Neste sábado, dia 20 de dezembro de 2025, a 67ª Cúpula do Mercosul, realizada em Foz do Iguaçu (Brasil), foi palco de uma das mais profundas divergências diplomáticas da história recente da América Latina.
Durante o evento, o presidente da Argentina, Javier Milei, surpreendeu colegas e analistas ao expressar apoio explícito à pressão política e militar exercida pelos Estados Unidos e pelo presidente Donald Trump contra a Venezuela. Ele afirmou que “a Argentina saúda a pressão dos Estados Unidos e de Donald Trump para libertar o povo venezuelano” e que “o tempo de ter uma abordagem tímida nessa matéria acabou”.
Essa posição, longe de ser apenas retórica, traz riscos profundos à soberania dos países latino‑americanos, à estabilidade regional e ao respeito ao direito internacional, incluindo tratados relacionados ao Direito do Mar, e precisa ser debatida com seriedade.
1. O que foi dito em Foz do Iguaçu: um rompimento com tradições diplomáticas regionais
No auge da cúpula, Milei aproveitou o microfone para não apenas criticar duramente o governo de Nicolás Maduro — a quem qualificou como uma “ditadura atroz e narcoterrorista” — mas também para pedir que outros membros do Mercosul se alinharem à posição de Washington para pressionar Caracas.
Essa fala contrastou fortemente com a abordagem de outros líderes presentes. O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, advertiu que qualquer intervenção militar seria uma catástrofe humanitária e um precedente perigoso para toda a América do Sul.
O discurso de Milei sinaliza um deslocamento da política externa argentina tradicional, que historicamente prezou pela não intervenção e pelo respeito à soberania dos povos latino‑americanos — mesmo ao criticar regimes autoritários. Ao endossar uma pressão externa que pode incluir ações militares ou bloqueios econômicos, Milei rompe com esse princípio.
2. Oposição e opinião pública na Argentina
Dentro da Argentina, a fala de Milei não foi recebida de forma unânime. A política doméstica do presidente já é alvo de forte polarização e críticas por parte de grande parte da sociedade e da oposição política. Pesquisas de opinião recentes mostram que a avaliação sobre o governo de Milei está quase empatada entre aprovação e desaprovação, demonstrando que os argentinos estão divididos quanto à condução do país.
Para além dessa divisão geral, a oposição — em grande parte liderada pelo peronismo e outras forças de centro‑esquerda — tem criticado o alinhamento explícito de Milei com Washington, argumentando que sua política externa está excessivamente subordinada a interesses externos e pode expor a Argentina a conflitos e dependências que não refletem os interesses nacionais de longo prazo.
3. Reações regionais: Brasil, Colômbia e México
Brasil
O presidente Lula fez um posicionamento diametralmente oposto ao de Milei na mesma cúpula. Lula defendeu o diálogo e alertou para os riscos de militarização e intervenção estrangeira, insistindo que isso poderia ser uma “catástrofe humanitária” e um exemplo perigoso para outras crises na América Latina.
Colômbia
Embora o governo colombiano sob Gustavo Petro não tenha se alinhado formalmente com as posições de Lula no Mercosul (já que a Colômbia não é membro pleno do bloco), a tradição diplomática colombiana recente tem sido a de rejeitar intervenções militares externas em assuntos internos de outros Estados e de defender que os problemas da Venezuela devem ser resolvidos por venezuelanos. Isso se alinha com sua política de soberania e diálogo na região.
México
A presidente mexicana Claudia Sheinbaum também se posicionou claramente contra qualquer intervenção externa ou pressão militar. Ela apelou às Nações Unidas para que atuem como mediadoras e que se evite derramamento de sangue, reforçando princípios constitucionais mexicanos de não intervenção, não ingerência estrangeira e autodeterminação dos povos.
Esse posicionamento destaca uma diferença importante: mesmo líderes críticos ao regime de Maduro rejeitam soluções que envolvam coerção militar ou violações de soberania externa.
4. Soberania, Direito do Mar e implicações jurídicas
O apoio de Milei às ações dos EUA — incluindo motes que podem embasar bloqueios ou uso de força em águas internacionais — levanta sérias questões jurídicas:
Direito do Mar
As Convenções das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) garantem a liberdade de navegação, a integridade das zonas econômicas exclusivas e o uso pacífico dos mares, limitando a possibilidade de que operações militares ou bloqueios sejam legalizados sem quadrantes claros de legalidade internacional. Bloquear petroleiros ou interceptar embarcações pode ser visto como violação dessas normas e gerar repercussões jurídicas.
Violação de soberania
A pressão externa que se traduz em blocos navais ou ações militares não consensuais, sem autorização de organismos multilaterais como a ONU, pode configurar uma violação direta da soberania venezuelana e criar precedente perigoso para toda a região.
Possíveis condutas criminosas
A utilização de força contra embarcações ou infrações de tratados internacionais pode ser examinada à luz de normas de responsabilidade internacional e até de crimes internacionais, caso haja danos a civis ou danos indiscriminados a propriedade marítima sem base legal adequada.
Ao endossar tais ações, líderes estrangeiros legitimam de forma implícita condutas que desafiam normas construídas ao longo de décadas de esforços multilaterais.
5. O perigo de precedentes intervencionistas
Quando um líder regional apoia abertamente medidas de pressão que podem incluir ações militares ou bloqueios, isso mina o princípio de não‑intervenção que é a base do sistema interamericano moderno. Permitir — ou celebrar — que potências externas tomem iniciativa de uso da força ou pressão coercitiva contra um Estado soberano abre a porta para:
- Normalização de interferência em assuntos internos de outros Estados;
- Debilitação de mecanismos internacionais de resolução de conflitos;
- Riscos de escalada de conflitos armados na região;
- Fragilização de blocos regionais como Mercosul ou CELAC.
Esse precedente não afeta apenas a Venezuela: ele pode ser invocado em outras crises futuras, destruindo os pilares da integração regional.
6. Conclusão: por uma América Latina soberana e unida
O discurso de Javier Milei na Cúpula do Mercosul não pode ser visto como uma mera discordância diplomática. Ele representa uma ruptura ideológica e estratégica com princípios fundamentais que sustentaram a política externa latino‑americana nas últimas décadas: não intervenção, respeito à soberania e solução pacífica de conflitos.
Enquanto Brasil, México e Colômbia reforçam a importância de diálogo, mediação e respeito à autodeterminação, o apoio de Milei à pressão dos Estados Unidos sobre a Venezuela acende um alerta para toda a região: aceitar políticas intervencionistas como válidas é abrir mão de nossa independência.
A América Latina enfrenta desafios comuns — como desigualdade, mudança climática, insegurança e instabilidade econômica. Fortalecer a integração econômica e política, baseando‑se em respeito mútuo, solidariedade e multilateralismo, é vital para defender nossos interesses verdadeiros.
É essencial que os países da América Latina reforcem blocos regionais, mecanismos de cooperação e fóruns multilaterais que preservem a soberania dos Estados, defendam a democracia e evitem que disputas geopolíticas sejam resolvidas por meio de coerção externa. Só assim poderemos avançar como uma região realmente unida, soberana e democrática.

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