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sábado, 20 de dezembro de 2025

O Rio não pode perder sua memória!



A recente decisão da Justiça Federal que obriga o Governo do Estado do Rio de Janeiro a agir urgentemente para proteger um acervo documental que agoniza nos porões do antigo Instituto Médico Legal (IML), na Lapa, não deveria surpreender — deveria envergonhar

A determinação judicial, proferida no âmbito da Ação Civil Pública nº 5098187-12.2025.4.02.5101, ajuizada pelo Ministério Público Federal e em trâmite na Justiça Federal do Rio de Janeiro, expõe um descaso institucional que vai muito além de janelas quebradas e microfilmes deteriorados: revela uma crise civilizacional na maneira como tratamos aquilo que realmente importa para compreender quem somos.

O acervo guarda cerca de 2,9 mil metros lineares de documentos e 440 mil itens iconográficos, incluindo registros da Polícia Civil das décadas de 1930 a 1960 e materiais que tocam diretamente o período da ditadura militar — documentos que podem trazer luz à trajetória de desaparecidos políticos, torturas e violações de direitos humanos.

Ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro participa de iniciativas internacionais como o Programa Memória do Mundo da UNESCO e reativa comissões nacionais para a preservação do patrimônio documental, reforçando o papel desse patrimônio na construção de uma sociedade democrática e plural, na prática chegamos ao ponto em que arquivos históricos — testemunhos fundamentais da nossa história — ficam abandonados, expostos ao vandalismo e à deterioração.


Memória e democracia são faces da mesma moeda

A Constituição Federal, ao tratar do patrimônio cultural, coloca entre seus objetivos a proteção do conjunto de bens materiais e imateriais que formam nossa identidade coletiva. Essa proteção não é opcional — é um dever do poder público, consolidado pela Lei nº 8.159/1991, que estabelece a Política Nacional de Arquivos e reforça que a gestão documental e a preservação de documentos históricos são essenciais à administração pública, à cultura e ao direito à informação.

Quando um estado falha nesse dever, ele não apenas negligencia papéis e fotos antigas; ele coloca em risco o direito da sociedade de conhecer seu passado, entender seus conflitos, reconhecer suas vítimas e, acima de tudo, aprender com seus erros. Esse direito é uma pedra angular da democracia: sem memória, não há verdade — e sem verdade, não há justiça.


O que está em jogo vai muito além de um prédio

Não podemos aceitar que nossa memória seja tratada como lixo esquecido. Enquanto instituições públicas clamam por políticas mais robustas e financiamento adequado para cuidar de acervos nacionais, como faz o Arquivo Nacional em seus programas de preservação e democratização do acesso à informação, no nível local assistimos ao abandono crônico de documentos que contarão, um dia, as histórias que ainda não se ousa enfrentar.

A responsabilização aqui deve ser política. Governos passam, mas permanecerão as ruínas de nossas lembranças — se não agirmos. A omissão em proteger esse patrimônio não é apenas administrativa; é profundamente ideológica. Sugere uma visão de país que prefere apagar trechos incômodos da história a confrontá-los. Mas uma sociedade verdadeiramente democrática não pode se dar ao luxo de escolher memória seletiva. Ela deve preservar toda a memória — inclusive aquela que expõe violência, contradições e sofrimento.


O papel da sociedade

Cabe à sociedade civil — pesquisadores, movimentos de memória e direitos humanos, jornalistas, artistas e cidadãos — manter viva a pressão por políticas públicas consistentes de preservação documental. Não se trata de nostalgia, mas de democracia em ação. Para isso, é urgente que a decisão judicial não fique apenas no papel ou nos prazos rígidos de magistrados, mas se transforme em ações concretas de salvamento, catalogação, digitalização e acesso público ao acervo. Somente assim será possível honrar a história e fortalecer o futuro.


📝 Nota explicativa ao leitor

A decisão mencionada neste artigo foi proferida no âmbito da Ação Civil Pública nº 5098187-12.2025.4.02.5101, em trâmite na Justiça Federal do Rio de Janeiro, sob responsabilidade do juízo federal competente.

Trata-se de uma decisão de natureza cautelar (ou de urgência). Isso significa que o Judiciário ainda não analisou o mérito final da ação — ou seja, não julgou de forma definitiva responsabilidades, culpas ou soluções estruturais para o caso.

O objetivo da decisão é evitar um dano irreversível, impondo medidas imediatas para preservar o acervo documental ameaçado, diante do risco concreto de deterioração, perda ou destruição.

Esse tipo de decisão é comum em ações que envolvem patrimônio público, memória histórica e direitos fundamentais, quando a demora do processo pode tornar inútil qualquer julgamento futuro.


📌 Como acompanhar o processo:

O andamento da ação pode ser consultado por qualquer cidadão no sistema eletrônico da Justiça Federal da 2ª Região (TRF-2), por meio do site oficial do tribunal, utilizando o número do processo informado acima.

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