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quinta-feira, 3 de maio de 2012

As montanhas e rios de João


"Quando saímos numa jornada, os rios deixam de ser rios e as montanhas deixam de ser montanhas (...)" - Parte de um ditado Zen


Era uma vez um homem chamado João. Nascido num povoado rural do interior de seu país, ele era plenamente integrado com o modo de viver de sua família e a cultura de seu povo. Educado pela moral de seus pais, ele aprendeu desde cedo valores que julgava ser corretos, os quais aceitava sem questionar.

No centro da aldeia de João, havia um templo onde as pessoas costumavam se reunir. Ali realizavam festas comunitárias, celebravam casamentos, cantavam louvores, faziam preces e liam com reverência um certo livro considerado sagrado. Através dos líderes do local, as crianças eram ensinadas conforme as narrativas e poemas escritos naquela bíblia.

Mais interessado do que os outros garotos de sua idade, João aprendeu rapidamente sobre os ensinamentos e histórias daquele livro. Tornou-se o preferido do mestre e um exemplo para os colegas dentro da congregação. Até seus pais ficaram surpresos com o conhecimento do menino e nisto ele se diferenciava do irmão mais velho Tiago.

Na escola, João foi por muito tempo motivo de orgulho para toda a família. Tirava sempre boas notas. Ali ele não somente aprendeu o idioma de seu povo como se tornou um excelente aluno em Matemática, História e demais matérias, demonstrando sempre um desenvolvido raciocínio lógico. E tudo caminhava em paz até ele ser apresentado à diabólica Filosofia.

Começando a refletir, um dia João duvidou dos valores e dos ensinamentos que lhe foram transmitidos. Descobriu a existência de outros livros sagrados além daquele que era sempre estimado pelos aldeões. O que antes considerava errado já não lhe parecia tão equivocado e o certo não tão correto.

Em busca de suas próprias experiências, João deixou o pacato vilarejo de seus pais. Abraçou forte seu irmão Tiago e foi em direção da estação de trem carregando as malas, deixando no cômodo onde dormia apenas a bíblia que antes tanto consultava. Sua mãe chorou inconsolada e o pai respeitou a decisão do filho mais novo desejando-lhe prosperidade em seu destino.

Na cidade grande, João foi logo absorvido pela rotina agitada. Por muitos anos, não teve tempo para outra coisa senão trabalhar e estudar assuntos que precisava para melhorar a sua condição econômica. Seus momentos de folga eram preenchidos com namoro, saídas com os amigos e outras distrações comuns. Rapidamente as agitações do cotidiano tomaram conta da sua agenda.

Um dia Tiago veio lhe visitar trazendo consigo a bíblia esquecida por João. Este não demonstrou muito entusiasmo pelo objeto mas, por delicadeza e consideração à família, agradeceu colocando o livro sobre a estante. Em seu coração, aqueles textos tidos como sagrados representavam só literatura religiosa ultrapassada com uma qualidade inferior a outras obras disponíveis na biblioteca da faculdade. Quando seu irmão saiu, ele tirou a bíblia da estante e a escondeu num baú cheio de coisas velhas.

João casou-se, arranjou emprego, foi promovido na empresa, gerou filhos, adquiriu bens e, como todo ser humano, passou por perdas em situações difíceis. Nestas horas, ele começou a recorrer a literaturas que pudessem fornecer respostas e fortalecê-lo no enfrentamento dos problemas. Conheceu outras bíblias que também eram considerados sagradas por seus respectivos seguidores.

Sobre um desses livros diziam ter sido a última revelação dada por um anjo a um profeta do deserto. Outro continha ensinamentos sobre o desapego que um suposto deus vindo à terra ditou ao seu servo. Tinha ainda mais uma obra escrita por um sábio oriental. E, finalmente João acabou interessando-se por mensagens de autoria atribuída a espíritos de pessoas mortas, além de artigos criticando ou defendendo as religiões, estudos místicos dos astros, filósofos que escreveram sobre metafísica e teólogos que explicavam as velhas coisas com palavras atuais.

Cansado de tanto ler e de buscar explicações, João resolveu achar a resposta em si mesmo. Procurou compreender a essência existencial através do seu coração, porém sem desprezar os livros tidos como sagrados. Então, com o tempo, tudo pra ele passou a ter significado. Coisas escritas e não escritas, acontecimentos bons ou ruins, o canto dos pássaros e o ruído estridente da máquina, a dor e o prazer, o nascimento e a morte, eis que todo o Universo passou a fazer sentido pra ele.

Com os filhos já formados e sem precisar mais trabalhar, João resolveu retornar para a aldeia natal. Ao arrumar a bagagem, encontrou esquecido no baú o velho livro que seu irmão Tiago havia lhe trazido de casa quando estava na faculdade. A bíblia estava coberta de poeira e as folhas todas amareladas. Parou por um instante com a organização dos móveis e utensílios domésticos pondo-se a revirar aquelas páginas até a madrugada terminar e o novo dia nascer.

Encontrando a essência da vida manifestada também naquele livro que a princípio considerava como a mais absoluta versão da verdade, vindo a perder totalmente a identificação depois, eis que, desta vez, João sentiu como se tivesse dado a volta ao mundo num navio e retornado ao mesmo porto de partida. Porém, havia uma grande diferença. Sua saciedade interior poderia ser percebida tanto ali quanto em outros meios.

De volta ao povoado de origem, João encontrou seus pais bem idosos e o irmão trabalhando no campo. O templo estava em ruínas, fechado, e o mestre que antes lhe introduzira na pesquisa do sagrado tinha falecido sem que nenhuma liderança ocupasse o seu lugar. Na aldeia, jovens se embriagavam cada vez mais e casais estavam se desentendendo. Além do mais, o desemprego estava alto nas fazendas, faltavam médicos no posto de saúde e as escolas precisavam de mais professores. Metade da população já não morava mais no local e a alegria do passado tinha deixado o lugar.

Indignado com a situação, João resolveu convocar todos para uma reunião comunitária. Como precisavam de um espaço, Tiago sugeriu que usassem o velho templo, o qual precisou de uma faxina. Cartazes anunciando o evento foram pregados nas mercearias e pontos mais movimentados da comunidade. E assim iniciou a assembleia com muitas deliberações.

Sempre apoiado por Tiago e velhos companheiros de infância, João tornou-se o mestre espiritual daquela comunidade. O livro que por anos desprezou voltou a ser considerado sagrado por ele. E, sendo a principal fonte de consulta dos tradicionalistas aldeões, os poemas e narrativas escritos ali compuseram as mais motivadoras mensagens que brotavam no coração daquele filho pródigo que retornara ao lar. O filho que, crendo e descrendo, foi razão de orgulho e de satisfação para seus pais até o fim da vida deles.


"(...) Quando a jornada termina, os rios voltam a ser rios e as montanhas voltam a ser montanhas." - Final do ditado Zen


OBS: A ilustração acima refere-se a uma foto do Parque Nacional da Serra dos Órgãos extraída de um site oficial do Instituto Chico Mendes http://www4.icmbio.gov.br/parnaso/index.php?id_menu=59

2 comentários:

  1. Rodrigão, precisamos aprender a valorizar o lado nobre da "DÚVIDA".

    Sem essa capacidade e/ou direito da dúvida que deve ser exercida de maneira equilibrada, nos tornamos alienados e irracionais.

    A credulidade orientada simplesmente pelos impulsos e sensações emocionais, se torna cega e uma perigosa armadilha para quem dela se utiliza.

    Temos que ter o equilíbrio em equacionar dúvida e credulidade, de maneira que promova nosso crescimento como seres em constante evolução, não nos deixando cair nos extremos que são perigosos para alma.

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  2. Concordo contigo sobre o exercício da dúvida, Franklin! Inclusive gosto da expressão "arte da dúvida", sendo que este pode ter sido um dos métodos de aprendizado utilizados por Jesus, o Mestre dos mestres.

    Acredito que sempre iremos estar questionando as coisas. Quando "a montanha volta a ser montanha", novamente inicia-se um outro processo dialético. Só que, felizmente, não tomamos banho duas vezes no mesmo rio como ensina a dialética. Aliás, sobre isto, vale a pena citar aqui um trecho do livro Experimentando Deus do Leonardo Boff:


    "Num terceiro momento da experiência de Deus, reabilitamos as imagens de Deus. Após tê-las afirmado (A), tê-las negado (B), agora criticamente nos reconciliamos com elas. Assumimo-las como imagens e não mais como a própria identificação de Deus. Compreendemos que nosso acesso a Deus só pode ser feito através das imagens. Começamos a saboreá-las porque estamos livres diante delas. Elas são os andaimes, não a construção, e as acolhemos como andaimes. Não pretendemos nenhuma ciência sobre Deus; saboreamos a sabedoria de Deus que se revela através de todas as coisas. Tudo pode se tornar transparente a ele, porque tudo é figurativo. Figurativo de quê? De Deus, de sua sabedoria, de seu amor, de sua bondade e de sua misericórdia, etc. Mas isso só é possível se tivermos passado pelo primeiro e segundo momentos, quando nos tivermos libertado da simples "sabedoria da linguagem"(I Cor 1,17) e quando tivermos já passado pela "doutrina da cruz" que destrói a ciência dos cientistas (I Cor 1,18-23). Então não nos preocupamos mais com os antropomorfismos, porque sabemos que tudo o que dissermos de Deus é antropomorfo. Mas Deus pode ser antropomorfo (à imagem do homem) porque o homem é teomorfo (à imagem de Deus)."


    Continuando, você escreveu que:

    "A credulidade orientada simplesmente pelos impulsos e sensações emocionais, se torna cega e uma perigosa armadilha para quem dela se utiliza."

    Concordo! O emocionalismo não gera um relacionamento profundo com Deus. Embora as emoções componham o ser humano, elas são apenas um aspecto de nós assim como a racionalidade e outros meios de interação. Daí a importância de meditarmos na Palavra como bem ensina o Salmo 1º:

    "e na sua lei medita de dia e de noite." (Sl 1.2b)

    A orientação bíblica não seria para nós desenvolvermos uma credulidade infantil como muitos pensam usando até o exemplo da passagem de Jesus com as crianças. Eu acredito que toda a Escritura, inclusive aquela fora do cânon das bíblias, serve para que desenvolvamos reflexões, interpretações, analogias, inferências, desvendemos segredos que existem dentro de nós mesmos, etc.

    Concordo quando o irmão fala em "equilíbrio". Trata-se da indispensável sensatez que precisamos ter na análise das coisas para que , por exemplo, não levemos uma vida nem mundana ou asceta.

    Abraços e tenha um ótimo descanso semanal.

    Shabat Shalon!

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