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sábado, 31 de março de 2012

Um tur pelos bairros da Zona Norte do Rio

Engana-se quem pensa que o turismo no Rio de Janeiro é feito apenas visitando a orla marítima da Zona Sul. Oferecendo não apenas praias, florestas, prédios históricos e museus, a Cidade Maravilhosa dispõe também de uma riquíssima vida comunitária que pode ser experimentada em lugares da Zona Norte.

Além dos tradicionais bairros da classe média como Tijuca, Grajaú ou Vila Isabel, existe muito o que se ver na humilde região de Penha, Ramos e Bonsucesso. Trata-se de uma importante área residencial do Rio que, no passado, foi muito discriminada por ser o “subúrbio” carioca e ainda ficou manchada durante décadas pela violência do crime organizado. Porém, nestes últimos anos de pacificação, está se tornando um interessante roteiro turístico alternativo para quem se interessa em conhecer o outro lado das coisas.

Já no final da adolescência, desde que comecei a viajar por conta própria, criei logo o hábito de conversar com as pessoas de cada local visitado acerca do cotidiano delas. Quando fui a Paris, em outubro de 1997, não me interessou somente visitar a Torre Eiffel. Atravessando a França no trem de alta velocidade, com a companhia de jovem espanhola, eu queria saber mais sobre sua vida de imigrante estudantil numa das mais cosmopolitas cidades do mundo. E, numa outra vez, quando estive em Buenos Aires, parei para conversar com um manifestante na rua que protestava contra a política do então presidente Carlos Menem.

Certamente que para conhecermos o outro lado das coisas num passeio turístico torna-se necessário conversar e até conviver com pessoas do local, utilizando o transporte coletivo comum, sentando num barzinho simples frequentado pela população, comendo pastel na feira, pegando orientações sobre as ruas na banca de jornal, etc. E, no Rio de Janeiro, igual a toda e qualquer cidade do planeta, não é muito diferente. Aqui, onde voltei a morar há pouco mais de três meses, existe um povo ainda animado, com pessoas geralmente dispostas a informar, compartilhar um pouco de si mesmas e até mesmo prestar alguma solidariedade desinteressada.

Neste último sábado do mês março, foi mais ou menos assim que resolvi voltar aos passeios depois dos dias de luto familiar pelo falecimento de minha avó materna (21/03/2012). Deveria ser umas 10 horas da manhã quando chamei Núbia para ir comigo à histórica Igreja de Nossa Senhora da Penha e ao teleférico do Complexo do Alemão. Peguei um dinheirinho no caixa eletrônico de uma agência do banco ITAÚ na praça onde moro, caminhamos umas quatro quadras aqui no bairro pela arborizada avenida Engenheiro Richard e, finalmente, embarcamos no ônibus da linha 621 rumo à Penha.

Que eu me recorde, jamais cheguei a estar na Penha, exceto de passagem. Entre os meses de dezembro e janeiro, quando fui algumas vezes em Duque de Caxias prestar serviços a um cliente meu, até cheguei a ver a velha igreja no alto do morro e o teleférico do Alemão em movimento. Desejava assim saltar do veículo e andar livremente por ali. Só que os compromissos de horário e o desconforto de estar vestido com roupas sociais no auge do calor acabavam me desestimulando. Então dizia para mim mesmo que, quando tivesse uma oportunidade, visitaria estes dois lugares.

Recentes notícias de conflitos no Complexo do Alemão transmitidas pelo telejornal não foram suficientes para desanimar. Minha mãe e a esposa pediam-me que não fosse lá por estes dias. Porém, eu pensava que os problemas não deveriam estar acontecendo em toda a área sendo que somente uns becos da comunidade onde ainda restasse pontos de venda do tráfico é que deveriam ser evitados. E insisti para quebrar o medo na mente de minha mulher pelo que ela resolveu aventurar-se comigo.

A viagem no 621 durou pouco mais de meia hora e pegamos apenas um pequeno engarrafamento depois do Meier. Saltamos perto da estação de trem e pedimos informações às pessoas sobre como chegar na igreja. Então atravessamos algumas movimentadas ruas e logo chegamos nos arredores da pedra onde foi erguido o secular santuário católico.

A igreja fica dentro de um parque com bastante verde em volta. Há um trecho ali em obras já que há interesse do governo em colocar um segundo bondinho que conduzirá as pessoas do ponto mais baixo até o nível intermediário do percurso. Aí, pensando em poupar minha esposa de uma cansativa subida, pegamos dois moto-táxis que nos levaram até próximo da loja de artigos religiosos da congregação, justamente no tal trecho intermediário. Isto nos deu um pouco de adrenalina já que andar de moto é sempre algo emocionante. E despedindo-nos dos motoqueiros, entramos no bondinho em funcionamento que acompanha a longa escadaria com seus trezentos e tantos degraus, proporcionando uma contemplativa subida.

Não éramos os únicos que estavam visitando a igreja. Subiram conosco um casal de turistas acompanhados de um guia local, mais um homem que desde a infância era levado por sua parenta aos festejos de outubro da padroeira Nossa Senhora da Penha e ainda uma colaboradora da congregação que estava transportando pelo bondinho vários ramos de palmeiras para a missa especial do Domingo de Ramos que antecede a Páscoa. Contudo, achei ainda muito fraco o número de visitantes naquele belíssimo lugar que é tido como um valioso cartão postal do Rio.

A Igreja de Nossa Senhora da Penha de França não chega a ser a mais velha da cidade, mas é considerada bem antiga. Desde a primeira metade do século XVII, pessoas já subiam aquelas escadas para orar. Sua construção atual, entretanto, é de 1728, quando a pequena capela foi ampliada para receber um número maior de devotos. E, apesar de ter sofrido saques e tiroteios de bandidos na época do domínio das organizações criminosas, a igreja hoje ressurge como um símbolo de que a população carioca pode construir um futuro melhor sem permanecer refém do acontecimentos ruins.

Inegavelmente, a paisagem em volta da igreja é belíssima. Dali é possível ver diversos bairros e comunidades da Zona Norte carioca, além de um pedaço de Caxias e o aeroporto internacional Tom Jobim, na Ilha do Governador, conhecido também como Galeão. Também dá para reconhecer outros morros como os do Pão de Açúcar, o Corcovado, o Sumaré e alguns picos que compõem o Parque Nacional da Tijuca. Só não consegui ver dali o Dedo de Deus da Serra dos Órgãos porque o tempo não parecia estar firme para o lado da Região Serrana.

Deixamos a tranquila igreja da Penha e consegui animar Núbia para conhecer o Complexo do Alemão. Pagamos um ônibus ali perto e descemos na estação de trem de Bonsucesso, onde também é feito o embarque no teleférico administrado pela concessionária SuperVia. Compramos nossos bilhetes de passagem pelo preço de apenas R$ 1,00 (um real) por pessoa e fomos então conhecer o primeiro transporte de massa feito por cabos no Brasil.

Pode-se dizer que o teleférico do Alemão deu uma nova cara à Zona Norte do Rio, interferindo positivamente naquele esquecido cenário geográfico. Com três quilômetros e meio de extensão, suas 152 gôndulas têm a capacidade de transportar até 10 pessoas dentro de cada uma delas com oito passageiros sentados e dois em pé. Ao todo, são seis estações incluindo a de Bonsucesso. A última delas chama-se Palmeiras, uma comunidade situada dentro do populoso bairro de Inhaúma onde logo se vê mais uma unidade de polícia pacificadora em construção.

Mesmo tendo conhecido outras comunidades carentes (minha esposa mesma já morou em favelas de Niterói antes de se casar comigo), eu jamais tinha visto uma área tão extensa como a do Complexo do Alemão. São casas e mais casas dominando toda a paisagem! Algumas chegam a ter vários andares e a maioria das construções carece de uma pintura externa sobre seus visíveis tijolos. Senti como se existisse uma cidade dentro de outra, um pedaço do Rio de Janeiro que até uns anos atrás era escondido dos turistas estrangeiros que vinham ao Brasil.

Dizer que agora tudo está lindo e maravilhoso no Complexo do Alemão seria mentir para a população. É certo que muita coisa foi mudando ali desde a morte do jornalista Tim Lopes (1950-2002) até hoje. Porém, achar que apenas com a ocupação da área a paz chegou nas humildes residências de seus moradores não é verdade. Pois, como se sabe, o combate à violência faz parte de um lento processo que inclui profundas reformas sociais. Além da força policial, o Estado precisa se fazer presente através das escolas, projetos de lazer, postos de saúde e ambientes culturais que proporcionem uma sadia convivência social tornando os bairros carentes lugares agradáveis de se viver.

Por sua vez, não acho que o carioca deva ficar dependendo tanto do paternalismo governamental. Se a população somente esperar pela providência dos políticos, o Complexo do Alemão será apenas uma vitrine eleitoreira que algum dia poderá ficar esquecida pelas autoridades quando os célebres eventos esportivos passarem. Logo, é preciso que o cidadão lute, cobre melhorias do Poder Público e também ouse fazer acontecer. Pois foi isto o que observei no bairro de Acari durante os dias em que acompanhei o sofrimento de minha avó no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla. Para minha surpresa, a associação de moradores chegou a organizar até um transporte alternativo de combis para o bairro de Madureira com uma tarifa mais barata do que a dos ônibus.

Nosso passeio pelo Complexo do Alemão deve ter durado pouco mais de uma hora e consumimos apenas dois picolés da Kibon, a empresa patrocinadora dos teleféricos. Lá, infelizmente, ainda não existem restaurantes e a compra do bilhete unitário não dá direito ao desembarque nas demais estações atendidas pelo transporte da SuperVia. Por isto, assim que regressamos, acabamos indo almoçar numa churrascaria em Bonsucesso. E já eram mais de três da tarde, sendo que parte do comércio local estava fechando as portas.

Com vontade de conhecer mais lugares, eu ainda pensava em dar uma chegada até o Piscinão de Ramos. Só que, infelizmente, Núbia já estava se sentindo exausta e querendo voltar para casa de táxi. Pegamos uma vã até o Meier e depois realizei o desejo dela, deixando pra ir em Ramos numa outra oportunidade.

Assim encerrei meu passeio com gratidão pelo dia que Deus nos proporcionou. E Núbia também gostou muito dali, principalmente da vista da Igreja da Penha onde ela pretende retornar levando lá sua mãe, irmã e as amigas de Nova Friburgo quando vierem ao Rio nos visitar.


OBS: A foto ilustrativa deste artigo foi extraída do site da empresa SuperVia, responsável pelo transporte de trem de passageiros na região metropolitana do Rio de Janeiro e também pelo teleférico do Alemão. Para chegar na Igreja Nossa Senhora da Penha de trem, basta embarcar no ramal que vai da Central para Saracuruna e Gramacho, descendo na estação da Penha. Depois é só seguir a Rua dos Romeiros até o Largo da Penha. Placas indicarão o acesso ao templo. Já o teleférico do Alemão fica na própria estação de Bonsucesso, no mesmo ramal de Saracuruna e Gramacho. Contudo, é preciso ter paciência para aguardar o trem nos finais de semana. Segundo informações passadas pela funcionária da bilheteria, a SuperVia só disponibiliza um trem de hora em hora aos sábados no referido ramal ferroviário.

quinta-feira, 29 de março de 2012

A importância dos comitês de bacia hidrográfica

Até hoje pouquíssimos brasileiros sabem a respeito dos comitês de bacia hidrográfica. Muitos militantes ambientalistas também desconhecem do que se tratam esses importantes organismos colegiados de gestão participativa, embora praticamente todos reclamem da poluição dos nossos rios e mares.

Felizmente, no Brasil, a água é considerada um bem de uso comum do povo. Trata-se de um recurso livre de apropriação pela iniciativa privada ou mesmo pelo Estado, muito embora isto não signifique impossibilidade de se cobrar pelo seu uso ou de se conceder a um particular a execução de serviços públicos como o saneamento básico. E, justamente para resguardar o uso prioritário e múltiplo das águas, uma vez que os recursos hídricos são finitos na natureza, sendo grande as pressões econômicas, a Lei Federal n.º 9.433/97 previu a criação dos comitês de bacia hidrográfica.

Inspirando-se no modelo francês, desejou o legislador brasileiro promover uma gestão descentralizada das águas com a participação do Poder Público, dos usuários dos recursos hídricos e das comunidades envolvidas no território de cada bacia hidrográfica. Ou seja, através destes três setores, são compostos os comitês de bacia afim de que, em conjunto, as pessoas jurídicas integrantes possam elaborar o planejamento da respectiva área de atuação. E, embora os comitês sejam compostos apenas por entidades eleitas entre seus pares, entendo que é indispensável o incentivo à participação pública dos cidadãos. É o que diz o jurista Paulo Affonso Leme Machado em seu livro Direito ambiental brasileiro:

“O controle do uso das águas – patrimônio coletivo – não terá êxito se o público – em todos os seus segmentos – não tiver oportunidade de acompanhar a utilização dos instrumentos da Política Nacional dos Recursos Hídricos, em especial a elaboração do Plano de Recursos Hídricos. Valem aqui os argumentos expendidos sobre a participação do público no Estudo de Impacto Ambiental. Antes de ser apreciado e votado pelo Comitê de Bacia Hidrográfica seria de alta valia que o Plano de Recursos Hídricos proposto pelas Agências de Água fosse publicado na íntegra para divulgação, inclusive, via eletrônica, e sua síntese, contendo os programas de aplicação dos recursos financeiros, publicada nos Diários Oficiais da União, dos Estados e dos Municípios interessados. Com a publicidade prévia, informa-se a tempo e de forma antecipada em relação á decisão de adoção do Plano.”

Em 2001, quando ainda era estudante de Direito, comecei a me interessar pelos comitês de bacia. Lembro-me que, no dia 11 de setembro daquele ano, enquanto ocorria o atentado terrorista em Nova York, eu estava numa reunião em um hotel da Região dos Lagos sobre a formação do comitê do rio Macaé. Na época, eu era o representante da extinta ONG Instituto Planeta Vivo de Desenvolvimento Sustentável e presenciei todo o jogo de interesses do (des)governo Garotinho e das prefeituras dos municípios envolvidos. Recordo muito bem de como alguns políticos tentavam cooptar as ONGs e os pequenos usuários das águas para apoiarem seus objetivos nem sempre transparentes. Secretários de meio ambiente, com a justificativa de estarem "compensando a natureza", queriam mesmo era tomar dinheiro dos grandes usuários. Principalmente da riquíssima PETROBRÁS.

Ainda assim, penso que valeu a pena aquele comitê ter sido criado assim como tantos outros no Rio de Janeiro e nos demais estados. Pois tendo em vista o baixo grau de maturidade da sociedade brasileira, penso que a gestão democrática e participativa tem sido um importante avanço para que os cidadãos comecem a se interessar pela fiscalização e o acompanhamento das diversas políticas públicas. Não só quanto aos recursos hídricos como em relação às unidades de conservação da natureza (parques, reservas, áreas de proteção ambiental, etc) e dentro de outros assuntos além do meio ambiente. Tanto é que precisamos ficar mais atentos sobre o que acontece nos conselhos municipais de saúde, de educação, de transporte, do idoso, de tutela do menor e dos animais que precisam funcionar satisfatoriamente nas nossas respectivas cidades.

De acordo com o artigo 38 da Lei n.º 9433/97, esta é a competência dos comitês de bacia hidrográfica:

I - promover o debate das questões relacionadas a recursos hídricos e articular a atuação das entidades intervenientes;
II - arbitrar, em primeira instância administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos;
III - aprovar o Plano de Recursos Hídricos da bacia;
IV - acompanhar a execução do Plano de Recursos Hídricos da bacia e sugerir as providências necessárias ao cumprimento de suas metas;
V - propor ao Conselho Nacional e aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos as acumulações, derivações, captações e lançamentos de pouca expressão, para efeito de isenção da obrigatoriedade de outorga de direitos de uso de recursos hídricos, de acordo com os domínios destes;
VI - estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados;
VII- estabelecer critérios e promover o rateio de custo das obras de uso múltiplo, de interesse comum ou coletivo.

Nós, simples cidadãos, podemos nos fazer representar nos comitês de bacia hidrográfica através das ONGs ambientalistas que existem em nossa sociedade local (art. 39, V da lei). Por esta e outras razões, precisamos frequentar mais estas entidades, lutarmos para que elas atuem com transparência, democracia e sejam melhor controladas por seus membros. Infelizmente, como é bem divulgado pela imprensa, existem muitas ONGs picaretas que são fundadas apenas para fins de arrecadação de recursos financeiros em projetos suspeitos nos quais o dinheiro da nação é desviado. Só que, se situações como estas ocorrem é porque nós, a sociedade civil desorganizada, assim permitimos deixando de participar ativamente do associativismo.

Conhecendo um pouco da política europeia, sobretudo de países onde não existe a unicidade sindical, tenho visto que a representação da sociedade por ONGs pode muito bem dar certo desde que exista realmente uma participação coletiva, sendo indispensável o desenvolvimento de uma cultura mais habituada com a democracia. Em países desenvolvidos como a Alemanha, as ONGs e organizações sindicais costumam ter um número de membros com muito mais expressão do que aqui. Pois, como diz um conhecido meu lá da Prefeitura de Nova Friburgo, no Brasil temos “INGs” que seriam os “indivíduos não-governamentais”.

Morando há pouco mais de três meses aqui na cidade do Rio de Janeiro, tenho procurado me inteirar de alguns acontecimentos pertinentes à política local e regional. Recentemente, recebi um email do ambientalista Sérgio Ricardo sobre o processo eleitoral da plenária do Subcomitê da Baía de Guanabara em seu trecho oeste, conforme pode ser lido no edital disponibilizado eletronicamente pelo governo estadual:

http://urutau.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/EDITALSCBG.pdf

Este comitê encontra-se dentro de uma área de atuação que inclui 17 municípios fluminenses, os quais contém rios que deságuam na baía de Guanabara, incluindo o Rio de Janeiro com seus cursos d'água urbanos. É composto por 45 membros com direito à voz e voto, com mandato de dois anos, sendo 15 representantes de cada setor (usuários das águas, sociedade civil organizada e governos). E, no trecho oeste da área de atuação do comitê, serão eleitos desta vez 8 membros das organizações sociais com interesse em recursos hídricos que atendam à Lei Estadual n.º 3239/99, artigo 62, as quais são:

a) Consórcios e associações intermunicipais de bacias hidrográficas;
b) Associações regionais, locais ou setoriais de recursos hídricos;
c) Organizações técnicas e de ensino e pesquisa voltadas aos recursos hídricos e ambientais;
d) Organizações não-governamentais com objetivo de defesa de interesses difusos e coletivos da sociedade, e
e) Outras organizações assim reconhecidas pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERHI).

Diante de uma notícia destas, vejo o quanto é importante os cidadãos da sociedade civil desorganizada ficarem mais atentos a estes movimentos. Nós cariocas andamos há décadas insatisfeitos com a poluição da nossa baía de Guanabara e dos rios que nela deságuam, mas a grande maioria nem sabe como se posicionar para defender o direito de todos a um meio ambiente equilibrado, conforme dispõe nossa Constituição Federal. Simplesmente ficamos alienados e deixando que outros decidam tudo por nós.

Meu desejo é que, em cada bacia hidrográfica, as pessoas comecem a se mobilizar. Acho que cada cidadão precisaria não só se informar sobre como anda o comitê de bacia de sua região como também precisa fazer parte de uma ONG séria capaz de verdadeiramente representar a sociedade. E, se numa cidade faltam entidades idôneas para o desempenho desse papel, que criemos novas organizações com um estatuto realmente democrático, eleições periódicas, declaração de imposto de renda sempre em dia e um número expressivo de membros.

domingo, 25 de março de 2012

Que se faça a vontade de Deus!

Há um texto da Bíblia que mexe com as concepções de muitos cristãos acerca de Jesus. Trata-se de uma passagem na qual os evangelhos sinóticos não escondem dos leitores o lado fraco do Messias experimentado no Getsêmani ou Jardim das Oliveiras. É o que diz o terceiro evangelho cuja autoria é atribuída ao médico Lucas, segundo a tradição cristã herdada do catolicismo:

“E, saindo, foi como de costume, para o monte das Oliveiras; e os discípulos o acompanharam. Chegando ao lugar escolhido, Jesus lhes disse: Orai, para que não entreis em tentação. Ele, por sua vez, se afastou, cerca de um tiro de pedra, e, de joelhos, orava, dizendo: Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua.” (Lucas 22.39-42; ARA)

Neste episódio, o Cristo que havia realizado prodigiosos milagres e também repreendido a Pedro quando ele se opusera ao primeiro anúncio de sua morte, chamando-o naquele momento de “Satanás” (Mt 16.23), estava então enfraquecido diante da tomada de consciência de que não escaparia da crucificação. Seu lado humano estava ali bem vivo e lutando contra o cruel propósito de auto-sacrifício para o rompimento de todas as teologias penitenciais. Eram as defesas do software do sistema operacional da natureza buscando a preservação de si mesmo.

Lembro que, num momento vergonhoso de minha vida, senti o que significa amarelar na hora agá. Em fevereiro de 2010, eu tinha uma simples operação marcada no Hospital Municipal Raul Sertã (Nova Friburgo) para a retirada de dois sinais no rosto. Meses atrás, eu havia encarado aquela longa fila do SUS, consultado-me com o dermatologista para pegar o encaminhamento pra cirurgia, submetido-me a todos os exames necessários, buscado as maneiras cabíveis para adiantar a consulta com o cirurgião e ainda contei pra muita gente que iria tirar de vez as duas pintinhas da cara. Porém, quando entrei na sala de cirurgia, no dia 23/02 daquele ano, e a enfermeira encostou em minha barriga uma chapa de metal para que eu não sentisse choque pelo uso do bisturi elétrico, pedi para o médico nem aplicar a anestesia. Levantei-me dali e voltei para casa.

Por muito menos do que Jesus eu desci da cruz naquela terça-feira! Porém, felizmente, não estava em jogo o destino da humanidade. Tão pouco era uma situação de risco de vida pois aquela operação tratava-se de um procedimento preventivo e que me traria mais conforto na hora de fazer a barba já que o meu sinal entre o queixo e o lábio inferior esquerdo costuma sangrar quando passo a gilete em cima da pinta. Mesmo assim aquela situação vexamosa pôs em evidência a fraqueza que tenho, revelou o lado frouxo de um machão que se orgulha de tomar um suco de maracujá puro ou uma limonada sem adoçar.

Aconteceu que, neste mês de março, senti-me verdadeiramente atravessando uma tentação semelhante a de Jesus em sua agonia no Getsêmani. Desde o dia em que assumi a curatela especial de minha avó materna, em 09/03/2012, compareci ao hospital onde ela se internou quase todos os dias até o seu falecimento em 21/03. Foram ao todo onze viagens entre os bairros de Grajaú e Acari onde encontra-se situado o Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, percorrendo o trajeto de ônibus e de metrô ou então tomando dois ônibus.

Seria muito fácil pra mim neste momento dar uma de bom moço ao escrever todas estas palavras de crente sofredor em meu blogue já que o leitor, na condição de um observador externo, mal sabe tudo aquilo que se passa na cabeça do ambíguo Rodrigo. E aí certamente seria um equívoco achar que suportei todo aquele sofrimento com alegria no coração como se, no fundo, não estivesse praticando a caridade muitas vezes motivado por um constrangimento moral. Algo que, inegavelmente, distancia-se bastante do amor puro descrito na epístola de 1ª Coríntios, capítulo 13:

“E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará. O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” (1Co 13.3-7; ARA)

Quando escrevia na internet que desejava lutar pela vida de minha avó, eis que, no fundo, meus sentimentos estavam bem confusos e eu apenas determinava a minha escolha em continuar assistindo-a. Nunca revelei que, durante suas crises de gemido no hospital, minhas emoções já ficavam esperando pela sua morte e pelo fim de todo aquele drama. Os pensamentos mais vis passavam pela minha mente e eu tentava inutilmente expulsar a ideia de fazer uma viagem turística dias depois que seu corpo fosse enterrado no cemitério. E aí, quando cogitava da hipótese de que vovó saísse dali, ficava internamente estafado só em imaginar por quantos dias, semanas ou meses ainda precisaria ficar indo até Acari e, ao mesmo tempo, ainda dar conta do meu trabalho, estudar, dar atenção à esposa, equilibrar as finanças, etc.

Em seu esgotamento psicológico máximo, momentos antes de ser preso pelos soldados, Jesus reportou-se ao Pai em oração. Diz a epístola anônima aos Hebreus que

“Ele, Jesus, nos dias de sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte e tendo sido ouvido, por causa da sua piedade, embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (Hb 5.7-9; ARA)

Este mesmo texto o escritor cristão norte-americano Philip Yancey desenvolve de maneira magistral relacionando ao episódio do Getsêmani:

“De algum modo, no Getsêmani Jesus lidou com aquela crise transferindo o fardo para o pai. Era a vontade de Deus que ele viera cumprir, no fim das contas, e sua oração resolveu-se nestas palavras: 'Contudo, não seja como e quero, mas sim como tu querer'” (in Igreja: “por que me importar?”)

Conforme compartilhei no texto anterior publicado aqui neste blogue, cheguei à seguinte conclusão no auge da crise ocorrida justamente na noite do dia 20 pra 21/03 (horas antes do seu falecimento). Mesmo contrariando os meus sentimentos egoístas pensei:

“Se vovó durasse mais outra semana, amém. Se ela aguentasse mais tempo no hospital, saísse milagrosamente do CTI, retornasse para a enfermaria, passasse por uma clínica de reabilitação e voltasse para casa, amém também. E, se Deus quisesse levá-la logo, o que se haveria de fazer? Em todos os casos, inclusive nas hipóteses não vislumbradas, restar-me-ia somente a tarefa de continuar prestando o meu apoio indo até aquele hospital e fazer a minha parte para glorificar unicamente ao Pai. Jamais o meu insuflado ego” (http://doutorrodrigoluz.blogspot.com.br/2012/03/e-vovo-finalmente-descansou.html?showComment=1332651402978)

Finalizei meditando que, em todos os casos, inclusive nas hipóteses não vislumbradas ou não expostas, restar-me-ia a tarefa de continuar indo todas as tardes ao hospital quando ninguém pudesse estar presente lá no meu lugar. Pois, só assim, eu estaria cumprindo a minha parte para louvor unicamente de Deus e não do meu ego.

Evidentemente que não chego nem aos pés do meu Senhor Jesus e, no fundo, reconheço o verme que sou. Porém, não me condeno por passar pelas crises. Com todas as minhas falhas e desvios de caráter, Deus permitiu que eu carregasse uma cruz cujo peso foi adequado à capacidade de suporte e, horas depois daquela luta interna, tudo foi consumado pela vontade do Soberano Rei do Universo. Pois foi o que o Messias nos ensinou em sua fraqueza para que as coisas não sejam como nosso ego quer e sim conforme a vontade do Pai Eterno.

Agora que as coisas andam calmas, não me arrependo de nada do que fiz de bom pela minha avó e graças dou a Deus porque provações como esta ensinaram a este egocêntrico blogueiro a oferecer a sua vida no altar do Pai no dia a dia. Nele aprendi a buscar forças para prosseguir pelas escorregadias trilhas da minha ambiguidade natural, contribuindo para que Cristo possa viver em mim. Pois, assim como Jesus aprendeu a obedecer, nós também precisamos aprender a ser corajosos nos momentos em que sentimos vontade de fugir dos desafios. E, ainda que venhamos a falhar, a divina graça virá em nosso favor dando-nos conforto e nova chance.

Uma boa semana a todos com novos começos e muita força de Deus!


OBS: A ilustração acima trata-se da obra Cristo no Getsêmani, uma pintura a óleo feita pelo artista alemão Heinrich Ferdinand Hofmann (1824-1911).

quinta-feira, 22 de março de 2012

E vovó finalmente descansou

Assim foi a agitada manhã do dia 21/03. Eu ainda estava deitado na cama quando minha esposa Núbia veio me chamar dizendo:

“Ligaram para a casa de sua mãe do hospital pedindo o comparecimento urgente da família!”

Não informaram qual era o motivo do aviso. Eu, porém, logo presumi que se tratava do falecimento de minha avó materna. Isto porque eu já sabia dos procedimentos adotados pelas instituições hospitalares em tais casos conforme havia me prevenido minha tia do lado paterno que é assistente social aposentada do Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ. Aí imediatamente falei para minha esposa, a sogra e a cunhada que estavam aqui em casa:

“Ela faleceu. Amor, peço que fique ao lado de minha mãe que eu vou ao hospital resolver o que tiver que ser feito”.

Vovó estava internada no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla desde 10/03 e permaneceu no CTI por cerca de sete dias. Seu quadro era bem grave e praticamente impossível de ser revertido. Quando ela entrou no nosocômio, transferida da emergência de outra unidade de saúde, o diagnóstico ainda não concluso já indicava anemia profunda e pneumonia nos dois pulmões, sendo que já havia a desconfiança de uma complicação anterior – um tumor de cólon. E isto só foi descoberto através de uma tomografia computadorizada realizada fora do hospital, numa clínica conveniada ao SUS, justamente na data anterior ao óbito.

Como presunção nunca é certeza, resolvi não demorar para chegar em Acari (bairro onde fica o hospital), tomando as precauções que lembrava e portando toda a documentação minha e dela. Tentei até ligar antes para lá, porém ninguém atendia o telefone e a chamada era sempre direcionada para o envio de fax. Passei então na clínica para pegar o resultado da tomografia e extrapolei os limites das minhas condições econômicas pegando um táxi. Afinal, se minha avó ainda estivesse viva e o hospital precisasse do laudo do exame ou de uma decisão minha que era o curador dela, não seria nada apropriado pegar ônibus e depois metrô tendo disponível alguma soma em dinheiro para gastar naquele dia.

Antes de conversar com o médico, consegui confirmar o falecimento com uma funcionária do hospital. Durante o final da manhã e boa parte do período vespertino, fiquei cuidando de todo o assunto burocrático e telefonando para pessoas da família. Depois de conseguir a declaração médica, fui reconhecer o corpo, contratar uma funerária, comparecer ao cartório de registro civil da circunscrição, fazer a certidão de óbito, pegar a guia de sepultamento e trazer este documento à funcionária do hospital que havia me indicado os serviços da Santa Casa de Ramos para finalmente poder retornar para junto de meus familiares.

Mas que luta foram todos estes dias! Quanta angústia neste mês de março!

Na noite do dia 20 para 21/03, algumas horas antes do falecimento, eu estava me sentindo exausto. Antes mesmo de vovó ir para o hospital, quando ela ainda se encontrava na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) da Tijuca, de 05 a 10 de março, eu já a visitava quase todos os dias. Cheguei a ingressar com uma ação judicial para que ela conseguisse ser internada num local onde pudesse receber transfusão de sangue. Diariamente tentava obter notícias médicas e tive meus aborrecimentos ao tentar falar com o serviço social do Ronaldo Gazolla por causa do restrito horário de entrada do acompanhante. Meu tempo andava super escasso e me impossibilitando de realizar outras coisas. Então, no auge da exaustão, indaguei no meu íntimo:

“Até quando aquela luta continuaria? Por quantas semanas ou meses eu ainda permaneceria indo e voltando daquele distante hospital? Como ficariam o meu trabalho, minhas finanças e a atenção que preciso dar à minha esposa com seus preocupantes transtornos psíquicos diante de uma situação tão instável? Seria justo deixar vovó sozinha dentro daquele frio CTI já que outras pessoas da família não estavam indo sempre lá? Será que eu me sentiria bem comigo mesmo dando as costas para o problema e cuidando só da minha vida?”

Em guerra contra os meus desejos ruins e egoístas, meditei antes de dormir pensando no episódio dos evangelhos sinóticos que fala sobre a agonia de Jesus no Getsêmani, momentos antes de sua prisão, quando ele direcionou sua angústia para Deus pela via da oração e, ao final, pediu que não fosse feita a sua própria vontade mas sim a do Pai.

Concluí então que, se vovó durasse mais outra semana, amém. Se ela aguentasse mais tempo no hospital, saísse milagrosamente do CTI, retornasse para a enfermaria, passasse por uma clínica de reabilitação e voltasse para casa, amém também. E, se Deus quisesse levá-la logo, o que se haveria de fazer? Em todos os casos, inclusive nas hipóteses não vislumbradas, restar-me-ia somente a tarefa de continuar prestando o meu apoio indo até aquele hospital e fazer a minha parte para glorificar unicamente ao Pai. Jamais o meu insuflado ego.

Sem que a dor de minha avó se prolongasse pelas próximas semanas desta estação outonal, Deus a levou em seus braços por volta das 8:30 desta quarta-feira (ontem). Segundo contou-me verbalmente o médico do CTI Dr. Joel Freitas de Castro, ela teria dormido bem à noite e, pela manhã, sofreu uma parada respiratória sem a equipe de plantão ter alcançado algum êxito quanto às tentativas de reanimação. E, assim, finalmente chegou o seu momento de encontrar-se com a Suprema Realidade, a única certeza que temos nesta vida.

Imagino que, quando minha avó passou para o além, sua consciência deve ter notado a ausência daqueles terríveis dores que tanto a faziam gemer e gritar na cama do hospital. Talvez ela tenha se dado conta da presença de uma paz acolhedora e despertou no Paraíso. Seu sofrimento físico nesta vida tinha finalmente terminado. Agora é só descansar e esperar o grande evento simbólico da Bíblia chamado de ressurreição.

Fizemos o enterro entre o final da manhã e o começo da tarde de hoje no cemitério São João Batista, situado em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Contamos com o apoio financeiro de uma prima que arcou com todas as despesas funerais e cedeu o jazigo perpétuo da família Albuquerque. Contamos também com a presença de vizinhos da vila onde vovó morava aqui no Grajaú e de uma ex-namorada de meu irmão Thiago, além de um outro primo acompanhado por sua gentil esposa. E dali fui com Núbia almoçar no bairro vizinho de Copacabana (no outro lado do morro do cemitério) onde preferi alimentar-me como se estivesse celebrando um momento especial sem nutrir dentro de mim sentimentos de culpa. Tomei uma atitude semelhante a do rei Davi depois dos sete dias em que o monarca de Israel passou de luto pelo adoecimento do seu primeiro filho com Bete Seba até a morte do bebê (2Sm 12.15-24). E fui também consolar Núbia dando-lhe um petit gateau com sorvete de sobremesa já que ela se entristecera bastante pela partida da vovó.

Em menos de seis meses, perdi minhas duas avós. Primeiro foi a mãe do papai falecida em 27/09/2011, com 89 anos, na cidade de Mangaratiba. Neste 21/03, porém, foi a vez de minha avó materna aos 76 anos. Ambas sofreram de parada respiratória em seus últimos instantes e estavam hospitalizadas. Em vida, brigaram bastante quando eu ainda era criança. Talvez por motivos de ciúmes em relação ao neto. Porém, nos últimos anos, as duas velhinhas já estavam se dando relativamente bem, a ponto da mãe do papai ter ajudado bastante a avó materna no tratamento dos seus problemas de saúde. Agora elas estão descansando nas mãos de Deus e encontrando um acolhimento incomparável que, nesta terra, não fomos capazes de lhes proporcionar.


OBS: Marisa de Albuquerque (Rio de Janeiro, 16 de junho de 1935 - 21 de março de 2012) era filha única de Guilherme de Albuquerque e de Maria Nazareth de Albuquerque. Casou-se com o grego de origem egípcia Georges Nicholas Phanardzis, em 07 de janeiro de 1956, do qual veio posteriormente a se desquitar em 1965 e, finalmente, divorciar-se com a aprovação da Lei do Divórcio. Aposentou-se proporcionalmente como agente pública estadual da área de saúde (serviço que o governo não prestou satisfatoriamente nos momentos que ela mais necessitava) e deixou dois filhos maiores: minha mãe Myrian Phanardzis e meu tio Luiz Augusto Phanardzis, o qual vive nos Estados Unidos da América desde 1986. Quanto aos netos, somos cinco: eu, meus irmãos Thiago e Marina, mais os dois primos norte-americanos Matt e Christian. Já doente, após ter quebrado o fêmur direito em abril de 2010, vovó recebeu a graça de ver o primeiro bisneto. Trata-se do menino Henrique, filho de Marina e que tem atualmente um ano e nove meses.

sábado, 17 de março de 2012

Querendo compreender Deus

Nestes dias, enquanto estive acompanhando minha avó na clínica médica do Hospital Municipal Ronaldo Gazolla (Rio de Janeiro), antes de sua transferência para o CTI, encontrei uma vizinha dela com a filha na cantina. Ambas estavam visitando uma outra pessoa também internada lá cuja saúde também não parecia nada animadora. Ali conversamos por uns minutos e ela compartilhou comigo sua decepção em relação a Deus.

“Não consigo compreender Deus!”, disse ela. E prosseguiu em seus questionamentos indagando “como Deus permite alguém chegar a um torturante estado terminal de vida ao invés de levar a pessoa logo de uma vez sem maiores sofrimentos?”

Acho que, nestas horas, qualquer tentativa de explicar doutrinariamente o sofrimento alheio torna-se uma atitude inadequada. Afirmar que a dor do outro é um “carma”, um “tratamento divino para o pecado”, ou ainda uma “oportunidade de conversão a Cristo” seria um tremendo desrespeito, um falível julgamento por meio de uma argumentação generalizadora, reducionista e que reprime o direito de reflexão de cada ser humano concedido pelo Criador. Aí talvez a resposta mais honesta nestas situações seria o ouvinte concordar que também é incapaz de entender na totalidade aquilo que se passa.

Ora, como pode o homem compreender o Deus que enche todo o Universo sem limites de espaço e de tempo?

Onde está o “céu” quando muitos pacientes em seus leitos hospitalares vivem um tormentoso inferno ainda na Terra sem nem ao menos saberem quando que tudo aquilo terminará?

Até que ponto o CTI de um hospital não tem um pouco de uma sala de tortura policial da época da ditadura militar e de inúmeros regimes totalitaristas da história recente?

Creio que, na nossa impossibilidade de compreendermos o Eterno, devemos ao menos prestar a atenção nas coisas visíveis e na obra prima de sua criação (o homem), o qual é a “imagem” do Deus invisível, conforme nos ensina o verso 27 do primeiro capítulo de Gênesis. E aí não podemos também ignorar a visão do panteísmo quando os orientais dizem que “tudo é Deus”, considerando que o Criador utiliza corpos e elementos materiais para explicar à humanidade as coisas mais evidentes da existência.

Sem dúvida que é surpreendente vermos como o Onipresente e o Onipotente deixa a sua glória para se manifestar a nós através das situações mais simples, despindo-se também da sua onisciência. É o que podemos compreender tanto nas tradições bíblicas sobre a criação, quando Deus vinha visitar o homem no jardim (Gn 3.8) como na crença cristã da encarnação do Verbo divino. Ou seja, são dois acontecimentos que nos transmitem a ideia do desejo divino de desenvolver uma intimidade conosco.

Em sua epístola aos filipenses, Paulo escreveu sobre a kenose de Cristo (Fp 2.6-11). O texto nos diz que o Messias entregou o seu estado original que o igualava a Deus e entrou humildemente no mundo, na semelhança com os homens, tornando-se um servo sofredor e foi obediente até à humilhante crucificação. Logo, podemos dizer que o filho do homem manifesta o Deus que também escolhe ser terrivelmente torturado e experimentar a vergonhosa morte que, na visão da época, seria uma punição pelo pecado como se lê em alguns livros apócrifos tipo Henoc, 4 Esdras, 2 Baruc e Sabedoria de Salomão (este existe no cânon católico).

“Deus criou o homem para a incorruptibilidade
e o fez imagem de sua própria natureza;
foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo:
experimenta-na aqueles que lhe pertencem.”
(Sb 2.23-24; BJ)

Embora o autor possa ter se referido à morte em seu duplo aspecto (espiritual e física), penso que sua visão de mundo dualista tornou-se segregadora ao dividir a existência entre bem e mal, vida e morte, trevas e luz, um Deus santo e os homens pecadores. Pois é certo que a morte física sempre existiu, mas o homem só tomou consciência dela quando se tornou um dualista, passando criar um conflito dramático que antes não havia, inventando para o si o mal e o fim existencial.

Mas é interessante perceber que a ideia sobre a entrada de Cristo no mundo foi justamente para romper a separação que a sociedade antes impunha a ela mesma. Já que todos sofremos e morremos, o messiado de Jesus apresentou-se para o mesmo fim, mostrando ser tudo bem natural. Aliás, até as piores dores ele experimentou na cruz igualando-se a um enfermo em seu estado terminal com dieta zero no CTI, achando-se sedento por molhar a boca com água, mas recebendo soro (ou aquele vinagre dado pelos soldados romanos) para manter-se vivo por mais tempo. Com a diferença, é claro, que, num hospital, os enfermeiros estão ali para diminuir o sofrimento do paciente.

Verdade é que jamais compreendemos a infinita extensão tanto do sofrimento quanto da alegria. Tão pouco conseguimos saber qual o motivo desta alternância entre os dois polos, coisa que Deus não respondeu a Jó quando lhe apareceu no redomoinho (capítulos 38 e seguintes). Porém, acho satisfatório e consolador saber que o amor divino é imenso nos momentos mais difíceis sendo que Jesus, nas palavras de Helmut Richard Niebuhr (1894-1962), possibilita-nos “reconstruir nossa fé”. Ou, como conclui Philip Yancey comentando sobre este valioso teólogo norte-americano:

“Podemos confiar em Deus porque confiamos em Jesus. Se duvidarmos de Deus, ou se o julgamos incompreensível, o melhor remédio é olharmos fixamente para Jesus, a Pedra de Roseta da fé”.

Sabemos o quanto é duro estar num CTI, mas será que a cruz dos romanos suportada por Jesus não pode nos dizer algo?

E o altruísmo daqueles que, depois dele, também tomaram parte nesta cruz e foram injustamente presos, espancados, torturados, exilados e mortos? Por acaso os mártires recentes como Martin Luther King, Nelson Mandela, Benigno Aquino, Aleksandr Isayevich Solzhenitsyn, Václav Havel, Chico Mendes e tantos outros não apresentaram para nós em repetidos exemplos a opção de Deus pelo sofrimento como parte integrante da exisência humana?

É dentro desta visão que Jesus em seu messiado na Terra nos faz conhecer o Pai em sua pessoa, tornando-se o caminho que conduz ao Pai. Sem prestarmos a atenção no limitado filho do homem, como poderemos compreender o grandioso Deus invisível?

Compartilho a seguir este belíssimo vídeo encontrado no Youtube com uma música belíssima (Bem mais que tudo) na voz deliciosa de Aline Barros e que nos fala bem forte do amor de Deus na histórica que conhecemos acerca de Jesus:



Uma boa semana a todos!

quinta-feira, 15 de março de 2012

Diante da cruz

Tenho identificado-me bastante com a cruz nestes últimos dias. Não por causa deste período de Quaresma, mas sim pelo momento que estou vivendo em minha vida, presenciando o sofrimento de minha avó materna, poucos meses após perder a mãe do papai.

http://doutorrodrigoluz.blogspot.com/2011/10/adeus-vovo.html

Conforme escrevi nas duas últimas postagens neste blogue e nos comentários às mesmas, minha avó Marisa de Albuquerque não anda nada bem de saúde. Ela foi internada no hospital e o seu estado físico-emocional só vem piorando a cada dia.

A luta toda começou em 08/04/2010, quando vovó caiu e quebrou o fêmur, tendo sido internada no Hospital do Andaraí. Lá ela ficou por um bom tempo, submeteu-se a cirurgia, foi precocemente liberada pelos médicos e retornou para casa sem jamais ter se recuperado totalmente.

http://doutorrodrigoluz.blogspot.com/2010/04/tornando-escrever-e-comentarios-sobre-o.html

Graças a umas sessões de fisioterapia, ela melhorou por uns tempos, chegando a caminhar apoiada num andador e transportada na cadeira de rodas para locais mais distantes. Porém, de uns meses pra cá, sua saúde foi declinando aceleradamente. Em meados de dezembro de 2011, quando vim morar aqui no Rio de Janeiro, senti que ela já se encontrava bem caidinha e a cada semana piorava, como pude constatar sempre que fazia minhas visitas na casa de minha mãe.

Não deixamos de levá-la ao seu médico homeopata, mas de nada adiantou. No mês de fevereiro e começo de março, ficamos espantados com uma piora que a cada dia foi se apresentando até o ponto de minha mãe já não conseguir mais alimentá-la dentro de casa e ninguém mais poder lhe dar banho. Em 04/03/2012, data do meu aniversário de casamento com Núbia, vovó já não estava nem mais saindo da cama. Tentamos sentá-la para que comesse um pedaço do bolo de chocolate, porém, ela mal conseguia ingerir o alimento. Foi dificílimo fazer com que ela sentasse naquele sofrido momento.

http://doutorrodrigoluz.blogspot.com/2012/03/minha-nova-colaboradora-no-blogue.html

Foi aí que eu e minha mãe decidimos interná-la num hospital. Como não foi possível conseguir vaga no Instituto Municipal Geriatria e Gerontologia Miguel Pedro, um hospital especializado em idosos ao lado do Pedro Ernesto, em Vila Isabel, não restou outra alternativa senão acionarmos o SAMU em 05/03. Ligamos para o 192 e vovó foi levada pra Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) da Tijuca, perto da Praça Sans Peña. Ali ela ficou de dieta zero tomando soro na veia enquanto aguardava vaga num hospital da rede pública para receber a indispensável hemotransfusão. Além desta desculpa sobre carência de vagas, a UPA alegava falta de disponibilidade de ambulância.

http://doutorrodrigoluz.blogspot.com/2012/03/vulnerabilidade-dos-pacientes.html

Assim passamos a semana anterior vivendo debaixo desta expectativa até que resolvi ingressar com uma ação na Justiça afim de que vovó fosse transferida para algum hospital adequado. Peguei um laudo médico mais os documentos necessários e fui até o atendimento da Defensoria Pública no plantão judiciário noturno de 09/03 (noite de sexta-feira), iniciando o Shabat na luta pelo direito à vida dela. E, dentro de pouco mais de uma hora, o magistrado já havia concedido a liminar assim determinando:

“(...) defiro a antecipação dos efeitos da tutela pleiteada para DETERMINAR aos réus que PROMOVAM A IMEDIATA REMOÇÃO da parte autora em UTI móvel avançada, para internação em Hospital com Suporte para Serviço de Hemotransfusão em um dos Hospitais da Rede Pública Municipal ou Estadual, adequado para a sua recuperação.. Inexistindo vagas na rede pública de saúde DETERMINO que a parte autora seja internada em qualquer hospital da rede privada, arcando os réus com todos os custos do tratamento, bem como cirurgias, exames e outros procedimentos necessários, sob pena de multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Intime-se à Central de Vagas. Após, à livre distribuição. Rio de Janeiro, 09 de março de 2012. - 20:00 h.” (decisão interlocutória proferida pelo MM. Juiz de Direito Dr. GUSTAVO HENRIQUE NASCIMENTO SILVA nos autos do processo tombado sob n.º 0076799-62.2012.8.19.0001)

No sábado, durante o horário de visita das 15 horas, na UPA, levei um grande susto. Ao entrar na emergência, o leito onde vovó ficava estava vazio. Procurei saber o que tinha acontecido e a assistente social informou-me que ela havia sido levada para o Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, no distante bairro de Acari. Então, imediatamente peguei o metrô e fui até lá a sua procura, conseguindo ingressar na unidade de saúde somente após autorização da assistente social para aquele dia. Na ocasião, constatei ainda que seus dados nem tinham sido trazidos durante a remoção da UPA pra lá.

Desde sábado (10/03) até ontem (14), eu a visitei no leito “B” da enfermaria 529 do referido hospital e foram muitas as dores de cabeça por causa dos absurdos procedimentos impostos pela direção hospitalar quanto ao horário de ingresso do acompanhante, restrição de visitas na internação da clínica médica a apenas três vezes na semana, demora para conseguir novo contato com o serviço social e recusa do diretor em me atender pessoalmente quando resolvi reclamar das dificuldades no dia 12. Ainda assim, consegui que a assistente social flexibilizasse minha entrada como acompanhante fora dos dois horários estabelecidos a partir do fim da tarde desta última segunda.

Houve momentos neste conflito em que, durante a briga, saí até do foco que é zelar pela saúde de minha avó. Confesso que, por razões internas e externas, não foi nada fácil cumprir o meu propósito de ficar ao seu lado. Fiz daquela oportunidade de acompanhamento visitas diárias de algumas horas para ao menos estar com ela por um tempinho no hospital e me informar com os médicos acerca de seu estado de saúde. Só que já não era mais possível conversar normalmente com vovó, restando-me a angústia de olhar pra uma pessoa gemendo de dor na minha frente sem nada poder fazer.

Desde o último dia de minha avó em casa, ela dormia a maior parte do tempo e quase não respondia às conversas. Se antes suas queixas e cansativas perguntas aborreciam os ocupantes da sua própria casa (exceto o bisneto), eis que, a partir daí, qualquer palavra que saísse de sua boca foi se tornando desejada. É que, no começo do mês parece ter caído a ficha de que agora estavam perdendo a matriarca da família.

Lembro que passei por situação parecida e muito mais dolorosa com o meu avô paterno, falecido há quase sete anos. Em meados de 2000, ele se tornou inconsciente, com confusão mental e perda de memória. Mais lentamente do que minha avó materna, ele foi entrando num estado vegetativo irreversível até ficar todo entubado e inchado no Hospital Militar de Juiz de Fora (MG). E esta foi minha última imagem dele até uns dois ou três dias antes de sua partida em 30/05/2005.

A imagem que tive ontem de minha avó, ao deixar a enfermaria, não foi muito diferente. Ela estava com uma invasiva sonda nasogástrica para drenar uma hemorragia no aparelho digestivo e outra sonda por causa da urina. Além do quadro de pneumonia e anemia profunda, ela ainda está com constipação intestinal, sendo desaconselhável diagnosticá-la através de exames como endoscopia ou colonoscopia porque sua debilidade física não permite suportar nem a anestesia. E ainda que se descubra um tumor qualquer no intestino ou no estômago, operá-la também não dá. Logo, o médico não pôde me dar boas esperanças. O que o hospital vai fazer é continuar monitorando-a e procurando manter sua vida por escassas e preciosas bolsas de sangue.

Ao assistir minha avó minguando diariamente, como não me identificar com a cruz de Cristo e que também é o sofrimento de todos nós? E também como não me ver na pessoa de cada discípulo que abandonou o Mestre quando ele foi preso?

Quando pessoas entram numa fase terminal de vida, torna-se muito comum os próprios parentes evitarem fazer visitas. Principalmente nos CTIs. É como se ninguém desejasse se confrontar com a morte, com a mais nua realidade realidade de todo o planeta, o momento do nosso encontro unilateralmente marcado sem que saibamos qual é a data agendada.

Mas como iremos julgar as pessoas por não conseguirem ficar presentes nos momentos finais de um paciente se o próprio Jesus perdoou seus discípulos por se ausentarem quando ele foi preso?

A bem da verdade, todos somos traidores do nosso próximo. Não é preciso ser um Judas e nem negar confessionalmente a exemplo de Pedro. Homens como o apóstolo João, personagem dos evangelhos que teria seguido Jesus até à cruz, também cometem suas fraquezas. Segundo Marcos, João foi um dos três que não aguentaram e dormiram durante a agonizante oração no Getsêmani (Mc 14.33). E, ainda que o discípulo amado tivesse permanecido ao pé da cruz com algumas mulheres, conta o quarto evangelho que ele levou Maria embora do Gólgata para casa (Jo 19.27) .

Suponho que os momentos finais de Jesus teriam sido bem solitários, sem João e sem as discípulas por perto, mas tão somente com os sádicos soldados romanos que tentaram prolongar o seu sofrimento dando-lhe vinagre para beber numa esponja ao invés de água. E, igualmente, as situações são repetidas hoje nos CTIs quando pacientes entubados e com dieta zero anseiam molhar a boca seca com água enquanto têm suas horas prolongadas pelo soro e pela medicação na veia, carregando uma cruz não poucas vezes bem mais pesada do que aquela carregada pelo Salvador.

Como um segundo parto, todos um dia iremos nos confrontar com a morte, ultrapassando a fronteira do mundo conhecido. Por mais que a recusemos (e acho que nem devemos desejá-la), é necessário admiti-la e até mesmo fazermos uns planejamentos acerca desta ocasião pensando nos outros. Principalmente se a encararmos como um fenômeno bem natural e integrante do ciclo da existência de todos os seres, afim de cedermos espaço a uma geração que nos sucederá no tempo.

Por não acreditar mais no inferno e nem num céu literal, imagino a morte mesmo como um descanso. Para um paciente terminal que está sofrendo com fortes dores no corpo e na mente, inconformado com o seu estado de saúde, eis que o momento oportuno deve chegar como uma doce paz, incomparável com qualquer sedativo do hospital. Como se, repentinamente, a pessoa descobrisse já não sentir mais nada de dor e que, como se lê nas palavras de Jesus, está tudo “consumado”.

Não quero concluir este artigo desejando que a morte venha depressa pra minha avó. Desejo a sua cura e completa recuperação. E quero que seja feita a vontade de Deus em sua vida, estando em paz com o Eterno sobre todos estes acontecimentos por mais dolorosos que estejam sendo pra ela e também pra família.

Bendito seja Deus! E muito obrigado, Senhor, pela vida que nos dá.


OBS: A foto acima, na qual constam minha avó na cadeira de rodas junto com minha irmã Marina, foi tirada durante o amigo oculto do Natal de 2011.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Conflitos de um salmista atribulado

"Penso nos dias de outrora,
trago à lembrança os anos de passados tempos.
De noite indago o meu íntimo,
e o meu espírito perscruta.
Rejeitará o Senhor para sempre?
Acaso não torna a ser propício?
Cessou perpetuamente a sua graça?
Caducou a sua promessa para todas as gerações?
Esqueceu-se Deus de ser benigno?
Ou, na sua ira, terá ele reprimido as suas misericórdias?
Então, disse eu: isto é a minha aflição;
mudou-se a destra do Altíssimo."
(Salmo 77.5-10; tradução ARA)

Em algum momento da monarquia davídica, ou quem sabe até no exílio babilônico, parece ter vivido o ambíguo Asafe, a quem é atribuída a autoria de doze salmos da Bíblia.

Como todo israelita, Asafe foi instruído nas escrituras da Torá. Aprendeu sobre a história de seu povo, ouvindo desde criança a versão milagrosa de como os seus antepassados teriam sido libertados da escravidão egípcia. E também deve ter recebido advertências de seus professores acerca das prevaricações daquela geração da época de Moisés, tida como ingrata, infiel, inconstante e de caráter dúbio.

Todavia, nem Asafe ou os seus ascendentes mais próximos presenciaram os mesmos eventos fenomenais registrados nos livros de Êxodo e de Josué. Jamais ele viu o Mar Vermelho se abrindo, nem a água saindo da rocha ou mesmo teria provado do maná. Ao invés de todas estas coisas, ele foi testemunha das dores humanas, do desespero, das tragédias, derrotas militares e enfermidades, dando a impressão de que o ministério de Moisés foi mais mitológico do que real.

Não muito diferente de Asafe, assim vejo hoje os cristãos do presente. Não conhecemos Jesus andando pelas cidades da Galileia e nem assistimos algum de seus milagres. As curas dos cegos, paralíticos, surdos, mudos, leprosos e lunáticos foram relatadas a nós através das penas dos evangelistas em livros conservados por séculos pela tradição eclesiástica sem qualquer prova acerca dos eventos narrados. E, com isto, aquele que é tido para as igrejas como o Cristo, o sucessor de Moisés e a encarnação da divindade, também vira um mito bem distante nos nossos momentos difíceis.

Hoje muitos neo-pentecostais tentam vender a imagem de Jesus como sendo uma entidade viva que ainda opera milagres, Na indústria da fé, prega-se constantemente que pessoas têm sido curadas de câncer e AIDS. Outras são "libertas" de supostos espíritos demoníacos (geralmente associados aos orixás das religiões afro-brasileiras para atender ao interesse proselitista dos neo-pentecostais). E, neste contexto, milhões são induzidos a acreditar que estão manifestando possíveis dons da época apostólica, "falando em outras línguas", tendo visões de anjos e se esquecendo que tudo muitas das vezes não passa de uma hipnose coletiva.

O certo é que, diante da existência de narrativas religiosas que falam em milagres, o ser humano vai ser sempre tentado a desejar uma repetição de acontecimentos que ele acredita ter ocorrido no passado afim de adoçar com ilusões a sua dura realidade. Ao invés de atentar para uma significação mais profunda do mito, as pessoas preferem ficar na espera de soluções rápidas e imediatas, desejando que as coisas se cumpram como na música O chão vai tremer do grupo gospel Toque No Altar:

"O chão vai tremer!
O Céu vai se abrir!
Os anjos de Deus vão descer e subir"

Mas não é esta a realidade! A verdade é que a alma humana vive farta de males e todos nos confrontamos com a morte. Somos consumidos pela aflição e, nestas horas, o crente sofre a inevitável dor de ser rejeitado até que se ache só, aterrorizado e sufocado. Nenhum maná cai do céu e o milagre não mais se repete.

O que fazer?! Vamos ficar nos lembrando esquizofrenicamente das memórias de um passado lendário, repetindo para nós mesmos que, na hora H, o chão vai tremer e o céu vai se abrir? Ou iremos encarar de vez a nossa situação, desconstruindo corajosamente a imagem ilusória que criamos acerca da divindade em nossas mentes para encontrarmos o Deus vivo caindo na real?

Em seu Salmo 77, o poeta parece não desistir de buscar a Deus no dia de sua angústia e, curiosamente, nem se consola com os acontecimentos relativos às origens de seu povo (verso 2). Antes, em sua meditação, ele considera que foram apagados os rastros das pegadas de seus antepassados quando atravessaram o Mar Vermelho e o Jordão como se vê no versículo 19, o trecho que considero enigmático do poema bíblico em comento:

"Pelo mar foi o teu caminho;
as tuas veredas, pelas grandes águas;
e não se descobrem os teus vestígios"
(ARA)

Já uma outra tradução, a Bíblia de Jerusalém, diz assim:

"Teu caminho passava pelo mar,
tua senda pelas águas torrenciais,
e ninguém reconheceu tuas pegadas."
(BJ)

Para a surpresa dos leitores, eis que, nos dias de Moisés, aquela geração má e adúltera não foi capaz de reconhecer o Deus que tinha salvado o povo da escravidão do faraó. De nada teria adiantado a ocorrência de prodígios como o mar se abrir e a água escorrer da pedra dura e seca. Poucos tiveram fé e muitos retornaram ao Egito em seus corações.

Mas como seria vazia a nossa existência sem o drama do sofrimento? Como que rapidamente nos esqueceríamos de coisas tão importantes da vida se tudo fosse um mar de rosas? Será que o comodismo nos faria bem? Pode a bonança do mar instruir um aprendiz de navegante?

Tenho pra mim que religiões como as seitas neo-pentecostais, que ensinam pessoas a fugirem do sofrimento fazem um grande mal ao indivíduo. A ideia que tais "pastores" passam sobre um Deus que sempre cura torna-se inegavelmente injusta e inverídica. Se a pessoa enferma não é curada, eles dizem que é preciso orar mais, fazer jejum duas vezes na semana, subir no monte, adequar-se moralmente nas regras da seita, dar dízimos e ofertas desafiadoras. E, se ainda assim nada ocorrer, a resposta final será: "é porque você não teve fé, meu irmão".

No momento, tenho buscado acompanhar durante umas poucas horas do dia o sofrimento de minha avó materna internada no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari, no Rio de Janeiro. E confesso que não está nada fácil a situação dela. Desde sua internação na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) da Tijuca (05/03) até agora está faltando fechar o diagnóstico e já não é mais possível conversar direito com ela.

Tendo sido ela fiel por anos à IURD, agora vovó está lá sem o apoio fraterno desta seita, tornando-se um anti-marketing do Gézuiz curandeiro dos (in)vangélicos. Membros da igreja chegaram a me dar aquela indireta de que a situação de doença dela teria sido porque minha avó, nos últimos anos, trocou a IURD do bispo Pedir Mais Cedo pela IMPD do "apóstolo" Valdomiro. E, na IMPD, certamente querem mais é abafar o caso de que assumirem que uma irmã dizimista fiel está morrendo num hospital.

Nestas horas, restam só mesmo pessoas verdadeiramente próximas e gente de alma boa sem nenhuma vinculação religiosa-institucional que, eventualmente, oferece algum apoio. Tem até uma mulher da atual igreja dela que a ajudou bastante, doando parte de seu tempo para auxiliar a família a dar banho nela quando vovó ainda estava em casa. Mas, na verdade, os pastores dessas seitas não estão nem aí. O negócio deles é tirar a grana das pessoas e alimentar ilusões que, em momentos como este, aumentam mais ainda o sofrimento do doente.

Atualmente, já sem poder conversar com minha avó visto que ela não está mais lúcida, ouço de sua boca tão somente gemidos de dor e palavras sobre morte (não sei se ela quer morrer ou se sente medo da morte). Cheguei a ouvi-la pedir socorro a Jesus e também chama pelos seus falecidos pais. Porém, o Gézuiz das seitas neo-pentecostais nada faz nestas horas. Apenas pede o dízimo das pessoas e as ameaça com um inferno abrasador...

Onde estão os tempos de milagres? Será que eles realmente existem?!

Aí que está. Penso que os milagres sempre existiram e não deixarão de existir. Só que eles fazem parte da nossa compreensão mítica e compõem narrativas bíblicas que nos levam a um despertamento da espiritualidade interior. Não para aguardarmos uma repetição de acontecimentos dentro deste mundo físico, mas sim para mergulharmos no auto-conhecimento. E aí, nestas horas, nada mais libertador para o ser humano do que o confronto com a realidade tal como fez Jesus (não o Gézuiz) em suas últimas palavras na cruz quando recitou o Salmo 22 em aramaico às três da tarde e talvez nem já estivesse tão consciente: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" (ver Mc 15.34).

Assim como deram vinagre a Jesus numa esponja para prolongar o seu sofrimento afim de zombarem se Elias viria mesmo salvá-lo, não nego que hoje vivo um conflito ético em relação a minha avó. Consegui que a ambulância da SAMU a tirasse de casa no dia 05/03, sendo que a mandaram pra UPA. Depois, como a UPA não podia fazer transfusão de sangue, entrei com um processo no dia 09, durante o plantão judiciário, para que ela fosse transferida para um hospital, o que veio a ocorrer neste sábado passado (10). E assim ela tem permanecido num lugar bem distante de sua casa, passando a maior parte do tempo sem acompanhantes, podendo receber visitas só três vezes na semana e o hospital ainda cria as mais absurdas restrições de horário para o acompanhante da pessoa idosa poder entrar.

Será que eu também estaria ajudando a dar "vinagre" a ela para prolongar mais ainda seu sofrimento?

De qualquer modo, não voltaria atrás no que fiz pois meu entendimento é que devemos buscar a vida e não a morte, mas sei que Deus me perdoa porque não sei o que faço. E aí minha oração pela vovó é que se faça a vontade de Deus. Não quero enganar a mim mesmo com expectativas em falsos milagres e muito menos pregar mentiras com uso desaconselhável da Bíblia a algum paciente que sofre. Peço que ocorra o melhor para ela neste momento e acho que nenhum de nós sabemos o que é melhor, sendo que as esponjas de vinagre simplesmente ocorrem e contribuem para a história da vida de cada um.

"Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência" (Deuteronômio 30.19; ARA)

Que Deus tenha misericórdia de nós todos e nos dê uma boa semana!

sexta-feira, 9 de março de 2012

A vulnerabilidade dos pacientes internados nas UPAs do Rio de Janeiro



Embora as unidades de pronto-atendimento (UPA) criadas pelo governo Sérgio Cabral sejam elogiadas como se funcionassem satisfatoriamente bem, eis que a realidade dos fatos é bem diferente do marketing oficial financiado com o dinheiro público.

Que o atendimento melhorou para casos simples tipo uma crise de vesícula, uma gripe ou um ferimento leve, certamente não podemos negar. Porém, se o problema for grave e surge a necessidade de transferir com urgência o paciente para algum hospital devidamente estruturado, aí a UPA não passa de uma ilusão eleitoreira.

Através de uma central de regulação, as UPAs e os hospitais encontram-se articulados no Rio de Janeiro. Tudo poderia funcionar muito bem, caso o sistema correspondesse. Pois, sempre que há a necessidade de remoção de um paciente para algum hospital, esbarra-se no crônico problema de indisponibilidade dos leitos hospitalares e na falta de ambulâncias.

Nesta segunda-feira (05/03/2012), minha avó materna, Sra. Marisa de Albuquerque, precisou ser internada na UPA da Tijuca, situada na Praça Sans Peña, Zona Norte do Rio. Ela chegou à unidade apresentando um quadro preocupante de anemia profunda e pneumonia nos dois pulmões, além de constipação intestinal e duas bolas (caroços?) estranhas na cabeça. Segundo os médicos de lá, vovó está precisando urgente de uma transfusão de sangue.

Contudo, um procedimento como a transfusão de sangue só pode ser feito em outra unidade de saúde melhor estruturada do que as UPAs a exemplo do Hospital Pedro Ernesto, situado no bairro vizinho de Vila Isabel. Só que aí a remoção do paciente fica na dependência de haver vaga disponível no nosocômio de destino, bem como de haver ambulância para poder conduzir a pessoa enferma.

Ocorre que, assim como a minha avó materna, também existem inúmeros outros idosos neste ente federativo vivendo situações semelhantes. Muitos deles até morrem na própria emergência da UPA por falta de tratamento adequado, o que é algo inaceitável num estado riquíssimo como o Rio de Janeiro que nada nos royalties do petróleo. Só que mesmo com tanto dinheiro, nosso governo oferece serviços de saúde de péssima qualidade com hospitais caindo aos pedaços.

Diante de casos como este, indago até quando o povo vai ficar votando em políticos como Sérgio Cabral, Eduardo Paes e Garotinho? Pois enquanto o dinheiro público está sendo muito mal gasto com a caríssima reforma do Maracanã, que custa centenas de milhões de reais, a ambulância da UPA da Tijuca encontra-se quebrada e estacionada dentro daquela unidade.

Ora, falando em Copa de 2014 e também nos jogos olímpicos de 2016, pergunto onde ficará a máscara dos políticos que governam o Rio de Janeiro se turistas estrangeiros passarem mal, morrerem pelos corredores de algum hospital público e isto vier a ser noticiado no exterior?

Sei que, no momento, tem muitos podres sendo colocados por debaixo dos panos. Mas quando passar 2014, a oposição do novo Congresso eleito certamente vai pedir a instauração de uma CPI da Copa. E motivos para escândalos não vão faltar!

Meus amigos, acho lamentável a situação daquela que é chamada de Cidade Maravilhosa. Espero, entretanto, que algum dia a nossa sociedade fique consciente de que sua saúde não vai nada bem e se mobilize em prol desta relevante causa. Não apenas aprendendo a votar, mas também fiscalizando o ano inteiro os atos de seus governantes eleitos.


OBS: A foto acima foi extraída do site da Fiocruz na internet, em http://www.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/83/reportagens/

quinta-feira, 8 de março de 2012

A acertada decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul em tirar os crucifixos de seus prédios públicos

Dou meu apoio à decisão do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em retirar crucifixos e demais símbolos religiosos dos espaços públicos dos prédios da Justiça estadual gaúcha.

O acórdão do Tribunal gaúcho, prolatado, por unanimidade, nesta terça-feira (06/03/2012), foi uma resposta ao requerimento formulado pela ONG Liga Brasileira de Lésbicas. Os desembargadores consideraram que a presença destes objetos nos fóruns e na sede do Judiciário pode ir contra princípios constitucionais de um estado laico, que não sofre influência de igrejas. O magistrado Cláudio Baldino Maciel, relator do processo, defendeu, em seu voto, que julgamentos feitos em uma sala de tribunal "sob um expressivo símbolo de uma igreja ou de sua doutrina" não parece a melhor forma de mostrar "um Estado-juiz equidistante dos valores em conflito".

Na oportunidade, o presidente da OAB do Rio de Janeiro Wadih Damous também criticou o fato de o STF ter um crucifixo exibido em seu plenário por considerar que o símbolo "deixa de expressar a separação entre igreja e Estado que é um princípio republicano básico", o que seria, a seu ver, "inconstitucional".

Não demorou muito para que surgissem críticas reacionárias ao TJ-RS e ao presidente da OAB fluminense argumentando a existência de coisas muito mais importantes para serem discutidas pelos operadores do Direito. Já outros têm sustentado que o laicismo estatal não significa "um Estado sem fé" ou que não impediria o uso de símbolos religiosos nas dependências dos prédios públicos. Porém, também existem muitas pessoas favoráveis à retirada dos crucifixos dos prédios de todos os Poderes, com base no que diz o inciso I do artigo 19 da nossa Constituição. E o raciocínio valeria tanto para o Judiciário quanto para o Legislativo e o Executivo.

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Mas, afinal, existe ou não algo de errado o Judiciário brasileiro ter crucifixos em sua dependências?

Entendo primeiramente que, apesar de existirem outras questões mais relevantes, isto não deve ser impedimento para opinarmos acerca do assunto, sendo que a preocupação ideológica quanto à teocratização do Brasil é tema de enorme relevância. Algo que está entrando na pauta devido à presença cada vez maior de políticos da bancada evangélica tentando manipular decisões em favor de seus interesses institucionais, proselitistas e de controle da mídia.

Por sua vez, jamais poderemos nos esquecer que, mesmo na história republicana, a Igreja Católica sempre tentou influenciar as decisões políticas com seus interesses ideológicos afim de manter o povo brasileiro debaixo das mais absurdas repressões morais. Lembremos, pois, como foi demorada a aprovação da lei do divórcio no Brasil.

Assim, penso que, numa sala coletiva de audiências, fica complicado haver símbolos de uma determinada religião ou de uma seita específica como é o catolicismo (a maior seita cristã existente). Faço apenas a ressalva de que não teria nada contra um juiz ou qualquer outro servidor estatal colocar na sua mesa pessoal de trabalho um crucifixo, uma imagem de Maria, um versículo da Bíblia, do Corão, uma estátua do Buda, uma pirâmide, etc. Pois aí entendo que a mesa de trabalho, ainda que se trate de um bem público, acaba compondo a esfera de individualidade do funcionário mesmo que transitoriamente.

Enfim, lembremos que religião hoje é algo muito pessoal. Há quem não tenha religião alguma e quem nem queira acreditar em Deus ou na concepção da maioria sobre a divindade. Independentemente do ateísmo ou de qualquer ceticismo, cada vez tem sido mais comum pessoas dizerem que buscam a espiritualidade e não a religião, querendo ser livres do aprisionador institucionalismo. E ainda tem gente que desenvolve sua atividade espiritual ou metafísica sem nenhuma simbologia.

Quando falamos de Jesus e sua crucificação, devemos considerar as discordâncias acerca da existência histórica deste personagem dos evangelhos e das dúvidas que pairam quanto às versões oficializadas pela ortodoxia cristã a respeito de como foi a vida deste homem, como é meu caso. Para o islamismo, por exemplo, Jesus não foi crucificado. E, no ponto de vista de inúmeros judeus, seriam inverídicas as narrativas dos evangelhos de que o sinédrio reuniu-se no dia sagrado da Pessach para julgar e condenar Jesus a morte. E, no meu ponto de vista, muita coisa que está no Novo Testamento foi mesmo acrescentada pelos padres gregos do século II, motivo pelo qual sempre recomendo uma leitura cautelosa da Bíblia e livre da literalidade.

Por estas e outras, tenho que admitir o quanto o crucifixo torna-se ofensivo para muita gente neste país que não segue a mesma fé heterodoxa que a minha ou a crença sincrética e popular da grande maioria de brasileiros de cultura ainda cristã.


OBS: A ilustração acima foi extraída do site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A terapia dos homofóbicos anônimos



Certa vez, depois que o Congresso brasileiro aprovou o Projeto de Lei da Câmara n.º 122/2006, criminalizando a homofobia no país, uma psicóloga teve a genial ideia de criar grupos de apoio para auxiliar no tratamento de pacientes homofóbicos no Rio de Janeiro. Homens que cometeram crimes de menor potencial ofensivo relacionados ao preconceito contra os homossexuais, passaram a ser encaminhados pela Justiça para a ONG da doutora Kátia e, desta maneira, recebiam uma nova chance para não serem condenados à prisão. O parecer dela tornava-se quase sempre o fundamento da sentença proferida pela magistrada titular do Juizado Especial Criminal (JECRIM) da cidade.

Iniciando mais uma sessão do seu complicado grupo de machões provocadores, a doutora Kátia assim saudou a todos:

- “Bom dia, meninos! Este é o nosso décimo segundo encontro e hoje gostaria que cada um contasse sobre aquilo que mais lhe causa aversão num homossexual, conforme pedi que refletissem na semana passada. Vocês estão lembrados?”

Sérgio, um dos participantes mais alterados do grupo, interrompeu a psicóloga:

- “Doutora Kátia! A senhora não está querendo que eu saia hoje daqui assumindo que sou frutinha. Já cansei de ouvir aquele velho papo de que todo machão é um gay enrustido. Chega! Prefiro, neste caso, renunciar ao benefício da Justiça e ser condenado de cabeça erguida pelo insulto que proferi contra aquelas duas bichas lá na praia de Copacabana. Jamais ofenderei a minha própria honra e me comprometo em nunca mais andar pela Zona Sul da cidade!”

- “Sérgio, sei que você não estava no encontro anterior quando falei que a homofobia das pessoas seria resultado da projeção que cada um faz no outro quanto aos seus próprios sentimentos. Isto não significa que todo homofóbico seja necessariamente um homossexual que recusa a se assumir. Ele pode, por exemplo, ter escolhido um grupo social em desvantagem para descarregar suas frustrações mal resolvidas. Espero que hoje ainda descubra qual é o seu caso, pois de nada adianta enganar a si próprio. Você admitiria que é um homofóbico ou não se vê desta maneira?”

- “Doutora, não tenho nenhuma fobia dos gays. Se for pra sair no braço com eles, podem vir dois pra cima de mim que eu arrebento. O meu caso é que sou um dos poucos homens de bem que sobraram nesta sociedade decadente. Tenho orgulho de ser macho, trabalhador, não dever a ninguém, criar filhos e viver com decência. Por isto eu sempre votei no Jair Bolsonaro. Ele é o único que presta no meio daqueles deputados cretinos e conseguiu impedir que a vaca da nossa presidenta aprovasse aqueles vídeos de educação homossexual no ano de 2011. Infelizmente, as ONGs GLS, com o apoio dos banqueiros sionistas, aprovaram esta lei vergonhosa que criminaliza o natural sentimento de repulsa contra a anormalidade. Mas o que podemos esperar de uma mulher que sempre se disse favorável ao aborto e fingiu ser santa nas eleições para ter o apoio dos religiosos?”

- “Sérgio! Por favor fale só de você. Nosso tempo é curto e as regras do grupo foram explicadas claramente desde o primeiro encontro há três meses atrás. Aqui eu só permito que o meu paciente fale de si. Ronaldo, agora é a sua vez.”

- “Bom dia, doutora. Ontem fiquei pensando nas coisas sobre as quais tínhamos debatido aqui e descobri por que eu me tornei um homofóbico. No fundo eu tinha era inveja da liberdade dos gays porque muitos deles são pessoas abertas e espontâneas ao passo que eu me tornei um cara reprimido. Papai queria controlar todas as minhas manifestações espontâneas. Ele podou minha maneira de rir, meu jeito de me vestir e proibiu que eu e meu irmão fizéssemos teatro na escola. Depois de adulto, preservei todo aquele enquadramento e então todo homossexual masculino que tinha um comportamento extravagante me despertava raiva”

- “E hoje você ainda culpa seu pai, Ronaldo?”

- “Hoje eu o compreendo, doutora. A escolha de ter me tornado um sujeito reprimido foi toda minha. Quando meu irmão fez seus dezoito anos, ele saiu de casa e foi fazer um curso para artistas. Hoje ele é um humorista da televisão e faz bastante sucesso se fingindo até de gay.”

- “Sente inveja do seu irmão?”

- “Ainda sinto, mas luto contra isto a cada dia”

- “Tá certo. E aí, Antônio? Conseguiu chegar a uma conclusão sobre o seu problema?”

- “Sim, doutora. Descobri que a minha homofobia está associada com a adolescência conflituosa que tive. Nunca senti atração por outro homem. Meu problema era por causa da masturbação.”

Nesta hora, alguns membros do grupo não aguentaram e deram gargalhadas. A doutora Kátia, porém, procurou evitar que houvesse uma dispersão.

- “Silêncio, gente! Vamos ouvir o que o colega de vocês tem a dizer. Antônio, por que você está ligando aversão à homossexualidade com masturbação se esta é justamente uma maneira como os rapazes costumam se afirmar como heterossexuais dentro da nossa cultura antes de terem a primeira relação sexual? Por favor, explique melhor isto.”

Desrespeitosamente, Sérgio mais uma vez interrompeu:

- “Na certa foi porque, quando o Toninho estava na escola, ensinaram-lhe a maneira errada de se masturbar. Trocaram com o manual das meninas e colocaram nas mãos dele.”

Embora quase todos os membros do grupo tivessem dado um sorriso discreto, a doutora Kátia ignorou o comentário do Sérgio e pediu a Antônio que continuasse:

- “Doutora, quando eu era um adolescente, fiz parte de uma igreja evangélica em que o pastor dizia ser um pecado contra a natureza eu me masturbar. Ele comparava a masturbação com o homossexualismo e considerava pior do que o sexo antes do casamento. Então resolvi parar com aquele vício maldito mas não consegui. Toda vez que terminava de ejacular, sentia-me tão impuro quanto um gay. Aí minha aversão ao homossexualismo foi aumentando a cada dia mais.”

- “E hoje? Como você consegue lidar com isto, Antônio?”

- “Depois destas excelentes sessões de terapia, consegui melhorar bastante e descobri que o problema está em mim e preciso aceitar-me como sou. Nem culpo a igreja pelas loucuras que fui desenvolvendo na minha cabeça. Até porque só me tornei um homofóbico radical depois que me desviei dos caminhos do Senhor. Foi quando decidi erroneamente que a melhor maneira de tirar a masturbação da minha vida seria arrumando uma mina pra transar.”

- “E você não arrumou nenhuma namorada na adolescência?”

- “Até hoje não, doutora. Minha primeira transa foi pagando e eu me senti tão bloqueado que nem consegui ter ereção quando entrei no quarto com a mulher. Ficava toda hora lembrando daquela parte da Bíblia em que o apóstolo Paulo diz que quando o homem se une com uma prostituta ele se torna uma só carne com ela. Aí qualquer reação da mulher parecia que ela estava com alguma pombagira no corpo e fiquei com medo que o demônio pegasse em mim. Saí dali e fui pro culto da igreja no dia seguinte aceitar Jesus novamente.”

- “E hoje saberia explicar por que agrediu aquele travesti que representou contra você na polícia?”

- “Sei sim, doutora. É porque na minha cabeça eu cheguei a criar a ideia de que a dificuldade que tenho com as mulheres seria porque os gays estariam controlando o mundo através de uma conspiração diabólica para que os heterossexuais ficassem sem opção de sexo e passassem a procurá-los para satisfazerem suas necessidades. Então, no dia em que fui na boate e paguei a saída do travesti achando que fosse mulher, resolvi dar na cara dele quando chegamos no motel.”

- “Tá. Mas o travesti não te avisou que era homossexual?”

- “Não sei dizer porque eu tava mamadão de cerveja e só consegui prestar a atenção no preço do programa que muito mal negociei. Então na hora em que ela ou ele me perguntou se eu já tinha feito sexo com travesti, aproveitei o momento para extravasar tudo o que sinto contra os gays. Seria o bode expiatório das minhas frustrações sexuais.”

- “Pelo visto quem levou a pior na briga foi você, né Toninho?!”, interveio um outro participante do grupo chamado José.

- “Agora conte um pouco sobre você, José”, falou a doutora Kátia passando a palavra para o outro paciente.

- “Bem, doutora, o meu problema começou no recreio do colégio. Sempre fui um aluno meio mongo para certas brincadeiras e quase não sabia os palavrões. Principalmente os mais cabeludos. Nem mesmo fazia ideia do que significava a palavra gay ou o que era um homossexual. Sabia apenas que alguns homens gostavam de se vestir de mulher e não entendia por que os machões usavam este tipo de fantasia na época do carnaval. Quando fiz meus sete anos, mamãe colocou-me pela primeira vez na escola para cursar a primeira série, mas tive sérios problemas de adaptação. Um garoto mais velho, repetente e ainda com 13 anos na quarta série, tentou abusar de mim no banheiro.”

Todos os pacientes olharam entre si nesta hora dando uma discreta risadinha. A doutora Kátia, porém, advertiu o grupo:

- “Rapazes, vamos respeitar o colega. Uma das regras do nosso grupo de apoio é aprender a ouvir com consideração a experiência do outro. Pode prosseguir, José.”

- “Obrigado, doutora. Confesso que me sinto até hoje culpado pelo que aconteceu como se tivesse provocado o rapaz.”

- “Como assim, José? Explique melhor isto.”

- “É que certo dia, quando eu e os colegas da turma estávamos brincando de super herói, cada um escolheu para si um personagem dos desenhos. O representante da classe foi o Super Homem, o Rogerinho escolheu ser o Batman, um outro foi o Robin e eu, quando tentava ser algum heroi, um outro menino dizia que era ele. Não consegui ser o Incrível Hulk, nem o He-Man, nem o Homem Aranha, nem o Capitão América ou qualquer personagem dos desenhos animados. Até a vaga do Popeye já estava ocupada por num garoto da segunda série que se meteu no nosso meio. Foi aí, sem ter nenhuma outra opção de heróis, que lembrei-me do Capitão Gay que passava num antigo programa do Jô Soares chamado Viva o Gordo”.

Sérgio não se aguentava mais de tanto rir e perguntou com ares de sarcasmo machista, pondo-se depois a cantar uma marchinha de Carnaval:

- “Você jura mesmo, Zé, que que não sabia que o Capitão Gay era um boiolão? Acho que todos já descobrimos seu problema. Olha a cabeleira do Zezé! Será que ele é?! Será que ele é?!”

A doutora Kátia desta vez advertiu seriamente Sérgio:

- “É a última vez que chamo a sua atenção. Se você continuar com este comportamento, vou ter que tirá-lo do grupo e comunicar a minha decisão à juíza do JECRIM. Aqui não estou tratando de crianças. Só posso admitir pacientes realmente dispostos a se tratar. Se você não está afim de encarar a terapia, não posso deixar que a sua atitude covarde atrapalhe os outros que estão aqui tentando compreender melhor a si mesmos”

- “Tudo bem, doutora. Se é assim, vou falar de mim. A senhora quer saber por que eu não suporto os gays? Pois te contarei agora todos os meus motivos e, se me escutar com atenção até o final, com sensatez e sensibilidade, sei que vai me dar razão.”

- “Então continue, Sérgio. Quero ouvi-lo.”

- “Sabe, doutora. Eu concordo em parte com o Toninho quando ele acreditava numa conspiração gay. Mas não se trata bem de uma conspiração articulada pelos homossexuais e sim pelos banqueiros judeus que pretendem dominar o mundo destruindo as famílias dos povos. Por causa disto, temos visto tantos homossexuais, inclusive lésbicas, ocupando cargos elevados na política e nas empresas. Nossa presidenta, por exemplo, é uma sapata a serviço dos sionistas.”

- “E você se sente incomodado porque vê uma mulher independente com um salário melhor do que o seu e se recusando a transar contigo? Quer que todas elas sejam submissas a você? Isto te ameaça?”

Sérgio emudeceu, pensou um pouco e depois respondeu:

- “Doutora Kátia. Estou achando a sua sexualidade bem duvidosa. No dia em que você for comigo pra cama e experimentar um macho de verdade vai aprender a gostar de homem.”

Indignada com a atitude de Sérgio, doutora Kátia resolveu encerrar a sessão.

- “Paciente Sérgio, queira se retirar. Não sou mais a sua terapeuta e me julgo por impedida para dar um parecer sobre o seu caso. Ficará a critério da juíza designar outro psicólogo para te avaliar ou te sentenciar como ela bem entender. Quanto aos demais, estão dispensados. Posso dizer que todos vocês estão em condições de continuar a conviver em sociedade. Apenas recomendo que prossigam com o tratamento no SUS ou num consultório particular. Aqui na minha ONG temos preços promocionais de vinte reais por consulta para pessoas de condição humilde e os grupos de apoio são todos gratuitos. Anotem o horário que está no mural lá do corredor.”

Sérgio deixou a sala de terapia na frente dos demais e os outros pacientes saíram todos juntos, alcançando-o minutos depois no bar onde costumavam reunir-se ao término de cada sessão. Ali todos eles davam boas gargalhadas contando piadas sobre homossexuais e zombando da doutora Kátia.

- “QUA! QUÁ! QUÁ! O Toninho enganou a mulher direitinho e acho que a doutora não vai descobrir que eu nem estava na primeira série quando a Globo exibia o Viva o Gordo”, comentou José.

- “É impossível ela descobrir que eu jamais fui crente. Decorei na íntegra as confissões de um blogueiro ex-evangélico na internet, as quais pareceram-me bem coerentes. No fundo, prefiro mais é uma boa curimba do que ir numa igreja”, ridicularizou Antônio.

- “Mas e você, Sérgio? Por que não falou pra mulher que sente inveja das lésbicas? A doutora Kátia iria ver que você compreendeu o seu problema e iria encaminhar uma resposta favorável pra juíza e você ficaria livre de tomar uma cadeia. Seu tormento terminaria dentro de poucas semanas e ficaria livre de ter que continuar vindo toda semana aqui. Agora, depois deste incidente, existe até o risco de uma condenação.”

- “Olha, amigos. Quando a doutora Kátia perguntou se eu me sentia incomodado pelo fato de uma mulher ganhar mais do que meu salário, saquei logo qual deveria ser a resposta. Mas a verdade, Toninho, é que se a Justiça me liberar, perderei a chance de ser mandado pra uma cadeia fétida lotada de homens suados, bem musculosos. Ui!”

- “Que é isto, companheiro!? Você só pode estar zoando com a nossa cara!”

- “Estou falando sério, gente! Naquele momento em que a doutora Kátia fez aquela pergunta, refleti profundamente e descobri que gosto é de homem, Toninho.”

- “Por favor, não me chame mais de Toninho. A partir de agora já não te dou estas intimidades! Saia daqui, bichona nazista, antes que agente te cubra de porrada.”

- “Eu vou sair daqui, bambinos. Mas saibam que tenho esta conversa gravadinha bem aqui neste aparelho. Todos os papos anteriores aqui do bar já estão no meu computador porque eu tinha resolvido me prevenir de vocês, caso deixassem de ser homofóbicos. E, certamente que, se vocês me baterem, nós nos veremos todas no presídio de Bangu, além de que vou espalhar pra todo mundo no Facebook. Ai, como eu tô bandida!”