No final deste ano de 2025, o Ministério Público Federal (MPF) tomou uma iniciativa sem precedentes ao ajuizar uma ação civil pública contra a União, questionando manifestações oficiais da Marinha do Brasil que, segundo o órgão ministerial, atacaram a memória histórica de João Cândido Felisberto — líder da Revolta da Chibata, um dos episódios mais emblemáticos da luta contra a violência institucional e o racismo no país.
A ação, ainda no início de seu trâmite (sem contestação apresentada até o momento), está registrada sob número 5138220-44.2025.4.02.5101 e demanda, sobretudo, a responsabilização civil da União por dano moral coletivo, com pedido de indenização de R$ 5 milhões, cujo montante deve ser aplicado exclusivamente em projetos de valorização da memória de João Cândido e de enfrentamento ao racismo estrutural.
O Caso: Do Debate Legislativo à Justiça Federal
A controvérsia teve origem em abril de 2024, quando o comandante da Marinha, em carta à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, tomou posição contrária à proposta de incluir João Cândido no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria – o registro simbólico das figuras que o Estado brasileiro reconhece como essenciais para sua história. Nesta carta, o militar qualificou a Revolta da Chibata como uma “deplorável página da história nacional”, atribuindo adjetivações negativas aos revoltosos.
Para o MPF, a postura oficial não se limita a uma opinião histórica: trata-se de um ato institucional que desabona um personagem já anistiado e cuja história expressa valores democráticos e de resistência contra desigualdades. Ao fazer isso, a Marinha — e por extensão o Estado — estaria violando normas constitucionais, tratados internacionais e a própria lei de anistia que restabeleceu a honra de João Cândido e seus companheiros.
Quem foi João Cândido e a Revolta da Chibata?
João Cândido Felisberto é uma das figuras mais relevantes da história do Brasil republicano. Em novembro de 1910, ele liderou a Revolta da Chibata, um movimento de marinheiros contra as práticas de punição corporal — em particular a chibata — que eram aplicadas de forma degradante, desumana e desproporcional, afetando principalmente soldados negros e pobres.
Os revoltosos tomaram o controle de navios estratégicos da Marinha na Baía de Guanabara e exigiram o fim dos castigos físicos e a melhoria das condições de trabalho; após negociações, essas exigências foram formalmente aceitas. No entanto, dias depois, muitos participantes foram presos, perseguidos e marginalizados, e João Cândido passou os anos seguintes longe de qualquer reconhecimento oficial.
Com o passar do tempo, sua luta foi sendo resgatada pela historiografia, pela cultura popular — inclusive no samba e em livros — e pelo movimento negro brasileiro. Experiências coletivas de resistência ganharam novo significado, e Cândido passou a ser visto como um símbolo de luta contra a violência institucional e de combate ao racismo estrutural.
O Direito à Memória: Um Conceito Jurídico em Jogo
O cerne da ação do MPF não se resume à discussão sobre heroísmo ou glória histórica. Trata-se de direito constitucional à memória e à preservação da dignidade histórica de agentes coletivos e individuais que contribuíram para a promoção de direitos fundamentais.
No entendimento do MPF, a manifestação oficial da Marinha deslegitima esse direito quando desqualifica um personagem cuja memória foi formalmente alçada à condição de reparação histórica pela própria lei de anistia — Lei nº 11.756/2008 — o que confere ao debate uma dimensão jurídica que ultrapassa o simples jogo de opiniões.
Além disso, a ação aponta que as declarações institucionais podem violar:
- Princípios constitucionais relacionados à dignidade da pessoa humana e ao pluralismo de ideias;
- Tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil;
- Normas de proteção ao patrimônio histórico-cultural, quando o Estado se recusa a reconhecer a relevância de uma narrativa que faz parte de sua própria formação social.
Obstáculos Jurídicos à Vista
Para que o MPF alcance êxito, o processo terá de enfrentar e superar algumas questões decisivas:
Implicações Políticas e Culturais
Mais do que um embate judicial, a ação do MPF insere-se em um debate mais amplo sobre quem escreve a história do Brasil e de que maneira se reconhecem as lutas coletivas por direitos. Isso tem reflexos diretos sobre a maneira como escolas, instituições públicas e a sociedade civil compreendem episódios históricos que envolvem desigualdades raciais e relações de poder.
Reconhecer ou negar a importância de figuras como João Cândido — no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria ou no imaginário coletivo — simboliza muito mais do que um título honorífico: é reconhecer que o Estado brasileiro tem a responsabilidade de enfrentar seu passado de violência e discriminação, não apenas de celebrá-lo quando conveniente.
Ao final, a ação do MPF pode abrir caminho para que o direito à memória histórica seja tratado como um direito fundamental concreto, e não como tema acessório ou meramente cultural.
📌 Nota pessoal do autor
Vale lembrar, como destacado em meu artigo do mês passado (“Novembro de 1910: quando a chibata virou história”), que meu bisavô, Francisco Ancora da Luz (1883 - 1951), foi contemporâneo de João Cândido, vivendo na mesma época dessas experiências dramáticas e formativas do Brasil republicano — um vínculo geracional que reforça a importância de resguardar a memória daqueles que resistiram, lutaram e ensinaram, mesmo na adversidade, sobre dignidade e direitos.
📷: Foto do Marinheiro João Cândido no Jornal Gazeta de Notícias, de 31 de dezembro de 1912. Imagem de domínio público, extraída da Wikipedia.

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