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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Em busca de uma simplicidade madura

Então, lhe trouxeram algumas crianças para que as tocasse, mas os discípulos os repreendiam. Jesus, porém, vendo isto, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele. Então, tomando-as nos braços e impondo-lhes as mãos, as abençoava.” (Marcos 10.13-16; ARA – conferir com Mt 19.13-15 e Lc 18.15-17)


Os ditos de Jesus que comparam as crianças com a procura pelo “Reino de Deus” podem ser considerados únicos em toda a Bíblia e distintos da literatura rabínica de sua época. Nem nas Escrituras hebraicas (o “Antigo Testamento”), e tão pouco no ensino de Paulo, as crianças alcançaram tamanha importância.

No entanto, as passagens dos Evangelhos que dão significação central às crianças costumam ser objeto de severas críticas por algumas pessoas. Segundo elas, estaria implícito nas palavras atribuídas a Jesus um tipo de "infantilismo existencial" ou "confiança cega", em que o novo convertido deve tornar-se "incapaz de questionar os absurdos cometidos pela religião".

Tal crítica é, em parte, considerável porque realmente a interpretação do texto acima citado admite uma construção doutrinária nesse sentido. E a passagem bíblica pode ser até mal intencionada e equivocadamente relacionada a Mateus 7.9-10 (ou a Lucas 11.11-12), quando Jesus fala da credulidade do homem em relação a Deus de que, se o filho pedisse pão, peixe ou ovo, o pai não lhe daria uma pedra, uma cobra ou um escorpião. Aliás, é inegável que, nesses séculos de história do cristianismo, inúmeros pregadores induziram seus ouvintes a praticarem suicídio intelectual com ameaças de que, se não acatassem as ordens eclesiásticas, ficariam de fora do “céu” após morrerem. E, movidos então pelo medo e por uma confiança cega no líder religioso, muitos devotos chegaram até a matar seus semelhantes acreditando estar acumulando créditos para uma futura entrada no Reino.

Acontece que a ideia de confiança cega não se firma quando empreendemos uma coerente análise sistemática das Escrituras, sendo uma concepção diametralmente oposta à passagem de Atos dos Apóstolos quando o texto bíblico nos mostra que os convertidos da sinagoga de Bereia verificaram se a pregação de Paulo e Silas estava mesmo correta:

Ora, estes de Bereia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim. Com isso, muitos deles creram, mulheres gregas de alta posição e não poucos homens.” (At 17.11-12; ARA)

Por sua vez, em Mateus 13.52, Jesus exalta o escriba (pessoa instruída) que se tornou versado nos assuntos do Reino, o qual tira do seu tesouro “coisas novas e coisas velhas”. E a respeito da pequena parábola deste versículo, os comentários da Bíblia de Jerusalém nos fornece a seguinte orientação:

O doutor judeu que se tornou discípulo de Cristo, possui e administra toda a riqueza antiga, acrescida das perfeições da nova (v. 12). Esse elogio do 'escriba cristão' resume todo o ideal do evangelista Mateus e tem bem a aparência de ser a sua assinatura discreta. O v. convida os discípulos a ser também eles criadores de novas parábolas.

Refletindo melhor sobre a metáfora das crianças em relação ao Reino, cabe aqui a indagação se Jesus estava mesmo falando de “confiança cega” conforme muitos seguidores e críticos do cristianismo ainda pensam? Por acaso a criança não é altamente questionadora a ponto de formular perguntas bem espontâneas sem nenhum medo de expor suas dúvidas?

Lembro que eu, quando ainda era criança, fazia constantes perguntas aos meus pais sobre a origem de Deus. Queria entender por que Deus sempre existiu e o que poderia ter existido antes Dele. E, quando me falavam sobre o dogma católico da “Santíssima Trindade” eu não me conformava em simplesmente aceitar como resposta ser um mistério indecifrável pelo homem a afirmação de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são Um. Pois, se algo não fazia sentido pra mim, eu queria encontrar respostas, de modo que só interrompi minhas buscas pessoas depois que fui doutrinado pelo cristianismo e psicologicamente coagido com ameaças indiretas sobre o “inferno”, “purgatório” ou “excomunhão”.

Mas voltando à passagem bíblica inicial, o que observo na comparação entre o Reino de Deus e as crianças é um louvor de Jesus à simplicidade e à retidão de caráter dos pequeninos. Isto porque eles não se apegam a orgulhosas posições, são incapazes de guardar rancores mesmo contrariados, pedem desculpas facilmente pelo erro cometido, não se envergonham de ser quem realmente são e se mostram bem mais dispostos a aprender do que nós adultos conformados.

Estudando o Evangelho não canônico de Tomé, encontrei duas passagens que ampliam a metáfora do Reino aplicada às crianças. Uma delas seria esta sentença que é considerada um possível paradigma de Mc 10.15, Lc 18.17 e Mt 18.3-4: “Esses pequeninos que mamam são como aqueles que entram no Reino” (To 22a).

Em outro dito, no mesmo evangelho tido erroneamente como “apócrifo”, Jesus relaciona as crianças ao Reino pela pureza interior delas (To 46b). E o que melhor me esclarece sobre qual seria o entendimento do Senhor seria a sentença de To 4a: “O homem idoso não hesitará em perguntar a uma criancinha de sete dias sobre o lugar da vida, e ele viverá”.

Ora, meditando nesta passagem do Evangelho de Tomé, juntamente com a ideia do “novo nascimento” de João 3, podemos perceber que o infante experimenta o Reino melhor do que muitos de nós que temos consciência do certo e do errado, vos que nos preocupamos excessivamente com o amanhã, o destino da alma depois da morte, o futuro dos descendentes, etc. Para a criança de peito existe apenas o aqui e agora, pois ela se deleita intensamente com cada momento, não se restringindo com moralismos ou juízos de aparência. Tais bebês simplesmente vivem adorando a Deus em espírito e em verdade.

Ao comentar sobre a relação entre o Reino e as crianças, Ron Miller, ex-padre católico e atualmente professor da Universidade Lake Forest (Illinois, EUA), assim nos ensina compartilhando uma experiência pessoal:

"(...) Jesus desenvolveu um diferente conceito dos Céus – a ideia de um Deus que fornece a compaixão, o perdão e o paraíso celeste -, o qual vem a ser a mensagem principal deste Evangelho [de Tomé] e do Novo Testamento. E dentro deste contexto, somente um ser imaculado, puro como uma criança, poderia entender os segredos do paraíso celeste. Você deve estar pensando: por que ser como uma criança? Na verdade, um infante possui tão pouca experiência que as formas negativas da mente e do coração ainda não criaram nenhum obstáculo em sua percepção do mundo. Recentemente, um casal de alunos na universidade onde leciono levou seu filho de dois anos para que eu o conhecesse. O pequeno garoto adentrou correndo a sala de aula e, repentinamente, parou no meio de todos os alunos. Maravilhado, olhou todos os objetos à sua volta, inclusive cada pessoa detalhadamente. O que eu daria para ter visto o que ele viu naquele momento, pois tinha o semblante de quem olhou para o paraíso (...)" (O Evangelho de Tomé: uma bússola para a evolução espiritual; tradução de Claudinei dos Santos; revisão técnica Hermínio Figueiredo. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006, págs. 34 e 35)

Outra característica marcante nos pequeninos é o desapego. Na sentença 21a do Evangelho de Tomé, aos responder uma pergunta de Maria sobre a quem se assemelhariam os seus seguidores, Jesus compara os discípulos a crianças que brincam num campo alheio e que, quando os donos do terreno as expulsam, elas simplesmente deixam a propriedade de maneira pacífica:

Eles se parecem com crianças que se instalam num campo que não lhes pertence. Quando os donos do campo vierem, dirão: 'Entregai nosso campo.' Elas se despirão diante deles para que eles possam receber o campo de volta e para entregá-lo a eles.” (To 21a)

O que podemos aprender de novo com esta rica passagem de um livro que poderia muito bem constar no cânon das nossas bíblias?

Ao refletir sobre este dito atribuído a Jesus, percebo que a criança possui a notável característica de reconhecer intuitivamente a nossa condição de peregrinos neste planeta chamado Terra. O pequenino não pretende ser dono de nada, mas tão somente obter alegria e diversão. Por isto, quando os proprietários do imóvel solicitam que as crianças deixem o terreno, elas espontaneamente dão “a outra face” do célebre Sermão da Montanha, deixando o local como também as próprias vestes, mostrando que não têm o interesse de serem donas do Éden, mas tão somente atuarem como jardineiros, despidas de qualquer materialidade.

Para bem ilustrar através de acontecimentos contemporâneos o que vem a ser o desapego, faço menção a Mahatma Gandhi (1869-1948), o principal líder da independência indiana. Mesmo sendo um hindu, Gandhi deu um grande exemplo de vida aos cristãos do Ocidente. Graças ao seu desprendimento, ele pôde levar adiante seu audacioso projeto libertador, abalando o poderoso Império Britânico.

Vestindo roupas rústicas, a “Grande Alma” carregava seus pertences num pequeno saco e se apoiava sobre uma vara de bambu para locomover-se. Tendo se formado em Direito e exercido a advocacia em Londres, ele abriu mão do conforto e das riquezas. Assim, despido praticamente de todos os bens e livre da preocupação de gerir um patrimônio, Gandhi pôde então cumprir a agenda de seu itinerante ministério revolucionário porque sua bagagem tornou-se tão leve quanto a de uma criança.

É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus.” (Marcos 10.25; ARA)

Igualmente nós, sem imitarmos os hábitos pessoais bizarros de Gandhi, também devemos aprender a aliviar nossa bagagem. Tanto no aspecto material quanto no emocional e no espiritual. Pois, se “morremos com Cristo” e “nascemos de novo”, conforme nos ensinam as Escrituras, não temos mais que nos preocupar tanto com a cobrança de contas ou morais. Não somos obrigados a aparentar nada para sermos aprovados pelas pessoas. Estamos livres pela graça divina de toda e qualquer condenação, bem como de prisões cármicas, penitências, sacrifícios, sentimentos de culpa pelos erros do passado, etc. E basta apenas atuarmos responsavelmente pela realização deste bimilenar ideal de Cristo – a construção do Reino de Deus.

E que venha a nós o Reino do Eterno! O Senhor nosso Deus é um! Aleluia!


OBS: A foto acima refere-se aos tempos de minha infância, provavelmente entre o final dos anos 70 e começo da década de 80. As citações do Evangelho de Tomé foram extraídas da seguinte página na internet http://www.igrejavaroesdeguerra.com.br/LIVROS/Apocrifo_Evangelho_Tome.pdf

7 comentários:

  1. Rodrigão, sou suspeito pra falar destas criasturinhas que sempre fiz questão de priorizar enquanto pastor denominacional.

    A vida adulta é um seqüestro da simplicidade e um presente grego de complexidades.

    Como adultos perdemos a capacidade de nos encantar com a simplicidade da vida.

    Tudo na vida adulta é racional e se adequa as pranchetas da mentalidade logística.

    Crianças não desenvolvem relacionamentos e os processos da vida com segundas intenções, elas amam os outros pelo que são, não pelo que tem.

    Crianças não precisam de muito pouco para serem felizes, não vivem uma busca frenética e neurótica pelas aparências ocas sem conteúdo.

    Elas não atropelam a agenda da vida desenvolvendo neuroses, que só contribuem para mais confusão e destruição. Elas simplesmente sentam e descansam, deitam e dormem.

    Crianças, sabedoria e pureza Divina.

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  2. AHHHHHHHHHHHHH!!! Esqueci de citar a camisetinha escrita RODRIGÃO rsrsrs. Show de bola!

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  3. Caro Rodrigo

    Hoje, dia 27 de setembro, percebi no Facebook que havia uma mensagem e era sua. Obrigado pela lembrança e pelo tema. Curiosamente, hoje mesmo eu li um texto http://www.vislumbresdaoutramargem.com/2011/06/deus-pessoal-ou-lei-universal.html que não trata exatamente do assunto, mas me reportou a ele. Lembrei-me da curiosidade misturada à desconfiança e a estranheza, nos meus nove anos de idade, ao acompanhar os meus amigos à igreja. Contemplava o tempo todo aquela arquitetura desproporcional que nos fazia menores ainda. Era tudo muito estranho e grave. Nunca se falou em Deus em nossa casa e tínhamos a educação mais rígida da nossa rua. Nosso problema não era desagradar a Deus, mas ao nosso pai. Agora, depois de tanto tempo, continuo sem pensar em salvar a minha alma ou atingir a iluminação. Quero apenas prosseguir no meu esclarecimento pessoal compartilhando-o com outros; anseio que se manifestou naquela época. Antes, quando morávamos na Ilha do Governador, brincávamos apenas com um menino que morava numa casa em frente. Eu e meus irmãos fomos nos socializar, mesmo, somente no bairro do Andaraí. Foi lá que esse tipo de crença e atitude social nos fez perceber diferentes da maioria. Meus irmãos acabaram cedendo, de certa forma, mas eu não consegui, porque permaneci sob aquele impacto interrogativo dos meus nove anos de idade.

    Grande abraço.

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  4. rodrigo, belo artigo, digno dos bons articulistas bíblicos. concordo plenamente com sua interpretação do que jesus estava dizendo sobre os pequenos. só não aceito muito que jesus tinha na cabeça um reino de deus no "céu", creio que essa ideia é posterior a ele.

    abraços

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  5. Rodrigão, que bela lição você nos deu. Eu sempre acreditei que Jesus se referia a simplicidade e capacidade de aprendizado que com toda sinceridade, tem a criança.

    Muito boa sua explicação.

    Não esqueça de estudar kkkkkkkk Beijo.

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  6. Olá, amigos!

    Obrigado pela visita de vocês e pelos comentários deixados acima.

    Suponho estarmos todos de acordo sobre o quanto é alienante este discuso da maioria das igrejas cristãs sobre a projeção da felicidade humana no "céu" ao invés de focarem no aqui e agora dentro de nós mesmos. É como se a plenitude só pudesse ser alcançada após a morte, num outro lugar e tempo, numa esfera bem longe daqui onde se passa a nossa vida atual.

    Ora, na sentença 59 do Evangelho de Tomé, é dito o seguinte: "Prestai atenção àquele que vive enquanto estais vivos, para que, ao morrerdes, não fiqueis procurando vê-lo sem conseguir".

    Embora esta citação não esteja negando a eternidade da alma e nem a existência consciencial depois da morte, penso que se trate de um alerta afim de que o homem seja atento quanto à sua vivência aqui na Terra, lembrando a importância do momento presente, onde nossos pensamentos jamais estão.

    Diferentes de nós adultos, acredito que as crianças têm a capacidade de se deleitarem com o presente enquanto brincam. Elas esquecem rapidinho o que ficou para trás e nem se preocupam com as coisas que virão depois. E aí as colocações do nosso amigo Franklin foram bem pertinentes e complementam em muito esta mensagem.


    "Agora, depois de tanto tempo, continuo sem pensar em salvar a minha alma ou atingir a iluminação. Quero apenas prosseguir no meu esclarecimento pessoal compartilhando-o com outros" (Ivani)

    "só não aceito muito que jesus tinha na cabeça um reino de deus no 'céu'" (Eduardo)

    Penso que os amigos falaram praticamente a mesma coisa embora, certamente, tenham concepções diferentes. Pois realmente a ideia do Reino de Deus tem a ver com a construção de uma nova realidade no presente.

    Particularmente eu me recuso a aceitar este discurso retrógrado de que Deus vai condenar parte de sua criação a um "inferno", fritando a alma de pessoas por toda a eternidade apenas porque não confessaram ser Jesus o Salvador delas. Pois entendo que Deus já está (e sempre esteve) reconciliado com o mundo. Diariamente a vida sorri para todos, mesmo para quem se encontra numa cadeia cumprindo pena por crime hediondo ou para um enfermo que sofre no leito de um nosocômio. E, quando conseguimos entender a beleza existencial em qualquer circunstância da vida, despertamos a luz que já se encontrava acesa dentro de nós, ainda que encapsulada. Então nos tornamos luminosos e não iluminados por um astro externo.

    Deus está entre nós e em nós!

    Abraços.

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  7. Oi, Gui.

    Obrigado pelo incentivo!

    Segundo sei, o edital do concurso do Tribunal do Rio ainda está em elaboração, porém estou animado com esta prova, apesar da luta que enfrentei durante a última semana de setembro, conforme escrevi no artigo de hoje.

    E vou em frente.

    Abração!

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