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terça-feira, 10 de abril de 2012

O amor que triunfa sobre a apostasia

“(...) e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará.” (1Coríntios 13.3; ARA)


Em sua obra mais aclamada, O Silêncio (1966), o romancista cristão japonês Shusaku Endo (1923-1996) trouxe novas luzes acerca da polêmica questão do martírio religioso ao refletir sobre o drama de dois apóstatas jesuítas do século XVII.

Após a bem sucedida evangelização empreendida pelos padres portugueses no Japão, durante o século XVI, eis que o país mergulhou numa triste fase de perseguição religiosa promovida pelo Shogunato Yokugawa. Este não só expulsou os jesuítas como obrigou cristãos japoneses a renunciarem a fé retornando ao budismo. Aqueles que se recusavam eram torturados e cruelmente assassinados. Já os que optassem pela apostasia recebiam a liberdade e para tanto muitos deles precisavam provar não serem mais cristãos pisando num fumi-e (uma imagem em bronze de Maria ou de Jesus enquadrada numa pequena moldura).

Ambientado neste período histórico é que se desenvolve o romance de Endo contando o drama de um sacerdote português chamado Sebastião Rodrigues. Ex-aluno do padre Ferreira no seminário católico, Rodrigues recebeu a triste notícia de que seu mestre havia apostatado e decide partir ao encontrou do missionário nas terras do sol nascente no fim da década de 1630.

Preso pelos shoguns, a princípio Rodrigues não negou confessionalmente a sua fé mesmo estando sob tortura. Porém, ele acabou sendo colocado diante de um insuportável problema ético. Debaixo de seus olhos, grupos de cristãos passaram a ser torturados e mortos. Caso ele concordasse em pisar no fumi-e de Jesus, as pessoas seriam libertadas. Do contrário, mais gente iria perder a vida por causa da recusa intransigente daquele missionário.

Situação complicada, não?

Como um missionário que tinha vindo ao encontro de um país com o objetivo de dar a sua vida por outros homens estava se tornando o motivo de tantas mortes?!

Por mais um tempo, Rodrigues ainda manteve-se firme em seu propósito de não renunciar a fé, seguindo a intrepidez dos antigos mártires da época romana. Contudo, num determinado momento, ele começa a refletir e permite que o amor possa ir além dos limites daquilo que a Igreja consideraria como apostasia. Então, numa noite, ao meditar sobre os gemidos de dor dos seus irmãos, o corajoso missionário português vislumbra a possibilidade de, finalmente, negar formalmente Jesus.

No encontro que tem com o padre Ferreira, seu mestre e mentor, este implora para que Rodrigues pisasse no quadro conforme havia feito antes, justificando ser aquilo apenas “um ato exterior, sem realmente ter significado”. Um ato, porém, que salvaria muitas vidas. E, assim, o aluno acabou seguindo as orientações de seu mestre por amor aos irmãos japoneses que estavam sendo brutalmente perseguidos:


“O padre levanta o pé. Sente uma dor profunda. Aquilo não era apenas uma formalidade. Ele está prestes a pisar naquilo que considerava a coisa mais linda de sua vida, no que acreditava ser puro, que estava cheio dos ideais e sonhos dos homens. Como seu pé dói! Então, o Cristo em bronze fala ao padre: 'Pise! Pise! Eu, mais do que ninguém, conheço a dor em seu pé. Pise! Foi para ser pisado pelos homens que vim ao mundo. Foi para compartilhar a dor dos homens que carreguei minha cruz'. O padre colocou o pé sobre o fumie. O dia amanheceu. E lá, bem longe, o galo cantou.”
(trecho de O Silêncio citado por Philip Yancey no livro Alma Sobrevivente: Sou Cristão Apesar da Igreja)


Na sua opinião, agiu corretamente aquele missionário jesuíta? O que você faria se estivesse no lugar do padre Sebastião Rodrigues? Também pisaria no fumi-e?

Até que ponto a idealização do sacrifício humano em defesa da fé não pode se tornar um fanatismo? Será que a concepção acerca do “martírio glorioso” não pode ser compreendida de uma maneira mais abrangente e essencial capaz até mesmo de incluir a aparente negação da fé?


OBS: A ilustração acima trata-se da foto de um fumi-e extraída do site da Wikipédia cuja autoria é atribuída ao usuário "Chris 73", podendo ser encontrada em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Jesus_on_cross_to_step_on.jpg

12 comentários:

  1. Cara, parabéns pelo blog. E que dilema hein? Negue a Jesus ou eu mato sua familia! É, não sei bem o que dizer, apenas quero orar ao Pai "para que nos livre do mal, e não nos deixe cair em tentação".

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    1. Prezado Leonardo,

      Seja bem vindo ao meu blogue!

      Sem dúvida que este é um dilema difícil de enfrentarmos. Não pelo fato de alguém pisar num quadro sobre Jesus (ato que não teria problemas para um protestante/evangélico), mas sim pelo sentido que colocou de negar a Jesus.

      Mas o que seria negar a Jesus para um discípulo que busca aprender a essência dos ensinamentos do Mestre?

      Por outro lado, seria a confissão verbal de fé alguma coisa?

      Pode o ritual do batismo nas águas salvar a vida de alguém?

      Enfim, se fosse comigo e eu precisasse decidir (não apenas fazer considerações sobre o assunto na internet), também precisaria orar muito ao Pai.

      De qualquer modo, o perdão e a misericórdia de Deus são tão grandes que ela ultrapassa qualquer confessionalidade (há tempo deixei de fazer "apelos" para conversão). E, quando penso em Pedro, que talvez teria negado a Jesus mais pela vergonha do que pelo medo, percebo ali a manifestação dessa enorme graça. E, sem dúvida, o episódio da negação de Pedro serve para conforto dos cristãos de várias gerações.

      Mais uma vez te agradeço pela participação e eu crei que Deus não nos deixa passar por tentações que não possamos suportar. Se algo acontece conosco suponho que eu deva ser capaz de lidar com aquele problema. E, se cair, a mão de Deus está estendida para me ajudar.

      Abraços.

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  2. MINHA NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO!!! PELOS PODERES DE GRAYSKULL!!! rsrsrs

    Caro Doutor Relacional, se fosse eu ajudaria o cura a espezinhar o quadro!

    Sou "cristão" apesar de atos externos!

    Vale aqui lembrar o que postou a Drika Chalela na sua página no facebook - "A religião vem da ânsia do ser humano em se ligar a Deus por meio de algo do universo físico: Lugar santo, dia santo, objeto, ritual, moral, musica, escritura etc.Esse processo de sacralização de elementos é humano, por isso Deus não tem qialquer compromisso com a religião!"

    SALVOU MAIS VIDAS NEGANDO DO QUE PREGANDO!!! LOUVADO SEJA O PADRECO!!! rsrsrs

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    1. Concordo em esta frase de ser cristão apesar dos atos externos. Pois, realmente, o exterior deve apenas adquirir a forma da escolha interior. Afinal, não era isto que os antigos profetas faziam com suas representações?

      Eu acredito que Deus até participe da sacralização de elementos quando se tratam de expressões sinceras da busca humana. A própria história bíblica do Templo e da Arca seriam exemplos disto. E, quanto à serpente de bronze feita por Moisés, seguindo ordens de Deus, acaba sendo depois destruída pela boa iniciativa do rei Ezequias em afastar do povo o sentimento idolátrico em torno de tal objeto. E, pela vontade do Eterno, ambos os Templos judaicos são destruídos nos momentos oportunos...

      Penso que hoje chegamos no momento de não mais construirmos templos e sim buscarmos a Deus no nosso interior. Ter um local para reuniões, aulas bíblicas, festas, casamentos, ações sociais e outras atividades não deve se confundir com a sacralização do lugar como se o poder divino mafestasse de maneira especial ali. Porém, lamentavelmente tenho visto este retrocesso tanto no catolicismo (devido à tradição) quanto no meio pentecostal, como se determinados locais fossem manifestação de um "avivamento" carismático.

      Pelo menos em termos materiais, a "apostasia" do padre salvou vidas. Mas não sei o que teria acontecido no Japão se os jesuítas tivessem resistido até o final e mais pessoas fossem martirizadas pelos shoguns. Teria aquele sistema caído como foi com Roma? Não sabemos porque a história jamais é feita com a partícula "se". O que aconteceu, com a permissão divina aconteceu.

      Louvado seja Deus!

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    2. Em tempo!

      Conforme me leva a entender o Philip Yancey em seu livro Alma Sobrevivente, o resultado daquela apostasia dos padres jesuítas (não me parece que todos tenham "negado a fé") foi a formação de uma igreja secreta, mas "sem o benefício de uma Bíblia ou de um livro de liturgia", formando um "curioso amálgama de catolicismo, budismo, animismo e xintoísmo". É o que os católicos vieram a descobrir mais de duzentos anos depois quando passou o período do shogunato e se iniciou a abertura da era Meiji, no final do século XIX:


      "Com o passar dos anos, as palavras em latim da liturgia se transformaram num tipo de pidgin, uma mistura de línguas. 'Ave Maria gratia plena domisu terikobintsu', e ninguém tinha a mínima idéia do que estas palavras queriam dizer. E os cristãos reverenciavam o 'deus particular', uma trouxa de panos enrolada em volta de medalhas e estatuetas cristãs, as quais ficavam escondidas num pequeno cômodo disfarsado de altar budista" (págs. 285 e 286 do livro)


      Incrível! Mas os kakure kirishitans (os cristãos das catacumbas) continuaram reunindo-se secretamente por 240 anos. E, quando os padres católicos finalmente puderam ter uma igreja em Nagasaki para ocidentais (a partir da segunda metade do século XIX), ficaram surpresos ao verem aqueles cristãos nada ortodoxos descendo pelas colinas.

      Loucura! Mas como dizer que aqueles cristãos japoneses que ficaram quase dois séculos e meio esquecidos teriam uma fé menor do que os cristãos ocidentais?! Tenho pra mim que algo mais forte do que a doutrina religiosa foi capaz de manter aqueles irmãos japoneses unidos durante todo aquele tempo.

      Seria o amor?

      Abraços.

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    1. Pois é, Doni. Eu vejo valor na atitude do padre conforme narrado pelo escritor.

      No entanto, nem sabemos se de fato aqueles pensamentos se passaram pela mente do padre. Pois Shuzaku Endo era um romancista e ele escolheu a vida de dois apóstatas do cristianismo para deenvolver sua interessantíssima obra. E aí a literatura dá ao escritor o direito de criar.

      Mas, sinceramente, analisando pelo ângulo do livro, consigo ver valor no ato praticado.

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  4. Assino em baixo (2) rsrs

    Parabéns pelo texto Rodrigo.

    Se eu fosse uma das prisioneiras do padreco, minha fé em Jesus cresceria ao máximo, só lamento que ele tenha demorado a tomar a decisão! Eu não pensaria duas vezes!!!

    Bjux

    Anja

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  5. corrigindo: "se eu fosse umas das prisioneiras que estavam esperando o padreco pisar no negocim lá rsrsrs pra ser liberta"

    minha fé em Jesus cresceria ao máximo, só lamento que ele tenha demorado a tomar a decisão! Eu não pensaria duas vezes!!!

    Bjux

    Anja

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    1. Oi, Anja.

      Penso que talvez até a demora do padre em se resolver tenha em si um valioso significado em nos mostrar sobre o quanto somos muitas vezes lentos e até engessados para refletirmos.

      O ser humano tende muitas das vezes a um engessamento que o prejudica.

      Os livros de Jó e de Eclesiastes denunciam a endurecida visão de que o homem sofredor de males fosse um apóstata ou pecador impenitente.

      Por sua vez, as atitudes de Jesus nos evangelhos quanto à radical guarda do Sábado, feita pelos judeus em sua época desde as revoltas macabeias na época de dominação helenista, também serviram para denunciar o engessamento daquela sociedade. E os posicionamentos de Jesus seriam facilmente compreendidos por um judeu liberal, mesmo nos séculos I e II.

      Mais uma vez a visão de Pedro em Jope e a conversão de Saulo são compreendidas por mim como outras sacudidelas da vida através das quais Deus nos desperta para sairmos de todo e qualquer engessamento.

      Verdade é que para nós, que temos uma formação teológioca mais influenciada pelo protestantismo e sua aversão pela iconolatria, ainda que tenhamos desconstruído muitos dos valores doutrinários das igrejas evangélicas, o fumi-e de Jesus não seria um "negocim" para um católico praticante.

      Ainda mais um padre missionário que deixou a tranquilidade de Portugal para tornar-se pregador do Evangelho de Cristo em terras estrangeiras!

      Pisar no quadro era mais forte do que um cristão ortodoxo deixar de ir no domingo à igreja! Principalmente sendo lá no Japão onde as pessoas costumam reverenciar retratos e imagens de seus antepassados e mestres. Pois, se no judô, fazem alguma reverência ao mestre japonês encurvando-se perante um retrato, o que não significaria pra eles alguém pisar no fumi-e de Jesus ou de Maria?

      Enfim, quero dizer nesta minha resposta que, dentro dos nossos atuais e pessoais processos de desengessamento, ainda pensamos duas vezes. Repitimos até mais do que as três recusas de Pedro em matar e comer aqueles animais imundos que lhe apareceram na visão de Jope. Aliás, eu mesmo demorei bastante a tomar a atitude de andar em outros meios religiosos para compartilhar o Evangelho de Cristo, conforme busco fazer atualmente convocando todos para a construção do Reino de Deus, independentemetne de serem cristãos evangélicos, católicos, judeus, muçulmanos, espíritas, candomblecistas, budistas, esotéricos, bem como ateus, irreligiosos, secularistas, comunistas, existencialistas, etc.

      Igualmente tenho deixado a religião confessional para trabalhar a essência. Já não me preocupo mais em fazer apelos e aquela oração proselitista para que a pessoa diga que está se "convertendo a Jesus". Pois pra mim já não vejo razões para significar os apelos pastorais e nem me preocupo tanto em sair batizando pessoas ou mesmo celebrando a Ceia. Principalmente com quem não é cristão e desconhece os significados desses rituais conforme sabiam as primeiras "ovelhas".

      No meu ponto de vista, o Evangelho precisa ser compreendido como essência e seus princípios inegrarem as culturas através de um simples partilhar de ideias. Do contrário, a evangelização acaba se tornando uma imposição cultural. O domínio de uma cultura sobre a outra como realmente foi no passado pela ação dos católicos e protestantes e ainda tem sido em outras partes do mundo e na Amazônia brasileira.

      Concordo que a atitude do padre, conforme refletida pelo escritor, faz também a minha fé crescer.

      Abraços,

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  6. Muito interessante, Rodrigo, não tinha conhecimento deste livro que me parece muito bom!

    E quanto a atitude do Padre, ora, ele salvou vidas com sua negação, logo, fez a vontade de Deus, o doador da vida. Existem casos e casos; uma fé madura e bom senso saberá dar a resposta apropriada em cada situação crítica para aquele que tem fé. Este texto veio a enriquecer o texto do Doni lá na logos e mythos.

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    1. Caro Edu,

      Foi justamente op texto do Doni lá na Confraria Teológica Logos e Mythos que me inspirou a escrever este artigo.

      A princípio, eu pensava em consultar o livro do Philip Yancey para fazer mais um comentário lá. Depois acabei resolvendo escrever um texto. Tanto é que a Anja decidiu divulgá-lo também em seu blogue logo depois de ter publicado o artigo do Doni.

      Concordo com você de que "existem casos e casos". E, se pensarmos bem, tanto na história da Igreja quanto na dos judeus, a dissimulação sempre fez aprte da estratégia e não acho uma atitude exterior de negação da fé se torne um pecado imperdoável. Do contrário, como teria sido reconciliado o Pedro?


      "uma fé madura e bom senso saberá dar a resposta apropriada em cada situação crítica para aquele que tem fé"

      Concordo plenamente, mano!

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