Meus ancestrais gregos da Antiguidade souberam deixar importantes contribuições ao desenvolvimento inicial da Teologia cristã. Além de terem preservado, reunido e organizado as mensagens deixadas pelos apóstolos, formando o cânon do Novo Testamento, os gregos daqueles primeiros séculos do cristianismo elaboraram não só comentários aos textos bíblicos como também desenvolveram vários temas teológicos e métodos de interpretação.
Sem os gregos, não teria se formado a cultura cristã como nós a conhecemos. Sem eles, jamais existiriam as concepções eclesiásticas dos católicos e dos protestantes. A alegorização, por exemplo, foi muito utilizada por Orígenes para explicar a parte da Bíblica que chamamos de Antigo Testamento, conforme leciona Walter Wangerin Jr. em seu artigo “A Bíblia como uma história”, publicado em português pela Sociedade Bíblica do Brasil (SBB):
“Como método de interpretação, a alegorização entrou na igreja cristã por intermédio de Clemente de Alexandria (falecido por volta de 215 d.C.), que seguiu a linha de Filo. Orígenes (cerca de 185-254 d.C.), que foi discípulo de Clemente, a transformou numa sistemática de interpretação bíblica. Segundo Orígenes, havia três níveis de significado nas Escrituras: o literal, o moral e o espiritual. Estes correspondiam às três 'partes' do ser humano: corpo, alma e espírito.”
Por outro lado, toda essa tradição teológica, desenvolvida a partir da herança helênica, até hoje dificulta a compreensão do contexto cultural da Palestina de Jesus, sendo as nossas concepções bíblicas um sério obstáculo até para a propagação do Evangelho no Oriente porque nem sempre conseguimos estabelecer uma comunicação satisfatória com os outros povos. No Ocidente, segmentamos a pessoa humana em corpo, alma e espírito, criando uma desarmonia com a matéria entendimento baseado numa interpretação ampliativa da epístola de Paulo aos Romanos, quando o texto atribuído ao apóstolo diz que “com a mente” ele é servo da “lei de Deus”, mas “segundo a carne”, é escravo da “lei do pecado”.
Foi de grande proporção a desarmonia que os cristãos causaram em relação à saúde do próprio corpo e ao ambiente em que vivem, passando a ser escravos de falsas ideias sobre culpa com forte ênfase no pecado do sexo ilícito, ou então na subtração dos direitos patrimoniais, de modo que, por séculos, gerações inteiras viveram com medo de não entrar no céu. A noção temporal cronológica subordinada ao relógio foi outro ingrediente utilizado para aprisionar as pessoas, desintegrando a sociedade da natureza, sendo que também nos tornamos reféns de um conhecimento limitado ao campo da abstração, sem o aprendizado prático do cotidiano.
Melba Maggay em seu artigo “Perspectivas culturais – Oriente e Ocidente”, publicado também pela SBB, faz uma interessante comparação com a visão de mundo dos filipinos e a nossa tradição teológica, expondo uma considerável crítica a nós:
“Os filipinos, em sua cultura, ainda se impressionam com 'o poder... que pode ser claramente percebido... por meio das coisas que foram criadas'. Porém, o cristianismo ocidental se dirige a eles como se houvessem há muito passado da idade do misticismo e precisassem ser arduamente convencidos da existência de um Deus sobrenatural. Mosso povo [os filipinos] ainda não conhece a natureza 'desmistificada', desprovida do maravilhoso e do mágico. Mas o Ocidente defende a Bíblia na nossa cultura como se fôssemos todos racionalistas de uma era científica (…) Cada cultura tem um senso interno do que considera 'errado', ocasionando certa introspecção ou reflexão. Nas Filipinas, o rompimento da harmonia no nosso relacionamento com a sociedade ou com o cosmos é uma falha considerável. O Ocidente, que tende a individualizar e personalizar o 'pecado', considerando-o, antes de tudo, uma questão de traição e mentira e sexo ilícito, ou de coisas gerais relacionadas com violação da integridade interior e usurpação dos direitos de outras pessoas, precisa aprender a levar em conta a dimensão social e cósmica do pecado.”
Essa ideia de “dimensão social e cósmica do pecado” lida no artigo me chamou bastante a atenção, fazendo-me lembrar do profeta Daniel quando pediu perdão a Deus pelo seu povo. Lendo as Escrituras hebraicas (o Antigo Testamento), percebemos que os judeus tinham a noção do pecado coletivo, conforme aconteceu na época de Josué por causa do pecado de Acã, significando que a ação ou omissão de uma pessoa está em permanente interação com toda a sociedade, consciência esta que nós ocidentais perdemos.
É preciso que a Igreja se arrependa do pecado cometido pela cultura cristã gerada no Ocidente, a qual se contrapõe ao cristianismo em sua essência. Penso que, ao invés de alimentarmos temores infrutíferos acerca das ameaças com uma eternidade no inferno (sentimento que as suras do Alcorão ampliam), precisamos conhecer mais a Deus, o que só é possível cultivando um relacionamento reverente com o nosso Criador no nível da pessoalidade. Lembrarmos do aprendizado prático em nosso dia a dia, tal como ensinava Jesus através de suas parábolas, é o que hoje precisamos para compreendermos o Espírito da linguagem da Mensagem que os homens tentaram registrar na Bíblia durante os séculos.
Na atualidade, em que muitos acusam a Bíblia de ter sofrido modificações, pouco me importa se o texto de hoje guarda total fidelidade com os desaparecidos rolos originais deixados pelos autores das Escrituras. Não muito diferente de um contador de histórias do Oriente Médio, Jesus não escreveu livro nenhum e a semente de sua Mensagem oral produziu frutos nos corações dos homens, ficando bem registrada na memória de seus discípulos. Durante o período de três anos que seguiram o Mestre, os primeiros pregadores do Evangelho foram ensinados através da arte do discipulado, experimentando uma metodologia bem diferente dos nossos seminários teológicos.
Ora, do que adianta um acúmulo de informação se nos falta a habilidade de integrarmos o conhecimento com a vida? Penso que precisamos aprender a aplicar a sabedoria espiritual diante de cada situação e no relacionamento com as pessoas. Assim, ao invés de confiarmos tanto nas proposições teológicas, deveríamos meditar mais nas parábolas, nos enigmas e nos provérbios ricamente encontrados na Bíblia. Observemos, pois que, no primeiro Salmo, considerado como um poema de sabedoria, o autor considera feliz a pessoa que tem o seu prazer na lei de Deus, na qual
medita de dia e de noite, sendo comparado a uma árvore plantada junto a um curso d'água:
“Bem-aventurado o homem
que não anda no conselho dos ímpios,
não se detém no caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos escarnecedores.
Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR,
e na sua lei medita de dia e de noite.
Ele é como árvore
plantada junto a corrente de águas,
que, no devido tempo, dá o seu fruto,
e cuja folhagem não murcha;
e tudo quanto ele faz
será bem sucedido.” (Sl 1.1-3)
Mas o que significa o ato de meditar conforme consta na nossa tradução bíblica? Por acaso o salmista estava se referindo a uma atividade intelectual? Certamente não!
O meditar na cultura hebraica está associado com a obediência constante à vontade de Deus, pois o temor do SENHOR (reverência) é o “princípio da sabedoria”. E tal entendimento constitui a natureza do terreno espiritual onde está edificada uma casa segundo nos ensina Jesus nas palavras finais do Sermão da Montanha registradas em Mateus 7.24-27:
“Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, sendo grande a sua ruína”.
Em sua epístola, Tiago compara a pessoa que não pratica a Palavra de Deus ao homem que, depois de ver sua imagem no espelho, esquece da própria aparência:
“Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade, acolhei, com mansidão, a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma. Tornai-vos, pois, praticantes e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra e não praticante, assemelha-se ao homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural; pois a si mesmo se contempla, e se retira, e para logo se esquece de como era a sua aparência. Mas aquele que considera, atentamente, na lei perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso praticante, esse será bem-aventurado no que realizar.” (1.21-25)
A palavra, meus amigos, é algo vivo que não pode se prender às letras de um livro escrito pelos homens. Conhecer a Bíblia apenas através da mente não produz a transformação de caráter desejada por Deus (muitos ateus estudam os livros bíblicos e não se convertem). A palavra
Torah do Antigo Testamento que em muitas das nossas traduções aparece como sinônimo de “lei” é também uma instrução, uma conversa entre Deus e o seu povo que revela qual a Sua soberana vontade para as nossas vidas. Por trás de cada mandamento, há uma direção que vai além da literalidade, apontando para o estabelecimento de uma vida amorosa na qual se inclui uma harmonia da criatura com o seu Criador.
Atualmente, judeus convertidos ao cristianismo têm feito uma releitura do Novo Testamento, o que considero muito proveitoso para que possamos conhecer melhor o estudo da Bíblia através de uma perspectiva oriental vinda através dos sucessores da cultura onde nosso Senhor Jesus nasceu há 2000 anos. E uma das novidades da editora Vida é o “Novo Testamento Judaico”, em que os seus autores, judeus, enfrentam o grande desafio de apresentarem o personagem central dos Evangelhos,
Yeshua (Jesus), procurando a Mensagem além das letras gregas e, obviamente, ultrapassando a cultura helênica.
Todavia, mais do que aprendermos a ler a Bíblia “da direita para a esquerda”, conforme se escreve em hebraico, também é necessário conhecermos as Escrituras através de uma experiência prática cotidiana, tal como ocorreu com os cristãos do século I que foram alcançados por uma Mensagem transformadora. Milhares de homens e mulheres analfabetos, que se converteram nas regiões gentílicas do Império Romano, muito pouco (ou nada) conheciam a respeito das tradições judaicas, mas foram de fato transformados apenas por ouvirem a Palavra de Deus. E, como bem sabemos, aqueles irmãos do passado resistiram às duras perseguições de Nero e de outros monarcas perversos, tornando-se para os nossos dias um dos maiores exemplos do que significa seguir a Jesus, visto que eles verdadeiramente desenvolveram a fé, a perseverança, a paciência, a esperança e o amor.
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