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quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

2025: o ano em que o Ministério Público levou a memória histórica ao centro da Justiça



O ano de 2025 marcou um ponto de inflexão na atuação do Ministério Público brasileiro — em especial do Ministério Público Federal — no campo da memória histórica, da justiça de transição e da reparação simbólica de violações do passado. Mais do que iniciativas isoladas, o que se observou foi a consolidação de uma agenda institucional coerente, que trata a memória como direito fundamental, patrimônio coletivo e condição para a democracia.

Não se trata de revisitar o passado por nostalgia, mas de enfrentar apagamentos históricos, silêncios institucionais e discursos oficiais que perpetuam desigualdades, muitas vezes herdadas de períodos autoritários ou de práticas estruturais de discriminação racial e social.

Entre ações judiciais, inquéritos civis, recomendações e articulações interinstitucionais, o Ministério Público passou a ocupar um lugar central no debate sobre quem tem direito à memória, como ela deve ser preservada e quais são os limites da atuação do próprio Estado diante de sua história.


João Cândido e o direito à memória: um marco jurídico

No meu ponto de vista, o episódio mais emblemático dessa agenda em 2025 foi, sem dúvida, a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a União em razão de manifestações oficiais da Marinha do Brasil consideradas ofensivas à memória de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata.

A ação, registrada sob o nº 5138220-44.2025.4.02.5101, não discute apenas um personagem histórico. Ela questiona se o Estado brasileiro pode, por meio de órgãos oficiais, deslegitimar a memória de alguém que foi formalmente anistiado pelo próprio Congresso Nacional, por meio da Lei nº 11.756/2008.

Segundo o MPF, ao classificar a Revolta da Chibata como “página deplorável” e “fato opróbio”, a Marinha não expressou uma simples opinião histórica, mas praticou um ato institucional incompatível com a Constituição, tratados internacionais de direitos humanos e o sentido reparatório da anistia.

O pedido inclui:


  • reconhecimento de dano moral coletivo;
  • indenização de R$ 5 milhões, com destinação vinculada a projetos de valorização da memória;
  • e determinação para que a União se abstenha de novas manifestações que desabonem a trajetória de João Cândido.


Ao levar esse debate ao Judiciário, o MPF inaugura um precedente relevante: o de que a memória coletiva também pode ser violada por atos estatais contemporâneos, e que essa violação é passível de controle judicial.


Casa da Morte: transformar o terror em memória pública

Outra frente decisiva de atuação em 2025 envolveu a Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), um dos mais conhecidos centros clandestinos de tortura e desaparecimento forçado durante a ditadura militar.

Ao longo do ano, o Ministério Público participou ativamente de:


  • audiências públicas;
  • articulações com o Ministério dos Direitos Humanos, universidades e movimentos sociais;
  • e debates institucionais para viabilizar a transformação do imóvel em um centro de memória, verdade e direitos humanos.


A iniciativa ganhou corpo com decisões judiciais que autorizaram a imissão do poder público na posse do imóvel, abrindo caminho para sua incorporação ao patrimônio público e sua ressignificação como espaço de memória traumática.

A importância desse processo vai além da preservação física do prédio. Trata-se de afirmar que locais de violência estatal não devem ser apagados, privatizados ou esquecidos, mas transformados em espaços de educação, reflexão e compromisso com a não repetição.


DOPS: do aparelho repressivo ao centro de memória

Em 2025, o Ministério Público também atuou de forma consistente em relação aos antigos prédios do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) — símbolos da repressão política ao longo do século XX, especialmente durante o regime militar.

No Rio de Janeiro, o MPF:


  • realizou inspeções técnicas no imóvel;
  • instaurou procedimentos administrativos;
  • e emitiu recomendações para que o prédio seja destinado à criação de um centro de memória e direitos humanos, em articulação com a Secretaria do Patrimônio da União e órgãos culturais.


Em Minas Gerais, o Ministério Público acompanhou a ocupação do antigo DOPS em Belo Horizonte por movimentos sociais, cobrando do poder público avanços concretos na restauração e destinação do espaço como memorial.

Essas atuações reforçam uma compreensão cada vez mais consolidada: não é neutra a forma como o Estado trata os lugares onde violou direitos. Preservá-los e ressignificá-los é parte do processo democrático.


Preservação de acervos históricos: memória documental como direito

Outro eixo importante da atuação ministerial em 2025 foi a proteção de acervos históricos ameaçados, como no caso do antigo Instituto Médico Legal da Lapa, no Rio de Janeiro.

Diante do risco de deterioração e perda irreversível de documentos e registros históricos, o MPF ajuizou ação para:


  • garantir a preservação do acervo;
  • assegurar sua guarda adequada;
  • e permitir acesso futuro à pesquisa e à memória institucional.


Essa frente evidencia que o direito à memória não se limita a personagens ou edifícios simbólicos, mas inclui também documentos, arquivos e registros que permitem à sociedade conhecer sua própria história.


Uma agenda que conecta memória, reparação e democracia

Observadas em conjunto, essas iniciativas revelam algo maior do que respostas pontuais. Elas compõem uma agenda estruturada de justiça de transição, ainda que muitas vezes não nomeada formalmente como tal.

Ao longo de 2025, o Ministério Público:


  • tratou a memória como direito fundamental coletivo;
  • enfrentou o racismo estrutural e a violência institucional do passado;
  • reafirmou compromissos internacionais assumidos pelo Brasil;
  • e sinalizou que o Estado não pode escolher quais memórias merecem respeito e quais podem ser desqualificadas.


Nesse contexto, a ação sobre João Cândido ocupa lugar central. Ela conecta o passado escravocrata, a República Velha, o racismo estrutural e o presente democrático, mostrando que o apagamento simbólico também é uma forma de violência estatal.


Conclusão

A retrospectiva de 2025 mostra que a memória deixou de ser apenas tema de historiadores ou movimentos sociais para se tornar objeto direto da atuação jurídica do Ministério Público.

Em tempos de disputas narrativas, negacionismos e tentativas de reescrever a história a partir do poder, essas ações reafirmam um princípio essencial: não há democracia sólida sem memória, nem justiça possível sem reconhecimento das violações do passado.

Ao levar essas questões aos tribunais, aos arquivos e aos espaços públicos, o Ministério Público contribui para que a história brasileira seja enfrentada — não como fardo, mas como condição para um futuro mais justo.


📝Nota:

Há ainda um aspecto pouco debatido, mas juridicamente relevante, no campo da memória e da reparação histórica: o destino das economias — o chamado pecúlio — acumuladas por pessoas escravizadas que buscavam comprar a própria liberdade ao longo do século XIX. Registros históricos indicam que parte dessas poupanças foi depositada em instituições precursoras da atual Caixa Econômica Federal, criada justamente com a finalidade de receber pequenas economias das camadas populares. No entanto, não houve, após a abolição, qualquer política pública estruturada de restituição, compensação ou reconhecimento dessas perdas. Até o momento, não localizei notícia de ação judicial específica do Ministério Público voltada a esse tema, que permanece como uma das fronteiras ainda não enfrentadas do debate sobre responsabilidade institucional, memória econômica da escravidão e reparação histórica no Brasil.

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