Em sua página no Facebook, o historiador e professor Leandro Karnal comentou o seguinte acerca de uma imagem revelada no dia do massacre policial na favela do Jacarezinho, na última quinta-feira (06/05):
"A foto é Ricardo Moraes/REUTERS. Mostra uma cena no Jacarezinho (RJ) no dia 6 de maio. Façamos uma leitura da imagem: o agente sobe, arma em punho, concentrado e tenso. Está em território inimigo e pode perder a vida, como, de fato, um policial perdeu. Ao redor dele, seis pessoas, talvez, da própria comunidade. Duas moças estão descontraídas. Os homens estão mais imóveis. Um quinto morador, de vermelho, acabou de passar pelo agente e segue para seu destino. Há uma coisa impactante na foto: quase todos parecem ter tornado aquilo parte do cotidiano, como ocorre em época de guerra. A morte e a violência integram-se ao cotidiano. É difícil avaliar por foto, porém, os moradores parecem quase todos negros. Mais um dado a pensar. Talvez não tivesse começado o tiroteio ainda e eles observassem apenas um agente da lei passando. Todavia, existe uma banalidade da violência que choca bastante. Nós nos acostumamos com a morte e a cada nova manchete (creche em SC, morte de Paulo Gustavo, mais de 400 mil mortos em pandemia) vamos substituindo a dor de ontem pela de hoje a ponto de... deixar de ser tão aguda. É uma foto, é um documento e é um registro do como fomos nos costumando à dureza do mundo. Qual o problema? Gente conformada é mais fácil de controlar. Hoje, não tenho respostas, apenas perguntas. Como chegamos até aqui? A quem serve nosso silêncio resignado?" - https://www.facebook.com/photo?fbid=305561357683944&set=a.269807071259373
A reflexão feita pelo ilustre pensador vem justamente mostrar o que vem acontecendo não somente nessas zonas de conflito dentro do Rio de Janeiro (e de outras cidades do país) como também em toda a sociedade brasileira quando passamos a nos acostumar com as repetidas notícias sobre assassinatos em comunidades carentes e com os números das novas mortes por COVID-19, esquecendo-nos de que cada vida é única nesse mundo.
Entretanto, pior ainda é quando nos deparamos com as mais absurdas justificativas por quem se considera um "cidadão de bem" em relação à barbárie cometida anteontem, no abandonado bairro do Jacarezinho, poucos dias após a posse do governador bolsonarista Cláudio Castro. Pois há quem entenda ser correto a PM invadir uma área de moradores e executar sumariamente os supostos criminosos, o que significa a expressão de uma cultura miliciana, conforme bem criticou o deputador federal Marcelo Freixo (PSoL/RJ):
"A milícia, que ocupa 58% do território do município do Rio de Janeiro, disseminou uma ideia de uma "sociedade miliciana", na qual a Justiça é trocada pelo justiçamento. Quando um policial leva um tiro e morre no início de uma operação, ela deve ser imediatamente cancelada sob o risco de abandonar a pauta original e se transformar em vingança de seus colegas contra a comunidade em que a morte aconteceu. É essa lógica que vimos na chacina no Jacarezinho. Não há vencedores nesta guerra. Morre morador e morre policial. Precisamos urgentemente de uma política de Segurança Pública com investimento no setor de Inteligência, valorização de seus agentes, com mais estrutura, equipamentos e treinamento apropriado" - https://www.facebook.com/MarceloFreixoPsol/photos/a.397084743665121/5805052696201605
É preocupante a decadência ética e moral do Rio de Janeiro, não muito diferente da maior parte da sociedade brasileira. Infelizmente, estamos não só banalizando esses acontecimentos cruéis, como de algum modo consentindo com eles. E, ao silenciarmos diante de assassinatos cometidos pelo Estado, estaremos dando legitimidade fática a julgamentos paralelos contrários às leis, correndo o sério risco de sermos as próximas vítimas de tais operações estatais.
Possivelmente muitos não devem se importar tanto com os vinte e oito mortos no Jacarezinho porque se tratam de fatos ocorridos em comunidade carente de ocupação irregular, mas não num bairro nobre da capital estadual, ou em uma área movimentada do Rio de Janeiro onde funciona o comércio. Porém, não podemos de maneira alguma perder a empatia pois devemos nos colocar no lugar daquele que hoje sofre com a perda de um familiar injustamente assassinado pela polícia, ou até mesmo levado a óbito por causa da pandemia.
Nesses tempos tão sombrios pelos quais estamos passando, em que nem o governador e tão pouco o presidente Jair Bolsonaro foram capazes de dar algum acolhimento às mães das vítimas da chacina do Jacarezinho, precisamos perseverar para que valores elevados, como a dignidade da pessoa humana, não sejam esquecidos. Aliás, precisamos unir as nossas vozes aos que hoje protestam contra a chacina de quinta-feira que foi a mais letal da história das operações policiais no Rio de Janeiro.
Que não percamos a sensibilidade nesses dias maus!