A recente notícia de que Julian Assange apresentou uma queixa criminal contra a Fundação Nobel — contestando a concessão do Prêmio Nobel da Paz 2025 à venezuelana María Corina Machado — reacendeu um debate que ultrapassa a esfera jurídica e atinge o cerne da política internacional e do próprio sentido de “paz”.
Assange alega que a decisão transformou o prêmio em “instrumento de guerra”, e que poderia haver apropriação indevida de fundos, além de facilitação de crimes graves ao abrigo da lei sueca. Essa denúncia, disponibilizada publicamente, contém uma série de acusações contundentes que ainda não foram analisadas por um tribunal — e, em termos jurídicos, é altamente improvável que prosperem. No entanto, ela indica o nível de rejeição que a escolha de Machado gerou em alguns setores internacionais.
Ao lado dessa controvérsia institucional, abre-se uma reflexão mais ampla: o Nobel da Paz foi entregue a alguém cujas posições políticas conflitam com práticas de pacificação genuínas? E, sob essa perspectiva, quem realmente representa a oposição democrática na Venezuela, sobretudo entre aqueles que rejeitam intervenções externas?
Ditadura de Maduro: condenável, mas sem solução externa simplista
Não é possível — nem sensato — relativizar os efeitos devastadores do governo de Nicolás Maduro: repressão política, colapso institucional, erosão dos direitos civis e um desastre humanitário que produziu milhões de migrantes. Essas atrocidades precisam ser, e são, condenadas.
Contudo, isso não autoriza automaticamente que qualquer líder anti-Maduro seja elevada ao status de iconografia universal de “paz”, tampouco que se adote uma oposição que dependa de alianças com potências estrangeiras cujo histórico de interferências na América Latina já teve consequências traumáticas.
O equívoco da escolha de María Corina Machado
A escolha de Machado pelo Nobel da Paz torna-se problemática porque sua trajetória política inclui apoio explícito a sanções, pressões e estratégias externas que podem agravar conflitos internos, em vez de promover soluções pacíficas e negociadas. Embora o Comitê Nobel tenha critérios amplos e políticos, transformar esse reconhecimento em símbolo de paz quando a laureada advoga medidas que se confundem com lógica de confrontação internacional distorce o significado histórico do prêmio.
Mais ainda, a narrativa de que “a oposição venezuelana é definida por María Corina” reduz um espectro político vasto e plural a uma figura que, ao defender alinhamentos externos de confrontação, afasta muitos venezuelanos que aspiram à democracia sem subordinação a potências estrangeiras.
Uma oposição plural existe — e não se resume a Machado
É importante reconhecer que a oposição venezuelana não é homogênea e nem se limita a uma liderança. Existem setores que criticam tanto o autoritarismo de Maduro quanto recusam intervenções externas ou sanções que penalizam a população trabalhadora.
Um exemplo desse outro olhar é Suhey Ochoa, ativista feminista ligada ao coletivo Pan y Rosas Venezuela e à Liga de Trabalhadores pelo Socialismo (LTS). Ochoa tem atuado em:
- movimentos por direitos das mulheres, incluindo a despenalização do aborto;
- protestos por políticas públicas que atendam à população marginalizada;
- críticas tanto ao governo venezuelano quanto à oposição tradicional que desconsidera demandas sociais fundamentais.
Ela representa um segmento de oposição que não se alinha a intervenções externas e que busca uma reconstrução democrática que parta das demandas populares, sobretudo das mulheres, estudantes e trabalhadores. Essa pluralidade de vozes, embora menos amplificada internacionalmente, é essencial para uma oposição venezuelana legítima e sustentável.
A ação de Assange: reflexão política mais do que eficácia jurídica
A denúncia de Assange contra a Fundação Nobel, embora fascinante como objeto de debate, não altera juridicamente a outorga do prêmio, que é institucionalmente irreversível. O Nobel da Paz não pode ser revogado após a sua concessão, independentemente de contestações políticas ou críticas públicas. Entretanto, a própria articulação da denúncia — com acusações de apropriação indevida, violação de confiança e facilitação de crimes graves — reflete o desconforto e a resistência que a escolha de Machado provocou, não apenas entre apoiadores de Maduro, mas também em amplos setores da sociedade civil internacional.
Importante ressaltar que a denúncia contém alegações que não foram validadas em juízo e que, em muitos casos, embutem pressupostos políticos controversos. Do ponto de vista jurídico, ela enfrenta obstáculos significativos: a escolha do Nobel é uma decisão institucional soberana dos comitês envolvidos, e vincular essa escolha a crimes de guerra ou crimes contra a humanidade exige provas e correlações factuais que — no atual estágio — não foram demonstradas em instância jurisdicional.
Conclusão: equilíbrio entre crítica e contexto
A decisão de conceder o Nobel da Paz a María Corina Machado deve ser vista como um equívoco político e simbólico, e não apenas um ato infeliz ou mero detalhe de cobertura jornalística. Ela desloca o sentido do prêmio de um reconhecimento de práticas pacíficas para um palco geopolítico de alta tensão, reduzindo a complexidade política venezuelana e diluindo vozes democráticas alternativas que rejeitam tanto a ditadura quanto intervenções externas.
- valorize vozes internas variadas,
- fortaleça a sociedade civil,
- respeite os direitos humanos,
- e promova soluções políticas e sociais sustentáveis — sem subordinar a soberania nacional a agendas externas.

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