona rural, após ter sido diversas vezes ameaçada de morte pelo marido, precisou matá-lo com um golpe de enxada. Lembro que, na ocasião do julgamento, foi também o próprio Ministério Público quem pediu a absolvição.

Tais episódios me fazem pensar sobre a situação dos inúmero Severinos e Severinas deste país. Pessoas que, sendo vítimas da violência reinante na sociedade, nem ao menos encontram o devido apoio do Estado, isto é, da Justiça e da Polícia.

De acordo com a citação bíblica do começo do texto, o povo de Israel foi orientado a designar para cada uma de suas cidades "juízes" (hebraico shofetim) e "policiais" (shoterim), os quais eram encarregados de cumprir as disposições e ordens dos tribunais da época.

Tal preocupação é bem relevante porque é através dos serviços jurisdicionais e de segurança que o Estado (ou o interesse da coletividade numa anarquia) pode se fazer presente. E aí podemos observar que, numa lei de praticamente 3.000 anos, já era reconhecida a importância destas duas relevantes atividades públicas.

Todavia, aqui no Brasil, ainda estamos muito distantes deste ideal de justiça e de segurança. A proteção à vítima e à testemunha são coisas que, na maioria das vezes, ficam só no papel, tornando-se um eterno sonho que apenas se concretiza nas imagens do cinema hollywoodiano. E, na prática, os homicídios em geral nem são elucidados em sua grande parte de modo que aquelas técnicas típicas dos capítulos do CSI geralmente só chegam a ser utilizadas em casos de maior repercussão como os da Isabella Nardoni ou de Eliza Samudio.

Infelizmente, a ausência do Estado acaba sendo a principal responsável por aquilo que a humanidade tem lutado há milênios - a vingança privada. Pois, justamente para que houvesse a tão sonhada paz social, pondo fim à vingança da vítima, foi que surgiram as antigas legislações no Oriente Próximo, como na Mesopotâmia (Código de Hamurábi e outros) e em Israel (a Torá). Inclusive, mesmo na vigência dessas leis, os povos semitas ainda preservaram a figura do "vingador de sangue" em que uma pessoa da família poderia vingar a morte de alguém que foi vítima de um homicídio culposo. E então, para por limites nisto, a Torá criou as denominadas "cidades de refúgio" onde o responsável pela morte acidental pudesse ficar abrigado do vingador de sangue.

No nosso país, devido à falta de um programa social que proteja efetivamente as mulheres e crianças (nem todas as cidades dispõem de delegacias femininas), bem como as vítimas e testemunhas de crimes, parece que vingança privada ainda tem sido a única opção para o pobre. Assim como a Severina Maria da Silva (nome bem comum no Nordeste), temos inúmeras outras pessoas vivendo dramas semelhantes ou análogos. São agricultores, donas de casa, menores, trabalhadores urbanos que não têm como se proteger legitimamente diante de tanta violência que ameaça suas vidas.

Será que um funeral de indigente é a única parte que cabe aos Severinos e às Severinas deste latifúndio chamado Brasil?

Minha esperança é que, com o enriquecimento econômico da nação, possa haver uma satisfatória promoção dos serviços essenciais de Justiça e de Polícia, afim de que o Estado se faça presente em toda parte. Não apenas nas áreas centrais das cidades e bairros ricos, juntamente com melhorias na educação e distribuição da renda nacional.


OBS: A ilustração acima foi extraída do Portal Geledés Instituto da Mulher Negra, em http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/nossas-lutas/questoes-de-genero/265-generos-em-noticias/10854-minha-mae-me-levou-pra-ele-conta-mulher-abusada-pelo-pai-em-pe/.

9 comentários:

  1. Será que funciona mesmo delegacia para mulheres? Não me iludo, já ouvi de várias mulheres que os maridos advertem-nas: "Se me entregar na delegacia, eu mato você!"

    Uma curiosidade: Por que os assassinos contratados pela D. severina, foram condenados e a tantos anos de prisão?

    Sentindo sua falta. Beijo.

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  2. Oi, Gui.

    Obrigado pela sua visita e participação.

    Se a Delegacia de Mulheres funciona, penso que muito precariamente ainda. Porém, a experiência tem demonstrado que é melhor a mulher vítima da violência doméstica ser atendida em um órgão especializado do que em delagacias comuns onde, depois de apanharem dentro de casa, ainda sofrem por causa do machismo que impera na Administração Pública. Seja pela indiferença em relação ao seu problema, pela truculência dos funcionários, da ausência de um acolhimento no ambiente, etc.

    No entanto, sabemos que não basta haver uma delegacia de mulher. pois é necessário mudar a mentalidade social que ainda é machista. Mesmo vindo das próprias mães em relação às filhas e também no meio religioso. Veja, pois, que muitas esposas, ao invés de serem aconselhadas pelos pastores a se divorciarem de um marido traidor ou agressivo, acabam sendo iludidas a fazerem orações para que a situação melhore dentro de casa como se a causa de tudo fosse espiritual. Só que, na prática, ela deveria ser incentivada a preservar a sua dignidade.

    Gui, posso te falar de muitas situações decepcionantes que já assisti no meio evangélico e que afrontam a dignidade da mulher. Certa vez, dentro de uma igreja da qual fui membro e obreiro, um marido agrediu a ex-mulher dentro do templo. E sabe o que o pastor presidente fez? Ao invés de incentivá-la a procurar a DP e fazer logo o exame de corpo de delito, ele me chamou para que eu fosse um mediador do problema anterior que teria dado causa à agressão e apaziguasse as coisas entre eles. E, no fundo, parecia-me evidente que o pastor não queria ver nenhum escândalo em páginas policiais envolvendo a igreja dele...

    Fez-se um levantamento aqui na minha cidade de que, a cada dois casos de violência doméstica registrados por um período na DP, ainda existiriam mais dois que não são conhecidos pelo Estado. Ou seja, só 50% dos delitos contra a mulher é que estariam sendo registrados na Polícia, mesmo depois da Lei Maria da Penha.

    É uma questão bem preocupante, não? Mas fica aí uma tarefa que desafia as igrejas para que contribuam positivamente para a mudança deste quadro.

    Abraços.

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  3. Em tempo!

    Respondendo sua pergunta (embora não tenha acompanhado o caso), é que os assassinos condenados pela Justiça eram profissionais. Eles teriam feito aquilo por dinheiro e, portanto, poderiam ter praticado conduta diversa.

    Mesmo assim, conforme um defensor público criminalista daqui de minha cidade, que havia sido meu professor de Direito Penal na faculdade, seria cabível o mesmo argumento aplicado à Severina na absolvição dos assassinos. Isto porque, mesmo sendo profissionais, eles ajudaram a solucionar o problema de uma pessoa que não poderia agir de outro modo naquela circunstância e nem mesmo matar com as mãos o próprio pai.

    Tenho frequentado menos a internet porque estou envolvido com estudos para concurso. Logo, devo ficar menos presente na internet nos próximos meses, entrando menos no Facebook e nos debates em blogues como o da Confraria dos Pensadores Fora da Gaiola.

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  4. Caramba! Que babado essa do homem de Nova Friburgo que contou com o depoimento a favor do filho do agressor heim?!

    Sei que a justiça tem suas falhas, mas ainda existem bons exemplos que nos fazem crer nela como é o caso dos juízes Odilon Oliveira e Patrícia Acioli.

    O Levi tá querendo sua presença nos debates do Caminhos da Teologia.

    Valeu e sucesso no concurso que vai prestar!

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  5. Olá, Franflin!

    Valeu aí pela visita!

    Realmente há casos de Tribunal do Júri que chegam a ser até novelísticos. Meu professor de Pena da faculdade, Dr. Elias Marcelo Barucke, que o diga.

    O assassinato de magistrados combativos, como foi a MM. Juíza Patrícia Acioli, mostram o quanto a Justiça brasileira encontra-se desprotegida e refém das máfias que atuam neste país. O magistrado, policial ou promotor que resolve ir fundo na aplicação da lei corre sérios riscos de vida e de perseguição por seus superiores corruptos, tendo o próprio Estado como adversário.

    É uma luta árdua, mas que vale a pena em prol daquilo que acreditamos - os valores do Reino de Deus.

    Abração!

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  6. Em tempo!

    Deixei um recado lá no blogue do Edu sobre Teologia e aproveito para pedir sua oração e do apoio do restante de vocês!

    Por razões profissionais (e de sobrevivência), preciso prestar o concurso para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que deve sair ainda este ano (a previsão é que as provas ocorram lá pra novembro).

    Sendo assim, peço que estejam pedindo a Deus que me dê: disposição para o estudo; concentração e atenção na leitura da matéria e nas aulas do curso (sou disperso para certas coisas e tenho dificuldades de focar em coisas muito objetivas); para que eu consiga conciliar os estudos com meus compromissos da advocacia e como marido; para que eu não me perca entrando toda hora na internet; e para que eu não me sinta muito ansioso.

    Orem também por minha esposa Núbia, por sua saúde, tratamentos médicos e vida espiritual.

    Um forte abraço pra todos!

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  7. Com certeza mano, estarei orando por vc e sua esposa e para que consiga administrtar as coisas para concretizar seus projetos também.

    Um abraço e sucesso!

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  8. Valeu pelo incentivo, mano!

    Muito sucesso pra você também!

    Abraços.

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  9. Olá, Dr. Rodrigo da Luz.

    Obteve êxito em seu concurso? Em caso negativo, fez outros?

    Não desista, jamais. Em matéria de concurso público, a perseverança é o principal.

    O pessoal de Nova Friburgo sente saudades de vc.

    Abração e fique com Deus.

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