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quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Blindar o púlpito não blinda o racismo



A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou recentemente parecer que altera a Lei nº 7.716/1989, a chamada "Lei do Racismo", introduzindo uma exceção para manifestações realizadas em contextos religiosos. Pelo texto aprovado, sermões, pregações, orientações religiosas e manifestações de crença proferidas em cultos ou cerimônias — inclusive quando transmitidas por meios de comunicação — deixariam de ser alcançadas pela tipificação penal do racismo.

O parecer, de autoria do deputado Pastor Marco Feliciano, foi apresentado no bojo de um projeto que originalmente tratava do aumento de pena para o crime de ultraje a culto. A ampliação temática promovida pelo substitutivo, contudo, deslocou o centro do debate para um ponto muito mais sensível: a tentativa de criar uma zona de exclusão penal justamente em uma das áreas mais protegidas pela Constituição brasileira — o combate ao racismo.

Não se trata aqui de negar a centralidade da liberdade religiosa em um Estado Democrático de Direito. Trata-se de afirmar que essa liberdade, como todas as demais, encontra limites constitucionais claros quando colide com a dignidade da pessoa humana, com a igualdade e com a vedação absoluta à discriminação.

A Constituição de 1988 não foi neutra em relação ao racismo. Ao contrário, conferiu-lhe um estatuto jurídico singular: crime imprescritível e inafiançável, sujeito à pena de reclusão (art. 5º, XLII). Essa qualificação não é retórica. Ela traduz a compreensão de que o racismo não é apenas uma ofensa individual, mas uma violência estrutural que corrói os fundamentos da República.

É precisamente por isso que a iniciativa aprovada na CCJ suscita grave inconstitucionalidade. Ao excluir previamente do alcance da lei penal determinadas manifestações em razão do local, do contexto ou da identidade do emissor, o legislador não está apenas regulamentando a liberdade religiosa — está esvaziando o núcleo de proteção constitucional contra o racismo.

O Supremo Tribunal Federal já enfrentou, em diversas ocasiões, a tensão entre liberdade de expressão, liberdade religiosa e proteção contra discursos de ódio. Nos julgamentos da ADO 26 e do MI 4733, a Corte foi categórica ao afirmar que a liberdade religiosa não se confunde com licença para discriminar, desumanizar ou incitar o preconceito. O que se protege é a crença, não a violência simbólica travestida de doutrina.

Caso o projeto venha a ser convertido em lei, é altamente improvável que o STF aceite sua aplicação literal. A experiência constitucional brasileira mostra que imunidades amplas e abstratas tendem a ser submetidas a um severo controle de constitucionalidade. O caminho mais provável será o da interpretação conforme a Constituição, restringindo a exceção apenas a manifestações estritamente doutrinárias, sem qualquer conteúdo discriminatório ou desumanizante.

Outra possibilidade concreta é a declaração de inconstitucionalidade parcial do dispositivo, por violação direta aos arts. 1º, III; 3º, IV; 5º, caput; 5º, XLI e, sobretudo, ao art. 5º, XLII, da Constituição. Ao retirar do Judiciário a possibilidade de avaliar, caso a caso, quando uma fala religiosa ultrapassa o campo da fé e ingressa no discurso de ódio, o legislador invade uma esfera que a Constituição reservou à jurisdição constitucional.

Não é juridicamente sustentável a ideia de que o púlpito possa funcionar como um espaço normativo imune à Constituição. Racismo não se transmuta em algo juridicamente aceitável por ser proclamado em nome de Deus. A dignidade humana não se relativiza diante do altar, nem a igualdade se curva ao microfone do templo.

Em última análise, a tentativa de blindar manifestações religiosas contra a Lei do Racismo não fortalece a liberdade de crença. Ao contrário, fragiliza-a, ao associá-la institucionalmente à discriminação e ao preconceito. O Supremo Tribunal Federal, se chamado a se pronunciar, terá diante de si uma escolha que a própria Constituição já fez em 1988: não há fé, ideologia ou discurso que possa se sobrepor ao compromisso inegociável da República com a dignidade humana.

Blindar o púlpito não blinda o racismo. E, no constitucionalismo brasileiro, não há exceção legítima para a negação da humanidade do outro.


📷: Bruno Spada/Câmara dos Deputados.

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