"Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração." (Eclesiastes 7:2)
Nunca tive o costume de ir a cemitérios nesta época do feriado de Finados, comemorado mundialmente em 02/11. Contudo, fui aprendendo a ter a devida reverência pelos que partiram, sobretudo os nossos ancestrais, quer tenham sido familiares, amigos ou pessoas que deixaram uma importante contribuição para a coletividade.
Nascido numa família não religiosa, em abril 1976, passei a infância bem distante dos velórios, o que acho uma experiência necessária para todos. Porém, sem que as minhas emoções tenham sido expostas a isso, precisei aprender logo cedo com a impactante morte prematura de meu pai, em setembro de 1983, quando ele tinha seus 36 anos.
Além disso, fui privado de participar do velório. Contaram-me sobre o seu falecimento, dias depois do enterro, em que foi passada uma versão inverídica de como teria ocorrido o óbito. Isto é, primeiro o adoeceram num hospital em Minas Gerais para, então, depois de uns dias de internação, informarem sobre uma morte que, na verdade, já havia acontecido bem antes e de uma maneira repentina no apartamento que alugava no Leme.
Não sei se poderia chamar meu saudoso pai de "meu velho", como muitos filhos carinhosamente se referem aos seus genitores, pois ele era jovem quando se foi e jamais passou pela minha mente que ficaria órfão tão cedo. Porém, a nossa convivência cotidiana foi curta porque, em razão da separação dele e de minha mãe, por volta de 1979/1980, a companhia que antes era diária tornou-se uma visita de alguns fins de semana.
Até hoje a sua fisionomia de um homem moreno, magro e com barba acirrada não me sai da memória e tão pouco me esqueço dos passeios que fizemos juntos, quer ele estivesse ainda casado com minha mãe ou já separados. Costumávamos visitar os pontos turísticos do Rio como o Corcovado, Pão de Açúcar, o zoológico da Quinta da Boavista, o Jardim Botânico, algumas praias da Zona Sul, sem contar os dois clubes do Grajaú, o restaurante Planalto da Praça Malvino Reis, além dos cinemas e teatros, mais a casa da minha tia Lourdes em Copacabana, sua irmã.
Em todo caso, da criança que, até então, praticamente só se encontrava com o pai nos passeios de sábado ou domingo, nas festas de aniversário, bem como nas vezes quando ele vinha pessoalmente entregar o pagamento da pensão em mãos à minha mãe, apenas fui conhecer algo sobre sua personalidade posteriormente. Isto é, por meio dos relatos de meus avós e de minha mãe, sempre exaltando suas qualidades como a inteligência acima da média, a honestidade, a solidariedade com os mais necessitados, o idealismo político (era de esquerda e brizolista) e a capacidade de se posicionar em favor de algo/alguém independentemente de desagradar quem quer que fosse.
Logicamente que, com o tempo, fui descobrindo sobre ele traços de personalidade que uma criança não costuma valorizar uma vez que humaniza os seus heróis familiares. Ou seja, a sua tendência ao alcoolismo e ter sido um homem com momentos depressivos, coisas que muitas vezes os adultos escondem dos filhos ainda numa idade jovem.
Por certo, quando perdemos os nossos entes querido, preferimos exaltar mesmo as suas qualidades de modo que tornamos os seres reais que viveram entre nós em projetos arquetípicos, conforme as preferências do nosso inconsciente. As pessoas que nos importam se tornam mais do que elas foram (e não menos), sobretudo para atender à nossa necessidade de estabelecermos referenciais de vida por meio de ícones da mente.
Entretanto, se perdi logo muito cedo um pai que ainda era jovem quando partiu, supõe-se logo que me sobrassem os avós e, de fato, no ano de 1983, restavam-me os quatro ainda vivos (e com saúde), os quais ultrapassaram o século XX, estando um deles ainda vivo, com 91 anos, na cidade de San José, capital da Costa Rica. E tive também a oportunidade de conviver com uma bisavó, mãe da avó materna, e conhecer a mãe do avô paterno.
Pois bem. Enquanto muitos confundiam a minha avó materna com a minha mãe, já que as nossas diferenças de idade eram de apenas quarenta anos, a bisa encaixava-se na imagem daquela perfeita velhinha que morava numa casa de vila no Grajaú, sendo, aliás, a habitação mais humilde dentre as doze construções que hoje formam um pequeno condomínio no arborizado bairro da Zona Norte do Rio. Nunca soubemos exatamente a sua idade, mas conhecíamos a sofrida história de uma mulher que se tornou órfã de mãe logo no parto e veio do interior do Piauí para o Rio de Janeiro ainda nas primeiras décadas do século XX.
Certamente que, na primeira metade da década de 80, quase não se pensava num idoso brasileiro com mais de 70 anos levando a vida com autonomia, exercitando-se, ou trabalhando. Usava ela roupas antigas, quase não saía de casa, falava baixinho e educadamente, não bebia álcool (nem refrigerante ou chocolate), fazia alguns serviços domésticos, tinha um comportamento católico-religioso com vários santinhos no quarto, embora tivesse um pé no espiritismo, assistia a novela das seis e, sem demorar muito, recolhia-se para dormir sobre um velho colchão de palha numa cama dividida com meu tio.
Com essa bisa, cujo nome homenageava Maria de Nazaré, mãe de Jesus, convivi cerca de um ano, assim que minha mãe se separou do papai e saímos do apartamento na rua Comendador Martinelli, também no Grajaú. E, depois que passei por diversas outras casas, sempre a via quando vinha para uma visita, quer fossem férias, um feriado, um almoço em família, ou em outras oportunidades, até que um dia, sem que eu soubesse, ela partiu já no ano de 1989.
Não me recordo da última vez em que vi a bisa, porém a época da sua despedida coincidiu com um sonho, ocorrido antes da notícia de um real falecimento num hospital. De modo algum a vi morrendo, mas, sim, como se estivesse convivendo normalmente entre nós e já não me recordo mais de qualquer detalhe, havendo ocultado de todos tal experiência.
Quanto ao meu pai, nosso último e breve encontro tinha sido numa tarde chuvosa do mês de seu falecimento quando ele veio deixar a bicicleta Caloi Cross que eu tanto aguardava receber. Um veículo que nem sabia andar direito por falta das rodinhas de apoio, mas que aprendi a me equilibrar cerca de dois anos após quando já morava com meu avô paterno em Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais.
Acerca deste avô, falecido no final de maio de 2005, dele tenho muito mais a dizer sobre sua pessoa pois convivemos por muitos anos, tanto no final da infância, durante toda a minha adolescência e na juventude adulta. Dele recebi muitos exemplos de vida, dos quais lamento profundamente não tê-los posto em prática na quase totalidade.
Até o falecimento de meu pai, meu avô era só um ilustre visitante que, desde criança, fui habituado a chamar de "vovô mineiro", embora ele fosse mesmo carioca, nascido no bairro Todos os Santos. Aquela era uma maneira de distingui-lo do avô materno a quem me apresentaram como sendo o "vovô grego", por motivo de nacionalidade, apesar de nascido territorialmente no Egito.
Para melhor resumir, o vovô mineiro era homem de palavra, pontual, de bom porte físico (havia sido militar por mais de 35 anos), cumpridor de deveres, metódico, prestativo, sem vícios de cigarro ou de álcool, porém, ao mesmo tempo, muito emotivo e chegava a se aborrecer facilmente por qualquer reclamação a meu respeito da escola ou quando eu agia destemperadamente. Ele era entusiasta das ciências exatas, admirava o positivismo, não seguia nenhuma religião, mas sempre respeitava todas elas.
Politicamente, era o contrário do meu pai pois p seu pensamento convergia mais para a direita de modo que Lula e Brizola eram para ele uns dos piores candidatos no pleito presidencial de 1989. Só que meu vô nunca foi um cidadão participativo, pois poucas vezes votou na vida e nunca mais compareceu às urnas quando ficou livre dessa obrigação em razão da idade. Inclusive, os seus conselhos eram que eu nunca se metesse com eleições, partidos políticos, movimento estudantil, sindicatos, manifestações de rua, etc.
Confesso que, nos meus tempos de estudante do antigo "segundo grau" (atual ensino médio), fiz justamente o oposto. No ano seguinte ao impeachment de Collor (1992), tornei-me um frequentador e membro da diretoria da entidade que representava os secundaristas em Juiz de Fora. Escondido dele, viajei para fazer um protesto em Brasília e ainda participei de outros eventos semelhantes na cidade como passeatas pelo passe livre e a vez em que o então presidente Itamar Franco encontrava-se num show do cantor Caetano Veloso, sem que as carteiras da meia-entrada da UBES e da UNE estivessem sendo aceitas, além de ter militado nas eleições de vários grêmios escolares e apoiado candidatos no pleito geral de 1994.
Evidentemente, muitos me viam nessa época como uma espécie de ovelha negra da família pelas preocupações e contrariedades que sempre causava ao meu avô. Ele, por sua vez, temia que pudesse vir a morrer e deixar o neto economicamente desprotegido sem ainda ter uma profissão e, com isso, sempre insistia para que eu fizesse um concurso público antes mesmo de ter um diploma universitário.
Não acho que fui um bom neto e, às vezes, por mais que me esforçasse, não conseguia mudar minha conduta que, em vários momentos, foi péssima no trato respeitoso com as pessoas e criava inúmeros problemas. Ainda que não considere negativo um estudante participar da vida política de sua sociedade, tenho consciência das falhas que muito o aborreceram em sua velhice quando frequentemente extrapolava.
Aos 22 anos, depois de muito ter aprontado, saí voluntariamente de Juiz de Fora e, por minha livre escolha, fui viver em Nova Friburgo, região serrana fluminense, onde dei continuidade ao curso de Direito que já havia iniciado em Minas. Vivendo lá, conheci Núbia, minha esposa, durante um passeio no Carnaval de 1999, mais precisamente num lugarejo de Macaé chamado Sana, próximo a Lumiar.
Entretanto, foi nessa época que a vida me pregou uma peça. Cerca de um ano e meio depois, em meados de 2000, meu avô ficou inconsciente e não mais me reconhecia quando eu ia visitá-lo. Com isso, não mais conseguir conversar com ele tornou-se muito doloroso porque nem mais era possível falar-lhe de algo que traria algum contentamento.
Apesar de livrar-se de muitas internações no Hospital Militar de Juiz de Fora por motivo de saúde, meu avô passou seus últimos anos de vida num estado de inconsciência e vegetativo em que, no final, já não mastigava mais os alimentos e foi preciso instalar no seu corpo uma sonda pela qual a comida era conduzida até o estômago. Para que suas necessidades fossem atendidas, havia sempre uma cuidadora para lhe assistir a cada doze horas.
Quando chegou a época de sua partida, eu já tinha seis meses de formado e também me achava inscrito há cerca de trinta dias na OAB como advogado. Tive que interromper uma viagem de passeio na Bahia com Núbia quando soubemos da gravidade do seu estado e acabei ficando quase uma semana hospedado num hotel em Juiz de Fora, visitando-o diariamente no Hospital Militar, até que resolvi retornar para passar o último fim de semana no mês em casa, quando meu velho tinha demonstrando sinais de melhora.
De qualquer modo, não desejava que meu avô permanecesse naquele estado por mais tempo e imaginava que, mesmo num estado de inconsciência, ele ainda se mantivesse psiquicamente preso ao meu bem estar porque se preocupava com o futuro do único filho do seu filho prematuramente falecido. Se o vô precisasse partir, ainda que eu não houvesse alcançado independência financeira, preferiria que o seu sofrimento não fosse mais prolongado por minha causa.
A notícia de seu falecimento repentino fez com que eu desmarcasse imediatamente um compromisso agendado com um cliente em Friburgo e partisse com Núbia para Juiz de Fora outra vez a fim de comparecer ao velório e, no dia seguinte, ao enterro. Pela primeira vez, aos 29 anos, tive a oportunidade de despedir-me do corpo de alguém muito próximo, com quem houvesse convivido por um tempo considerável.
Estar num enterro ou velório de uma pessoa muito querida, por mais triste que seja, nos coloca mais perto da realidade da vida em que as distrações costumam perder todo o sentido. Ali choramos sem nos reprimirmos e ficamos desembaraçados para falar com as demais pessoas tudo o quanto precisamos dizer a elas sobre coisas que passaram.
Por outro lado, há quem nos olhe com sentimentos de julgamento e de condenação, querendo nos impor a prolongação de culpas por situações pretéritas. Nem todo mundo é acolhedor nessas horas enquanto outros são apenas educados quando transmitem as mensagens de "meus pêsames" ou "meus sentimentos".
Não passou uma década e eu ainda perdi minhas duas avós nos anos de 2011 e 2012, acerca das quais escrevi aqui no blogue nas postagens Adeus, vovó! e E vovó finalmente descansou. Com ambas, também convivi na infância, na adolescência e na idade adulta no Grajaú, tendo sido despedidas sofridas, embora menos dramáticas do que em relação ao pai e ao avô.
Atualmente, faltando menos de um ano e meio para completar a metade de um século de vida, quando já poderia ser pai e até avô, mantenho viva a memória dos nomes dessas cinco pessoas tão próximas, dando-lhes uma espécie de sobrevida em nossa meio: meu pai Francisco Carlos Ancora da Luz (1946-1983), minha bisavó Maria Nazareth de Albuquerque (????-1989), meu avô paterno Sylvio Ancora da Luz (1917-2005), minha avô paterna Darcília Ferreira da Silva Pinhão (1921-2011) e minha avó materna Marisa de Albuquerque (1935-2012).
Tive ainda outros bisavós, tios-avós e primos que faleceram, além do meu sogro, Francisco Cilense Neto (1941-2002) sobre quem ela mesma escreveu na postagem Lembranças de meu pai, em seu próprio blogue hoje em desuso. Dentre os bisavós, cheguei a conhecer uma bisavó que viveu até os 99 anos, dona Nadina Dietrich Ancora da Luz, mãe do meu avô paterno, nascida no final do século XIX, assim como todos os irmãos deste mesmo avô, os tios-avôs Arnaldo e Mário, bem como as tias-avós Ivete e Lucy, sendo que cheguei a visitá-los na rua Ibituruna, na Tijuca, quando passei a morar com vovô na segunda metade dos anos 80, sendo todos eles já idosos.
Assim termino o texto sobre os meus entes queridos que já foram, ciente que não foi possível falar acerca de todos os familiares falecidos com os quais convivi. E, como já não estão mais presencialmente aqui, resta-nos lembrar deles com gratidão e apenas cuidarmos melhor dos que hoje estão vivos, aplicando ao nosso coração a experiência de aprendizado obtida com o luto.
Que Deus nos ajude nessa tarefa diária, dando força, consolo, amor e sabedoria!
OBS: Foto de meu pai e eu na comemoração do aniversário de 5 anos, em 1981.