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sábado, 20 de dezembro de 2025

Justiça transicional: o Brasil em perspectiva comparada com Argentina e Chile



No artigo anterior, analisamos a recente decisão do TRF-1 que determinou a indenização à ex-presidenta Dilma Rousseff pelos atos de tortura e perseguição sofridos durante a ditadura militar brasileira.

A postagem tratou, essencialmente, da importância dessa decisão como reconhecimento histórico e jurídico de que violações de direitos humanos não prescrevem nem podem ser varridas para debaixo do tapete do tempo. Hoje, ampliamos a discussão, comparando a trajetória brasileira com outras experiências latino-americanas — em especial Argentina e Chile — que tiveram caminhos distintos no enfrentamento do legado autoritário.


Brasil: reparação com limitações, justiça penal com lacunas

O Brasil possui mecanismos importantes de memória e reparação, como:


  • Comissão de Anistia e políticas de reconhecimento de vítimas, com milhares de pedidos analisados;
  • Comissão Nacional da Verdade, que documentou casos de tortura, mortes e desaparecimentos;
  • Sentenças judiciais que reconhecem indenizações, como a mencionada no post anterior.


No entanto, em termos de responsabilização criminal de agentes do Estado envolvidos em tortura e outros crimes de lesa-humanidade, o avanço foi limitado. A Lei de Anistia de 1979 continua em vigor e, apesar de ser alvo de debates jurídicos e políticos, ainda resguarda muitos perpetradores de julgamentos formais.

Em termos práticos, isso significa que poucos processos penais relacionados à ditadura avançaram no Brasil, com a grande maioria das iniciativas sendo rejeitadas ou apenas esboçadas, sem condenações substanciais.


Argentina: do Julgamento das Juntas a centenas de condenações

A experiência argentina representa um dos casos mais amplos de justiça transicional no mundo.

O célebre Julgamento das Juntas (Trial of the Juntas), realizado em 1985, foi um dos primeiros grandes processos pós-ditadura, no qual altos comandantes do regime militar foram julgados por homicídios, tortura, sequestros e outros crimes.

Segundo dados consolidados em bases de justiça transicional, até 2020 a Argentina contabilizava cifras expressivas de processos relacionados a violações de direitos humanos:


  • Cerca de 486 processos judiciais domésticos relacionados à repressão estatal;
  • Desses, aproximadamente 1.500 pessoas condenadas por crimes de Estado;
  • Os processos incluem ações contra militares e agentes públicos por homicídios, desaparecimentos forçados, tortura e outros abusos.


Esses números colocam a Argentina entre os países com maior número de julgamentos por crimes contra os direitos humanos no mundo — e marcam uma diferença importante em relação ao Brasil, especialmente no âmbito penal, embora ambos os países tenham tido leis de anistia inicialmente.


Chile: longos processos, condenações e justiça penal contínua

No Chile, a transição democrática também enfrentou leis de anistia e obstáculos iniciais. Porém, o sistema judiciário chileno acabou abrindo caminho para julgamentos e condenações por crimes cometidos durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

Segundo bases de dados institucionais:


  • O Chile tem um dos maiores números de processos domésticos por violações de direitos humanos já registrados:
    • Cerca de 481 acusações domésticas entre agentes do Estado desde 1975;
    • Mais de 2.300 condenações no total, incluindo processos civis e penais.


Embora o caso do próprio Pinochet — preso em 1998 em Londres por violações de direitos humanos sob a jurisdição universal — não tenha resultado em uma condenação formal no Chile, o país seguiu adiante com julgamentos e sentenças contra agentes do regime e expandiu o enfrentamento desses crimes no sistema penal.


Comparação em números


País Julgamentos domésticos por direitos humanos Pessoas condenadas Observações principais
Brasil Poucos (ações penais raras) Praticamente nenhum Lei de Anistia ainda vigente, poucos avanços penais
Argentina ~486 (dados até 2020) ~1.500 Juízes comuns assumiram casos, leis de impunidade revogadas
Chile ~481 (dados até 2020) ~2.300 Altos números de processos e condenações no sistema penal

 

Observação: estes dados compilados refletem as bases disponíveis sobre justiça transicional até 2020, e as comparações servem para destacar diferentes abordagens e avanços concretos no enfrentamento das ditaduras nas três nações.


Por que essa comparação importa?

A comparação entre Brasil, Argentina e Chile não é uma questão de “competição de sofrimento”, nem de hierarquizar violências. Pelo contrário, ela ajuda a iluminar caminhos possíveis — institucionalmente e juridicamente — para lidar com a herança de graves violações de direitos humanos.

Enquanto o Brasil avançou no reconhecimento e em reparações simbólicas e materiais, países vizinhos mostraram que é viável combinar verdade, memória e responsabilização penal, mostrando que a justiça transicional pode ser mais ampla e profunda.

Esse debate não elimina a importância da reparação como reconhecimento histórico e moral, mas alerta que apenas reconhecer sofrimento sem responsabilizar criminalmente quem cometeu atrocidades pode deixar lacunas significativas no projeto de consolidação democrática.


Conclusão

Partindo do post anterior sobre a indenização à ex-presidenta Dilma Rousseff, podemos perceber que o Brasil está em um ponto relevante de reflexão: como tornar mais robusto o enfrentamento institucional de seu passado autoritário?

A experiência de países como Argentina e Chile aponta para a importância de não apenas reconhecer vítimas e reparar danos, como também de enfrentar criminalmente os responsáveis por violações de direitos humanos, a fim de consolidar verdade, justiça e memória democráticas.

Este post não encerra o assunto: ele convida o leitor a continuar a reflexão — e a acompanhar iniciativas, debates e possíveis reformas que ampliem o horizonte da justiça no Brasil e na América Latina.

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