Páginas

sábado, 17 de abril de 2010

A Lei e a Misericórdia de Deus no Sermão da Montanha

Jesus é sem dúvida o mais enigmático de todos os personagens da Bíblia. Seu jeito de ensinar nunca é imediatamente esclarecedor, levando os destinatários de sua mensagem a novas indagações que vão cada vez mais requerer mais explicações. As suas parábolas, os seus discursos e até mesmo as respostas dadas ao seus discípulos induzem a uma profunda e contínua reflexão, exatamente como eu suponho que Deus pretende em relação a nós quanto à meditação nos textos das Escrituras.

O Sermão da Montanha é um dos mais perturbadores discursos de Jesus, o que pode significar ao mesmo tempo uma inversão e uma restauração de valores. É, simultaneamente, a Lei de Deus levada ao extremo e um anúncio da graça salvadora.

Dos quatro evangelhos do Novo Testamento, apenas os livros de Mateus e de Lucas registram o Sermão da Montanha. Aliás, a maior parte dos ensinamentos dados no monte são encontrados nos capítulos 5, 6 e 7 de Mateus, enquanto que em Lucas temos um breve resumo comparativo e que complementa a nossa reflexão.

As bem-aventuranças, talvez a parte que me pareça mais difícil, representa a inversão dos valores da sociedade. Debater a respeito de cada uma delas, requer uma artigo específico, pois são ensinamentos de grande profundidade, sendo a meu ver um convite para abrirmos mão de nossa vida com conforto afim de lutarmos pela implantação do Reino de Deus nos corações dos homens, experimentando primeiramente nas nossas vidas.

No entanto, a parte do Sermão do Monte que mais quero focar neste texto relaciona-se com o cumprimento dos mandamentos de Deus, em que Jesus disse nos versos de 17 a 20 do capítulo 5 que não veio para revogar a Lei e sim cumpri-la.

Geralmente quando a nossa versão traduzida da Bíblia fala da palavra lei está se referindo à Torah hebraica, a qual, em termos mais exatos, significa a instrução ou o ensino de Deus aos seu povo. E, em última análise, não deixa de ser uma linguagem, uma maneira como a vontade de Deus foi expressa no contexto de um determinado tempo para todas as gerações.

Após ter dito aos seus ouvintes que eles só entrariam no reino dos céus se praticassem uma justiça superior a dos escribas e fariseus, Jesus passa para uma abordagem do sexto e do sétimo mandamentos do decálogo, dando a sua interpretação.

Ora, séculos antes de Jesus, Moisés também interpretou o que significavam o “não matarás” e o “não adulterarás”. Em Êxodo 21.12-14, bem como em Deuteronômio 19.4-13, faz-se uma distinção entre o homicídio doloso e o culposo em que o responsável por uma morte acidental não seria condenado à pena máxima, podendo abrigar-se numa das cidades de refúgio onde o vingador de sangue não o alcançaria. Quanto ao adultério, ainda que Moisés tenha considerado como uma variante do pecado a quebra do compromisso pré-nupcial, ele soube distinguir a situação da noiva fiel que não tinha como reagir diante de um estupro da mulher que consentiu em ter relações sexuais com outro homem. Tendo condições de evitar o ocorrido.

Jesus, porém, sem acrescentar ou remover nada do que havia sido determinado na Torah, mostrou que a ira sem motivo contra uma pessoa, um insultou ou a intensão impura no coração de um homem em relação a uma mulher também seriam pecados, conforme se lê na interpretação dada ao adultério:

“Ouvistes o que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela. Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não vá todo o teu corpo para o inferno.” (Mateus 5.27-30)

Com tais palavras, Jesus não apenas denunciou aqueles que tentavam subverter ou descartar os mandamentos da Torah, como também mostrou qual é o padrão elevado de Deus.

Para os judeus, Deus encontra-se numa esfera de superioridade inatingível em relação aos homens, o que era representado pela colocação da Arca da Aliança na parte mais íntima do Tabernáculo – o Santo dos Santos ou Lugar Santíssimo – onde apenas uma vez por ano o sumo-sacerdote entrava do dia o Yom Kippur para fazer expiação pelo povo. Significa a existência de uma distância capaz de estabelecer uma separação entre uma humanidade pecadora e um Deus que é santo.

Tenho pra mim que um dos objetivos do Sermão da Montanha foi justamente levar o povo à tomada da consciência de que os seus atos os encerravam debaixo do pecado. Pois, se o meu olho direito me faz pecar e por isso devo arrancá-lo e jogá-lo fora, ou por um mesmo motivo amputar a minha mão direita, então chego à conclusão de que nenhuma parte do meu corpo jamais poderá entrar no reino dos céus. Pois nem mesmo a minha mente impura consegue entrar no céu, o que torna impossível a minha condição já que não dá para arrancar fora o meu cérebro pecador sem que eu sobreviva.

Mas por que o Senhor agiu com tanta severidade? Por qual razão Jesus teria levado os seus ouvintes a um conflito tão grande? E por que a Lei de Deus seria algo incumprível?

Acredito que o Sermão da Montanha, assim como várias parábolas e ensinamentos de Jesus, foram uma preparação para a graça salvadora de Deus que estava prestes a se manifestar. Algo que seria compreendido depois de sua morte na cruz, a qual trouxe perdão a todos os homens, dando uma esperança de herdar o reino dos céus por intermédio da ressurreição através de um novo corpo incorruptível, conforme nos explicam melhor as epístolas.

Contudo, no próprio Sermão da Montanha, assim como em todo o misterioso Antigo Testamento, há pistas acerca da graça divina. Pois, analisando as palavras de Jesus, por qual motivo deveríamos nós deixar de lado a vingança para praticarmos o amor ao próximo incluindo os indesejáveis inimigos que tanto nos aborrecem. Vejamos, pois, o que diz o Evangelho segundo Lucas a respeito do amor:

“Se amais os que vos amam, qual é a vossa recompensa? Porque até os pecadores amam os que os amam. Se fizerdes o o bem aos que vos fazem o bem, qual é a vossa recompensa? Até os pecadores fazem isso. E, se emprestais àqueles de quem esperais receber, qual é a vossa recompensa? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto. Amai, porém, os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nenhuma paga; será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo. Pois ele é benigno até para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, como também é misericordioso vosso Pai.” (Lucas 6.32-36)

Em Mateus, Jesus fala que Deus levanta o sol sobre bons e maus e manda a chuva sobre justos e injustos. Porém, no texto de Lucas, o Senhor resume tudo na frase imperativa do verso 36 para que sejamos misericordiosos tal como Deus é.

Há um mistério escondido na tolerância e na benignidade de Deus em relação aos maus e injustos. Por que o Pai Celeste dá o sustento diário a pessoas que matam, roubam, mentem, blasfemam, estupram e agridem? Será que o adultério cometido nos meus secretos pensamentos quando desejo uma mulher na rua ou os insultos ao meu adversário podem me levar para o inferno?

A resposta é que de fato até os pensamentos impuros do meu coração e as atitudes erradas que pratico certamente são capazes de me condenar, pois me colocam na mesma condição dos demais pecadores que consumam o adultério e o homicídio. Porém, a graça de Deus tem poder suficiente para salvar a todos do castigo eterno de modo que não entro no céu pela minha própria bondade e sim por causa da misericórdia divina.

Todo esse entendimento deve nos levar a uma nova atitude em relação ao próximo, o que Jesus expressou muito bem na célebre oração modelo do Pai Nosso: “perdoa as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.

Se recebo de Deus o perdão pelos meus graves pecados, quem sou eu para reter a misericórdia ao meu próximo?

Nenhum comentário:

Postar um comentário