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segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Entre a História e a Prudência: democracia, sistemas de governo e o tempo necessário do Brasil



O Brasil convive, desde a Proclamação da República, com uma inquietação recorrente acerca de suas formas de governar. Não se trata apenas de uma disputa entre modelos institucionais, mas de uma busca mais profunda por estabilidade, legitimidade e equilíbrio entre poder e representação. Em diferentes momentos da história, essa inquietação reaparece com força, geralmente impulsionada por crises políticas, impasses entre os Poderes ou frustrações com o funcionamento do sistema partidário.

A República, proclamada em 1889, nasceu sem plebiscito, sem pedagogia cívica e sem consenso social. Foi um ato de elite, militar e civil, que rompeu com o Império não por exaustão popular do regime monárquico, mas por rearranjos de poder. Desde então, o Brasil republicano atravessou experiências autoritárias, democracias interrompidas, constituições sucessivas e crises cíclicas de governabilidade. O presidencialismo, adotado como símbolo de modernidade, mostrou-se frequentemente tensionado por personalismos, rupturas institucionais e dependência excessiva de maiorias congressuais instáveis.

Não surpreende, portanto, que o debate sobre sistemas de governo reapareça sempre que a engrenagem política parece emperrar. Contudo, a história ensina que a forma da decisão importa tanto quanto o conteúdo decidido.


Os plebiscitos de 1963 e 1993: decisões sem maturação

O plebiscito de 1963 ocorreu em um ambiente claramente desfavorável. Tratava-se menos de uma escolha livre e refletida e mais de um acerto de contas entre forças políticas após a solução parlamentar improvisada que permitiu a posse de João Goulart. O presidencialismo venceu, mas o país mergulharia, pouco depois, em um golpe de Estado e em duas décadas de regime autoritário. A consulta popular, naquele contexto, não foi capaz de produzir estabilidade nem consenso duradouro.

Já o plebiscito de 1993, embora formalmente democrático, padeceu de outro problema: a ausência de debate estruturado e de instituições partidárias sólidas. A jovem democracia ainda se reorganizava após a Constituição de 1988, o sistema partidário era fragmentado e pouco programático, e o eleitorado não dispunha de informações claras sobre as implicações práticas de cada escolha. A República presidencialista venceu, mas sem encerrar o debate — apenas o adiou.

Entre esses dois momentos, ergue-se como marco incontornável o movimento das Diretas Já, que não foi apenas uma campanha por eleições presidenciais, mas uma afirmação profunda de soberania popular, participação e rejeição a soluções tuteladas. Qualquer proposta séria de revisão institucional no Brasil precisa dialogar com esse legado: não há atalhos legítimos quando se trata de decidir como o país deve ser governado.


Crises contemporâneas e falsas soluções imediatas

As crises recentes — marcadas por impeachment, hiperfragmentação partidária, fortalecimento do chamado “Centrão” e conflitos reiterados entre Executivo, Legislativo e Judiciário — reacenderam o interesse por alternativas institucionais. O semi-presidencialismo, em particular, passou a ser visto por muitos como uma possível válvula de equilíbrio: preserva a eleição direta para a chefia do Executivo, mas compartilha responsabilidades com um governo dependente de maioria parlamentar.

A simpatia por esse modelo não é casual. Democracias maduras, como a francesa, e, de forma indireta, a britânica — esta última admirada pela solidez de suas convenções, pela centralidade do Parlamento e pela neutralidade simbólica da chefia de Estado — mostram que o segredo não está apenas no modelo, mas na qualidade das instituições que o sustentam.

Aqui reside o ponto central: nenhum sistema de governo funciona adequadamente quando apoiado em partidos frágeis, personalistas e desprovidos de vida programática real. Um parlamentarismo sem partidos sólidos tende à captura oligárquica. Um presidencialismo sem coalizões transparentes deriva para o fisiologismo. Um semi-presidencialismo, implantado prematuramente, poderia amplificar conflitos em vez de mitigá-los.


Monarquia, memória e presença contemporânea

É igualmente necessário reconhecer, com honestidade intelectual, a presença contínua e organizada dos círculos monárquicos no debate público brasileiro nas últimas décadas. Diferentemente do que se supõe, não se trata apenas de nostalgia. Há ali reflexões sérias sobre estabilidade institucional, moderação do poder e simbolismo do Estado. O paradoxo histórico é evidente: o Brasil teve, no século XIX, um chefe de Estado — D. Pedro II — cuja postura intelectual e republicana no sentido cívico era, sob muitos aspectos, mais moderna do que a de grande parte das elites que o sucederam.

Ainda assim, qualquer debate contemporâneo sobre monarquia só faz sentido como etapa posterior, condicionada a uma escolha prévia por um sistema parlamentar e, sobretudo, a um ambiente institucional amadurecido. Antecipar esse debate, ou misturá-lo a crises conjunturais, seria politicamente imprudente e historicamente equivocado.


O verdadeiro pré-requisito: reforma partidária

Se há um consenso possível neste momento, ele não está na escolha imediata de um novo sistema de governo, mas na urgência de reformar profundamente o sistema partidário brasileiro. Cláusulas de desempenho mais rigorosas, fidelidade partidária efetiva, financiamento transparente e um sistema eleitoral que fortaleça vínculos entre representantes e representados são condições mínimas para qualquer avanço institucional sério.

Sem isso, o risco é evidente: transformar qualquer novo modelo em refém das mesmas estruturas viciadas, das mesmas oligarquias regionais e dos mesmos mecanismos informais de poder que hoje limitam a qualidade da democracia brasileira.


Prudência, pedagogia e tempo histórico

A história constitucional brasileira sugere que decisões estruturais exigem tempo, pedagogia e maturação. Não se trata de adiar indefinidamente o debate, mas de organizá-lo de forma racional, sequencial e responsável, respeitando o legado das Diretas Já e evitando soluções apressadas.

Nesse sentido, um caminho possível — e intelectualmente honesto — seria preparar o país ao longo das próximas décadas para uma decisão verdadeiramente informada.


Cronograma indicativo para um debate institucional responsável

2027–2034:
• Implementação gradual de uma reforma partidária robusta
• Fortalecimento das cláusulas de desempenho
• Consolidação da fidelidade partidária
• Debate público e acadêmico permanente sobre sistemas de governo

2035–2042:
• Estabilização do novo sistema partidário
• Experiências institucionais incrementais no presidencialismo
• Ampliação da educação cívica e constitucional

2043:
• Plebiscito nacional sobre o sistema de governo
 – Presidencialismo
 – Parlamentarismo

2044–2046:
• Debate aprofundado e regulamentação constitucional conforme o resultado do plebiscito

2047:
• Plebiscito condicionado:
 – Se mantido o presidencialismo: presidencialismo reformado ou semi-presidencialismo
 – Se adotado o parlamentarismo: república parlamentar ou monarquia constitucional parlamentar


Considerações finais

A democracia não se fortalece com atalhos nem com decisões tomadas sob o calor das crises. Ela se aperfeiçoa quando instituições precedem escolhas, quando partidos precedem líderes e quando o tempo histórico é respeitado. Admirar a democracia britânica ou reconhecer as virtudes do semi-presidencialismo para o caso brasineiro não implica impor modelos, mas aprender com eles.

Talvez a maior lição seja esta: antes de decidir como governar, o Brasil precisa reaprender a organizar sua própria representação política. Sem isso, qualquer sistema será apenas uma nova promessa frustrada em uma história já longa de expectativas interrompidas.

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