Sinto o calor suave da manhã antes mesmo de abrir os olhos. O vento que desce do paredão rochoso acaricia minha pele, trazendo o cheiro úmido da rocha fria e o perfume da erva-doce rasteira — a mesma erva que minha mãe usou ontem para curar o machucado da minha pequena irmã. Respiro fundo, escuto o rir baixo dos irmãos, o farfalhar das folhas ao longe, a música distante do rio. Esta é minha casa. Esta é a rocha, a terra, o clima da nossa tribo.
🍃 Vida entre rochas e florestas
Vivemos pendurados entre o paredão e a floresta — nem selva densa como você a conhece, nem savana aberta. A floresta é fragmentada, um mosaico: árvores robustas em torno dos igarapés, trechos abertos onde a luz do sol penetra, arbustos secos aqui, palmeiras ribeirinhas ali, trechos de capim alto. As rochas nos dão abrigo; a floresta, sustento.
O clima é mais seco do que ouço falar da “grande floresta” — há chuvas, sim, quando os ventos mudam, mas há meses de ventos secos, de terra batida, quando dormimos com a pele seca e o rio baixa. Por isso valorizamos cada poça, cada manancial, cada planta que cresce junto ao leito. Nossas roças são pequenas clareiras: mandioca silvestre, frutas de estação — nunca tão abundantes quanto os filhos querem. Por isso caçamos, pescamos, coletamos: tamanduás-gigantes, preguiças de garras longas, aves, peixes de couro liso, crustáceos de rio.
Viver aqui exige vigilância, sabedoria. Sei onde colher raízes comestíveis sem arrancar a planta — para que ela renasça. Sei quais frutos adoçam mais se esperarmos o orvalho da manhã. Sei como rastrear preguiças sem espantar o bando. E sei como ouvir os suspiros da rocha quando a chuva vai cair. Aprendi tudo isso com meu pai, com minha mãe, com os anciãos da tribo — e com os sons da natureza.
📖 Crenças, rostos invisíveis e o sangue da terra
Desde pequeno, minha mãe desenhava na terra — círculos, linhas, símbolos — e sussurrava nomes de espíritos antigos. “Este é o espírito do rio”, dizia, apontando para o ribeiro. “Aquele, o espírito da rocha.” Diziam que cada animal, cada árvore, cada vento tinha alma — e que quando alguém morria retornava a essa alma, para andar em outra forma: folha, nuvem, estrela.
As pinturas nas pedras contavam histórias: caçadas, chuvas, nascimentos, mortes, renascimentos. Eu as observava e sentia que meus dedos — pequenos, inquietos — tocaram o mundo invisível. A cada lua nova reuníamos todos — velhos, adultos, crianças — para cantar, para ouvir os mais velhos contarem. A rocha ecoava, a floresta respondia, o vento se calava.
Vivíamos pouco, por nosso padrão moderno. Muitos não viam mais de quarenta primaveras. Crianças que adoeciam, ferimentos de caça, partos difíceis, fome — tudo fragilizava a vida. Mesmo assim, alguns chegavam aos cinquenta sóis contados, fortes, cheios de cicatrizes, de histórias. Eu já temi a morte cedo; mas sempre soube que tudo — eu, meus irmãos, os espíritos, a floresta — fazemos parte de um círculo maior.
🌙 O sonho — viagem pelo continente
Numa noite de lua tênue, dormi pouco. Sonhei com a rocha rachada, separando-se, revelando um túnel de luz. No fim, um mar infinito, um mar que rugia como feras famintas. E uma voz — antiga, como o vento sobre a rocha — dizia:
“Leve de volta o que veio de lá. Devolva ao mar o presente do céu, e feche o círculo.”
Acordei tremendo. Joguei-me sobre o peito da minha mulher, que dormia roncando baixinho. Olhei meus filhos adormecidos — olhos fechados de paz. “Preciso partir”, sussurrei. Disse à tribo: “O espírito da rocha me mandou. Preciso cruzar a terra até onde o mar come a terra — para devolver algo.”
Ninguém riu. Havia medo — o mundo além da montanha era mistério. Mas os anciãos assentiram. Me deram uma pequena adaga de pedra, um pedaço de ocre vermelho para pintar meu rosto, um punhado de raízes secas e carne de peixe curada. “Vai com a bênção dos espíritos”, disseram. “Que o vento te leve sem derramar teu sangue em vão.”
🛤️ A travessia — floresta, rios, mares, incógnitas
Parti ao amanhecer. Atravessei vales onde os rios grudavam no barro, ascendi colinas cobertas de capins e árvores retorcidas, cruzei florestas onde os troncos eram grossos, raízes retorcidas como serpentes. Vi preguiças enormes, tatus de armadura, peixes de escamas brilhantes quando o rio refletia o céu. Mas também ouvi trovões distantes — sinais de mudança de clima — e senti o cheiro de terra seca antes da chuva.
Cada noite acendia pequena fogueira, pintava o rosto com ocre vermelho, falava aos espíritos da terra: “Guia-me.” Às vezes dormia sentado, contra uma rocha, e ouvia uivar de feras distantes. Outras, acordava coberto de orvalho, cercado por insetos que pareciam operar um ritual silencioso.
Dia após dia fui me movendo — guiado pelas nascentes de rios, pelos pássaros migrantes, pelas estrelas. Escutei cantos que nunca vi: o canto do mico que cruza a madrugada, o ruído dos jacarés submersos, o farfalhar das palhas se dobrando ao vento. Senti que a terra mudava — o calor aumentava, o ar ganhou umidade, o verde ficou mais espesso e profundo.
🌊 Chegada ao oceano — o fim da jornada
Depois de muitas luas caminhadas, quando meus pés já sangravam de calos, avistei — ao longe — uma mancha azul cintilante. Confirmei: era o mar. O mesmo mar que no sonho tremeluzira em mil espelhos. Meu coração bateu como tigre pronto a saltar.
Ao caminhar pela areia fina, respirei o ar salgado pela primeira vez. O vento trouxe o gosto do sal, do mundo vasto, do fim de uma longa estrada. Tirei de minha bolsa de couro um objeto — um pequeno amuleto feito de osso e ocre, com as marcas da rocha onde nasci. Um símbolo da minha tribo, da rocha, da floresta, do rio.
— Espíritos do mar — murmurei, de joelhos na beira da água. — Aceitem este presente que traz o sangue da terra onde nasci. Que o impulso do mar leve de volta a você o ciclo que começou na rocha.
Fitei o horizonte. Coloquei o amuleto na água. As ondas o envolveram, levaram-no. E senti — por um instante — um sopro frio, ancestral, como se os espíritos da floresta, da rocha, do rio e do mar cantassem juntos. A terra se curvou. O mar rugiu leve. O vento soprou com força — e depois se calou.
Levantei, meus pés afundando na areia molhada. O sol se punha num espetáculo de cores impossíveis. Sorri com o rosto pintado de ocre — finalmente entendi: o mundo era um só. E eu era apenas um mensageiro entre rochas e ondas, entre árvores e água salgada.
✨ Um novo ciclo
Naquele momento, soube que meu nome seria lembrado — não pelos meus filhos apenas, mas pelo vento, pelas águas, pelas pedras e pelas folhas. Que minha travessia uniria dois mundos: o da rocha antiga e o do mar distante. Que a fé dos meus antepassados não nascia de templos, mas de ciclos — ciclos de caça e de pesca, de seca e de chuva, de nascimento e de morte.
Fechei os olhos uma última vez, escutando o bater das ondas. E entendi: a vida — mesmo curta — era suficiente para servir de ponte. E a morte, apenas a curva de retorno.
ONDE O MAR GUARDA OS NOMES
O sol ainda hesitava antes de rasgar o horizonte quando Tibiriçá sentiu, pela segunda vez em sua vida, o cheiro de maresia. Agora não era sonho de criança, nem relato dos mais velhos — era o próprio oceano se abrindo diante dele. O litoral se estendia como um espelho inquieto, e a espuma branca beijava a areia com a insistência de quem quer deixar mensagem.
A natureza ali possuía voz própria.
Bandos de guarás riscavam o céu com suas asas vermelhas como brasas vivas. Botos cinzentos acompanhavam embarcações que pescavam mais ao largo, como se fossem velhos amigos brincalhões. Nas águas rasas, cardumes formavam cores vivas que se moviam como pensamento rápido.
Selvas densas, exuberantes, guardavam sons de animais que ele jamais ouvira: o uivo grave de uma onça pintada, o coaxar quase humano dos sapos da noite, o assovio discreto de pássaros minúsculos, ligeiros como sussurros.
Ali, era como se a terra tivesse decidido não apenas nascer, mas celebrar sua existência.
O Encontro
Foi na curva de um manguezal que Tibiriçá avistou as primeiras canoas. Não eram como as do seu povo — mais longas, estreitas, adornadas com pinturas geométricas. Os homens que remavam tinham o corpo pintado de azul-escuro e porte magro, acostumado ao mar.
Quando suas embarcações se aproximaram, levantaram as mãos num gesto de paz. Tibiriçá, apesar de cauteloso, retribuiu. A comunicação não se fez por palavras — mas por gestos lentos, sorrisos, e a universal curiosidade humana.
A tribo se chamava Aruanã.
Viviam onde o rio encontrava o mar, misturando sal e doce como quem mistura destino. Suas casas, erguidas sobre estacas, pareciam suspensas entre o céu e a terra. Pescavam com redes trançadas de fibras que as mulheres teciam como quem tece heranças.
As crianças aprendiam a nadar antes mesmo de andar. Os mais velhos contavam histórias que diziam que o mar era um espírito feminino — Iara, a Senhora Profunda — e que cada vida levada pelas ondas era devolvida na forma de chuva.
Rituais, crenças e uma noite sagrada
Na lua cheia, os Aruanã reuniam-se na areia para saudar a maré alta. O ritual começava com silêncio. O fogo crepitava, mas ninguém cantava até que o mar subisse o suficiente para tocar os pés do primeiro sacerdote.
Então vinham os tambores.
Um ritmo cadenciado, orgânico, como o pulsar da terra. Dançavam em círculo, louvando os que partiram, pedindo proteção para os vivos, e agradecendo pelos peixes que alimentavam o corpo e o espírito.
As mulheres pintavam rostos com argila branca; os homens, com carvão. Tibiriçá recebeu dois traços no rosto — um para a coragem, outro para a saudade que trazia consigo.
E foi nessa noite que ele entendeu:
— Cada povo carrega seu próprio modo de conversar com o que não vê — pensou.
A despedida
Ficou ali por dias que pareceram semanas. Aprendeu técnicas de pesca, ouviu mitos sobre constelações, provou frutos que jamais vira.
Mas o coração — o coração era um instrumento antigo, e o dele tocava sempre a mesma música: a lembrança dos seus.
Os Aruanã, percebendo sua inquietude, preparam-lhe mantimentos secos, uma lança leve, e uma pequena escultura em madeira: um pássaro de asas abertas.
— Para não esquecer que já és de dois lugares — lhe disse o velho artesão.
Partiu ao amanhecer, quando o mar é ouro líquido e o mundo parece nascer de novo.
O Retorno
A mata era menos ameaçadora agora. Ele caminhou com o respeito de quem sabe que a floresta é senhora e não serva. Animais o observavam, mas sem medo. Ele percebia sua presença integrada, e não intrusa.
Quando, finalmente, avistou a aldeia, não conteve o grito.
As crianças correram primeiro. Algumas já não o reconheciam. Outras o lembraram pelo olhar.
Sua mãe chorou antes de tocar seu rosto, como se quisesse confirmar se era sonho ou carne viva.
Seu pai, homem austero, demorou a falar — mas o abraço que lhe deu dizia tudo o que as palavras não alcançam.
O Reencontro
Sentaram-se ao redor do fogo naquela noite. Tibiriçá narrou o mar, os pássaros de cor de sangue, os homens à beira d’água, os rituais à luz da lua.
Cada frase plantava uma nova semente de curiosidade nos ouvintes; cada gesto seu criava perguntas.
— Há outros como nós — concluiu — e cada um guarda um jeito de viver o mundo.
Seu pai refletiu em silêncio.
— Então — disse por fim — cresceste.
Tibiriçá sorriu.
Sim. Crescera. Não apenas em passos ou distâncias, mas em horizontes.
E guardou consigo a sensação de que aquela viagem era o início — e não o fim — das perguntas que ainda fariam parte do seu destino.
QUANDO UM NOME É UMA NOVA TRILHA
Os dias seguintes foram de perguntas. Mulheres, caçadores, anciãos, jovens curiosos — todos queriam saber como era viver onde o rio se tornava sal, onde o vento carregava cheiro de outra vida.
Tibiriçá narrava como quem tece, com calma, para que cada fio encontre seu lugar. Falava da pesca com redes, das casas suspensas, dos rituais dedicados à Senhora Profunda, das crianças que nadavam como pequenas lontras e da dança que começava só quando o mar tocava o primeiro pé.
E falava também da estranha sensação de ser estrangeiro e pertencente ao mesmo tempo.
Muitos não compreendiam; outros se encantavam. Contudo, uma coisa era evidente:
— Ele havia voltado diferente.
Conselho dos anciãos
Chamaram-no para o círculo dos velhos — coisa rara para alguém tão jovem. A fogueira crepitava como se quisesse também ouvir sua voz. O pajé mais antigo, Ubirajara, fitou-o longamente.
— Partiste menino, voltaste com passos de muitos.
Outro acrescentou:
— Trouxeste histórias que não são apenas histórias; são pontes.
Um terceiro perguntou, enquanto o fogo refletia em seus olhos:
— És ainda Tibiriçá, o que nasceu à beira do nosso rio? Ou és outro, moldado por outra água?
Ele respirou — e foi sincero:
— Sou feito de ambos. Carrego a lembrança daqui e o aprendizado de lá. E onde eu for, levo os dois comigo.
Os anciãos se entreolharam. Um silêncio denso se fez.
Naquela aldeia, um nome era mais que um som — era destino, mapa e herança. Receber um nome novo era coisa rara, reservada a quem morria metaforicamente e renascia de outro modo.
Ubirajara então se levantou, ergueu no ar a pequena escultura do pássaro de madeira que Tibiriçá trouxera dos Aruanã, e proclamou:
— Aquele que volta maior do que partiu deve carregar um novo sopro.
A partir de hoje, chamarás Arapuá, O Que Carrega Duas Margens.
A tribo murmurou em concordância.
E assim, diante da fogueira ancestral, Tibiriçá morreu como nome — e nasceu como Arapuá.
Mudanças na aldeia
Com o tempo, Arapuá se tornou uma ponte viva entre mundos.
Introduziu novas formas de pesca. Sugeriu que construíssem depósitos elevados para guardar alimentos e impedir que fossem levados por animais. Trouxe a ideia dos rituais de agradecimento antes de grandes expedições, o que fortaleceu os laços espirituais.
Os jovens viam nele inspiração. Os mais velhos, um olhar maduro, fruto não apenas da idade, mas da vivência.
Mas a maior transformação foi intocável — estava no modo como passaram a olhar o horizonte. Antes, temiam o desconhecido; agora, reconheciam que o desconhecido também podia trazer aprendizado.
A trilha que não se fecha
Às vezes, já tarde, Arapuá caminhava até a beira do rio. Tirava os chinelos, sentia a terra fria sob os pés e olhava para o céu. Procurava constelações que aprendera com os Aruanã e comparava com as que ouvira de seu avô.
Ele sabia — uma parte dele ainda estava lá, onde as ondas guardavam nomes com espuma branca.
E sabia também que aquela viagem não era a última.
Porque agora, mais do que um destino, ele tinha uma direção:
Unir o que o medo mantinha distante.
Assim, guardou no peito a certeza tranquila: — Um dia, voltaria ao mar não como visitante, mas como mensageiro.
Pois alguns nascem para cuidar da aldeia; outros, para cuidar dos caminhos que levam até ela.
E Arapuá, o Que Carrega Duas Margens, era ambos.
O ECO DE ARAPUÁ
Dizem que toda viagem começa antes do passo — começa quando algo se move por dentro. Arapuá, o que carrega duas margens, aprendeu isso não nos caminhos, mas nos sonhos. Nasceu à beira de um rio e voltou com o mar nos olhos. Tornou-se ponte não porque quisesse, mas porque certas vidas nascem destinadas a atravessar.
Se realmente houve um homem que caminhou da selva até o sal, não saberemos. As pedras não contam nomes próprios, e os ossos não revelam sonhos. No entanto, os muros da floresta guardam silhuetas de caçadores, pássaros, espíritos e danças — e entre elas, quem pode afirmar que não esteja gravada a sombra de alguém como Arapuá?
Talvez seu passo tenha sido o de muitos. Talvez sua coragem tenha sido o temor de todos. Talvez o objeto que devolveu ao mar tenha sido apenas um pedaço de madeira ou, quem sabe, o peso simbólico de uma pergunta antiga demais para ser respondida.
Mas se a jornada de Arapuá existiu — ou se existe apenas agora, enquanto é lida — então ela diz o que a arqueologia ainda sussurra: que naquela era remota, enquanto o gelo derretia e a floresta respirava como um gigante desperto, alguém já pressentia que a vida não termina onde os pés param.
E por isso o conto permanece. Como as pinturas sob o musgo, como o ocre que resiste à chuva, como o medo e o fascínio diante de um horizonte que nunca se repete. Arapuá volta ao futuro cada vez que alguém imagina seus passos. Volta quando uma história busca seu dono. Volta quando leitores silenciosos sentem o chamado que ele sentiu.
Porque algumas viagens não têm rota de retorno — apenas a certeza de que existir é atravessar.
E, de algum modo que não sabemos explicar, todos carregamos duas margens dentro de nós. 🌿🌊🕯️


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