Desde os primeiros debates sobre justiça moderna, o Brasil — como muitos países — vem repetindo o ciclo de escândalos, prisões e indignação pública. O espetáculo da algema tornou-se rotina: políticos, servidores, empresários, todos transformados em personagens de um teatro público que mais busca a catarse social do que a reparação do dano.
Nosso ordenamento jurídico, em particular a Constituição de 1988, estabelece princípios nobres: legalidade, moralidade, impessoalidade, eficiência e responsabilidade pública. No entanto, a aplicação prática, seja no direito penal ou administrativo, continua a enfatizar o drama moral do agente corrupto, em vez de lidar com as falhas sistêmicas que tornam o ilícito possível.
A repetição cíclica de escândalos evidencia que o problema não é apenas o caráter individual, mas a fragilidade das estruturas administrativas e a ausência de mecanismos preventivos eficazes. Em outras palavras: não se trata de punir o corrupto para satisfazer a indignação popular, mas de corrigir o sistema para impedir a repetição do dano.
Da prisão à falha técnica: uma releitura necessária
O debate aqui no blogue sobre prisões há mais de uma década já apontava problemas semelhantes: a pena de prisão, especialmente para delitos sem violência ou de menor potencial ofensivo, muitas vezes não ressocializa, não educa e apenas reforça o espetáculo da punição. Hoje, podemos aplicar essa lógica ao combate à corrupção:
- Corrupção como drama moral: o foco está no vilão, no espetáculo, na punição punitiva. O erário pouco se recupera, a gestão continua vulnerável, e o povo se contenta com o espetáculo — não com a correção estrutural.
- Corrupção como falha técnica: o foco está no processo, nas regras, nos fluxos administrativos. Sanções não desaparecem, mas tornam-se ferramentas de correção e prevenção, garantindo que a mesma vulnerabilidade não produza novos prejuízos.
Nesse modelo, não se elimina a responsabilização individual — mas ela deixa de ser o único eixo da justiça. A prioridade é estruturar o sistema para que o erro não se repita e que os recursos desviados retornem rapidamente ao Estado.
Proposta de reforma infraconstitucional
Para implementar esse paradigma no Brasil, algumas mudanças são necessárias nas leis que hoje regem a improbidade administrativa, a corrupção e as licitações:
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Lei Anticorrupção (12.846/2013):
- Introduzir sanções técnicas graduadas, com foco na reparação do dano e na correção de falhas de governança.
- Acordos de leniência obrigatoriamente acompanhados de protocolos de correção sistêmica.
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Lei de Improbidade Administrativa (14.230/2021):
- Estabelecer avaliação objetiva da falha: distinção entre responsabilidade individual, sistêmica ou ambas.
- Permitir redução ou substituição de sanções mediante comprovação de correção de processos vulneráveis.
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Lei de Licitações e Contratos Administrativos (14.133/2021):
- Tornar obrigatória a rastreabilidade digital de processos.
- Implementar inteligência artificial para monitoramento de padrões atípicos.
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Direito Administrativo e Orgânico:
- Consolidar protocolos de governança preventiva.
- Instituir auditoria contínua, independente e automatizada.
- Publicação de selos de conformidade e certificações de integridade para órgãos e empresas.
Releitura constitucional
A Constituição Federal de 1988 é plenamente compatível com essa visão, se interpretada à luz de:
- Princípio da eficiência (art. 37, caput e EC 19/1998): priorizar resultados, não dramatizações.
- Controle interno e externo (arts. 70-74): reforçar auditoria sistêmica e preventiva.
- Probidade e moralidade administrativa (art. 37): ampliar o conceito de probidade de “caráter do gestor” para “conformidade sistêmica”.
Em suma, a Constituição já prevê instrumentos que permitem migrar de um modelo retributivo e moralista para um modelo técnico, preventivo e reparador.
Conclusão
O Brasil precisa abandonar o ciclo do espetáculo da corrupção e da vingança simbólica.
A punição continua necessária, porém o foco deve ser estrutural, técnico e preventivo.
O que proponho é um novo pacto institucional, em que falhas são identificadas, corrigidas e monitoradas, e o dano é rapidamente reparado de modo que o drama moral dê lugar à governança eficaz.
Essa visão não é apenas utópica: ela pode ser transformada em lei, com impactos reais na proteção do erário, na confiança social e na eficiência administrativa.


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