No livro de Atos dos Apóstolos, o quinto do Novo Testamento da Bíblia, o autor, ao descrever como era a vida comunitária da Igreja primitiva em Jerusalém, mostra que os primeiros cristãos tinham o saudável hábito de fazer suas refeições em grupo:
“Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam o pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração” (Atos 2:46)
Tal passagem do livro encontra-se no contexto que menciona como era a vida daquela primeira comunidade de convertidos que surgiu no século I, a partir do dia de Pentecostes do ano da morte e ressurreição de Jesus. Os versículos anteriores mostram que todos aqueles que creram “estavam juntos e tinham tudo em comum”, a ponto de venderem os seus bens para distribuírem com todos, conforme a necessidade dos integrantes do grupo.
Embora muitos identifiquem este momento glorioso da Igreja com o comunismo, tenho pra mim que o comportamento praticado pelos judeus convertidos em Jerusalém aproximavam-se mais das comunidades indígenas e pré-históricas. Principalmente por causa do forte sentimento de unidade, o que umas sete semanas, logo após a Ceia, antes foi expresso por Jesus durante a sua magnífica oração sacerdotal:
“Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim.” (Evangelho segundo João, cap. 17, versos 21 a 23)
Ora, toda essa unidade foi construída dentro de uma atmosfera verdadeiramente espiritualizada, sem que houvesse uma obrigatoriedade na repartição de riquezas, mas prevalecendo um comportamento de reverência a Deus e de intenso amor, a ponto de todos quererem estar juntos e ter tudo em comum. E, ao que tudo indica, a Ceia era celebrada em meio aos banquetes da comunidade.
Lamentavelmente, a Igreja perdeu esta característica no decorrer dos tempos. No próprio século I, umas duas décadas depois do Pentecostes, na cidade grega de Corinto, o apóstolo Paulo criticou aquela comunidade de cristãos por se achar dividida e não unida, o que era percebido nas próprias reuniões durante a Ceia:
“Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis. Porque, ao comerdes, cada um toma, antecipadamente, a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague. Não tendes, porventura, casas onde comer e beber? Ou menosprezais a igreja de Deus e envergonhais os que nada têm? Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto, certamente, não vos louvo.” (1ª Epístola aos Coríntios, cap. 11, versos 20 a 22)
Na atualidade, as congregações cristãs em sua maioria limitam-se à celebração da Ceia, baseando-se numa compreensão parcial da passagem bíblica acima citada e sem considerar que o pão costumava ser partido durante as refeições comunitárias. Alguns chegam a entender equivocadamente que a Igreja não seria o local para as pessoas se alimentarem apenas porque o apóstolo Paulo disse que se alguém tem fome comesse “em casa”.
Porém, o que compreendo quanto aos ensinamentos de Paulo na carta aos coríntios é que as refeições comunitárias na Igreja jamais seriam ocasiões para atitudes individualistas. Estas, por sua vez, acabavam trazendo desordem à celebração do grupo em que, aparentemente, pessoas mais ricas estariam promovendo os seus próprios banquetes separadas dos demais irmãos de condição humilde, ofendendo o Corpo de Cristo. Logo, se tais pessoas estavam afim de patrocinar suas próprias festas, era melhor que ficassem em suas casas ao invés de se reunirem para celebrar em conjunto a Ceia do Senhor.
Em vinte séculos depois praticamente, parece que a Igreja preferiu deixar de agir para não pecar contra os ensinamentos paulinos. A ingestão do pedaço de pão e da pequena porção de suco de uva nas reuniões de hoje ocorre simultaneamente apenas para que todos possam comer e beber juntos, mas ao término da celebração, cada um vai para a sua própria casa cuidar de seus interesses e se esquece de manter um contato contínuo com o irmão.
Nesses tempos de extremo individualismo, tenho visto as pessoas evitarem umas as outras, o que, infelizmente, tem acontecido até na Igreja. O homem do século XXI substituiu a linguagem polida pelas gírias e inventou maneiras excêntricas de se cumprimentar, mas ainda assim as pessoas vivem distantes nos seus relacionamentos, deixando de compartilhar as suas vidas e nem querem saber como vai o seu próximo. Por regra e etiqueta aprendemos que sempre deve-se responder que está tudo bem para que continuemos sendo socialmente aceitos.
Diante de tal quadro negativo, cabe à Igreja fazer diferença e criar um ambiente totalmente oposto do que é o mundo ao invés de se alienar nas extasiantes celebrações musicais em que o sentido das emoções parece ter sido colocado a frente da devoção a Deus. E, neste sentido, parece-me que o resgate das refeições em conjunto pode ser um bom começo para vivenciarmos princípios de uma vida comunitária.
Contudo, não basta apenas a Igreja reunir-se para um almoço, pois é necessário que cultivemos relacionamentos. Por diversas vezes já almocei e jantei em retiros espirituais, mas nem sempre o momento é suficientemente apreciado. No café da manhã, os que precisaram ser acordados para participar das primeiras atividades tomam apressadamente a refeição e se esquecem de que o culto a Deus deve ser prestado a todo instante, inclusive no momento da alimentação. No almoço e na janta, nem sempre as pessoas comem juntas como na Ceia, até mesmo porque enquanto uns estão se alimentando, outras ainda estão em pé na fila. Porém, ainda assim há alguns que permanecem no refeitório conversando quando há condições para tanto e, ao término do retiro, retornamos ao nosso empobrecido contato superficial com os irmãos.
Curiosamente, quando muitas pessoas estão com aquelas com as quais se identificam, as refeições podem durar uma infinidade. O encontro é espontâneo e as pessoas não se incomodam de ficar juntas celebrando a vida e às vezes sem a participação de Deus. Para preencher tal carência, o excesso de álcool passa a ser o combustível das reuniões de bar, após as quais já não há mais nenhum compromisso de caridade com o próximo. Distribui-se copos de cerveja, mas falta o amor.
Cultivar relacionamentos é essencial para crescermos, os quais não podem se basear em identificações do sentimento. Aceitar o próximo com as suas deficiências faz parte da missão da Igreja, de modo que precisamos nos diferenciar do mundo aprendendo a estabelecer relações com pessoas de outras classes sociais, de faixas etárias acima ou abaixo das nossas e portadoras de necessidades especiais (todos somos deficientes em alguma coisa). Não podemos nos fechar em pequenos grupos de amigos que se isolam, mas devemos aprender a compartilhar com o irmão e desenvolver a unidade construída em Cristo pelo Espírito que Ele nos dá.
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