A frase atribuída a uma magistrada — “que se dane a OAB” — durante uma sessão de julgamento provocou forte reação corporativa, ampla repercussão midiática e pedidos de providências institucionais.
O episódio, embora grave, não pode ser analisado apenas como um desvio individual de conduta ou um momento de destempero verbal. Ele exige uma leitura mais profunda, capaz de situá-lo no contexto de uma relação institucional cada vez mais tensionada entre magistratura e advocacia no Brasil.
Reduzir o caso a um embate personalista ou a uma disputa entre corporações seria um erro analítico. O que se revela ali é algo mais complexo: uma deterioração progressiva do diálogo institucional, em que o respeito formal permanece no discurso, mas se esgarça na prática cotidiana.
O risco da punição exemplar como resposta simplificadora
É legítimo que a conduta de magistrados seja apurada por corregedorias e, se for o caso, pelo Conselho Nacional de Justiça. A autoridade judicial, exatamente por ser autoridade, está submetida a deveres reforçados de urbanidade, autocontenção e respeito às funções essenciais à justiça.
Contudo, também é preciso cautela para que a resposta institucional não se converta em punição simbólica excessiva, orientada mais pela pressão pública do que por uma análise estrutural.
A frase, embora inadequada, não surge no vácuo. Ela verbaliza — de forma imprópria — um sentimento que, silenciosamente, já circula em muitos ambientes forenses: a percepção de parte da magistratura de que a advocacia, sobretudo quando invoca prerrogativas, atua como entrave e não como garantia.
Punir sem compreender esse pano de fundo pode produzir alívio momentâneo, mas não resolve o problema. O conflito reaparece, talvez de forma menos explícita, porém mais corrosiva.
A autocrítica necessária da advocacia
Para que a defesa das prerrogativas seja respeitada, é indispensável reconhecer que a advocacia em alguns momentos também contribuiu para o desgaste de sua autoridade simbólica.
Em muitos contextos, o discurso das prerrogativas foi banalizado, invocado de forma automática, sem distinção entre violações reais e meros dissabores processuais. Em outros, confundiu-se firmeza técnica com beligerância pessoal, transformando a audiência em palco e o conflito em estratégia.
Obviamente, isso não justifica desrespeito algum, mas ajuda a explicar por que parte da magistratura passou a reagir com impaciência — quando não com hostilidade — a qualquer menção à OAB ou às comissões de prerrogativas.
Respeito institucional não se sustenta apenas na Constituição ou na lei. Ele se constrói também pela postura, pela técnica e pela credibilidade cotidiana.
O erro simétrico da magistratura
Se a advocacia precisa de autocrítica, a magistratura precisa de autocontenção. O juiz não pode permitir que a frustração cotidiana se converta em desprezo institucional. Quando isso ocorre, o problema deixa de ser individual e se torna sistêmico.
A autoridade judicial existe justamente para conter o poder, inclusive o próprio. Deslegitimar a advocacia — ainda que verbalmente — equivale a enfraquecer o contraditório, a ampla defesa e, em última instância, a confiança social no processo.
É nesse ponto que a advertência de Piero Calamandrei, em Eles, os Juízes, vistos por nós, Advogados, mantém impressionante atualidade:
“O juiz que não escuta o advogado corre o risco de não ouvir sequer a própria consciência.”
Não se trata de bajular a advocacia, mas de reconhecer que o dissenso é parte estrutural da justiça, não uma afronta pessoal.
Diálogo institucional como reconstrução — não como concessão
Falar em diálogo, aqui, não significa relativizar abusos nem diluir responsabilidades. Significa compreender que advocacia e magistratura não são polos inimigos, mas funções complementares, condenadas a conviver.
A reconstrução institucional passa por:
- uma advocacia mais técnica, menos performática e mais estratégica na defesa das prerrogativas;
- uma magistratura mais consciente do impacto simbólico de suas palavras e gestos;
- e uma OAB que atue com critérios claros, evitando tanto a omissão quanto o corporativismo acrítico.
Calamandrei lembrava que a advocacia não existe para agradar o poder, mas para recordar-lhe os seus limites. Da mesma forma, a magistratura não existe para silenciar o conflito, mas para administrá-lo com civilidade e justiça.
Conclusão
A frase que motivou o debate é reprovável. Mas ela é, sobretudo, um sintoma. Punir o sintoma sem tratar a causa é insistir no erro.
O momento exige menos indignação performática e mais maturidade institucional. Respeito não se impõe apenas por sanções, nem se conquista por confrontos permanentes. Ele nasce do reconhecimento recíproco de funções, da técnica, da escuta e da contenção do poder.
Sem isso, novos episódios surgirão — talvez com outras palavras, outros protagonistas, mas com a mesma raiz: a incapacidade de diálogo entre aqueles que deveriam, juntos, sustentar a justiça.

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