No Brasil, milhares de pessoas idosas, acamadas, com mobilidade reduzida ou em situação de extrema vulnerabilidade enfrentam um drama silencioso após sobreviverem a uma emergência médica: a alta hospitalar sem qualquer garantia de retorno seguro para casa.
O atendimento de urgência acontece, a vida é preservada — mas, ao final, o Estado muitas vezes se retira. O paciente recebe alta e, sem condições físicas, financeiras ou familiares, é simplesmente deixado à própria sorte.
Essa realidade expõe uma das maiores contradições do sistema de saúde brasileiro: salvar não basta; é preciso cuidar até o fim do ciclo assistencial.
Alta hospitalar não encerra o dever do Estado
A Constituição Federal é clara ao afirmar que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196). Esse dever não se limita ao momento do socorro, da internação ou do procedimento médico.
No âmbito do SUS, a atenção à saúde deve ser:
- integral,
- contínua,
- universal,
- igualitária,
- e orientada pela dignidade da pessoa humana.
A alta hospitalar, portanto, não pode ser tratada como um “ponto final administrativo”, mas como uma etapa do cuidado, que exige condições mínimas de segurança, especialmente quando o paciente:
- não anda,
- não se comunica adequadamente,
- depende de terceiros,
- ou não tem recursos para custear transporte especializado.
Negar esse suporte, em muitos casos, equivale a interromper o tratamento por vias indiretas.
Transporte sanitário não é luxo: é instrumento de acesso à saúde
O SUS reconhece o transporte sanitário como parte da rede de atenção. Embora ambulâncias sejam prioritariamente destinadas a urgências, não existe vedação absoluta ao seu uso para transporte assistido, desde que:
- haja indicação clínica,
- não se comprometa o atendimento emergencial,
- e o paciente não tenha meios próprios de deslocamento.
O problema não é a ausência de recursos, mas a ausência de políticas públicas claras.
Quando o Estado se omite, transfere o ônus ao paciente pobre, idoso ou fragilizado — justamente quem mais depende da proteção pública.
O que dizem os tribunais: o Judiciário tende a proteger o paciente
O Poder Judiciário brasileiro, de modo geral, interpreta o direito à saúde de forma ampliada, sobretudo quando estão em jogo:
- pessoas idosas,
- pessoas com deficiência,
- pacientes acamados,
- famílias em situação de vulnerabilidade social.
As decisões costumam se apoiar em três pilares:
- Dignidade da pessoa humana;
- Integralidade da atenção à saúde;
- Proibição de proteção insuficiente por parte do Estado.
Em ações judiciais, é comum o entendimento de que o dever estatal não se esgota no atendimento hospitalar, podendo incluir:
- fornecimento de transporte assistido,
- encaminhamento à atenção domiciliar,
- ou adoção de medidas que viabilizem a continuidade do cuidado.
Minas Gerais e Rio de Janeiro: avanços e limites
🔹 Minas Gerais
Na prática, o cumprimento ainda é desigual, e muitos casos só se resolvem com:
- judicialização,
- atuação do Ministério Público,
- ou pressão dos Conselhos de Saúde.
🔹 Estado do Rio de Janeiro
Aqui no Rio, não há uma norma estadual geral que assegure o transporte domiciliar pós-alta. O que existe é:
- forte dependência da organização municipal;
- judicialização recorrente em casos concretos;
- e decisões judiciais que reconhecem o direito quando comprovada a incapacidade do paciente e a omissão do poder público.
Alguns municípios brasileiros — inclusive fora desses estados — se destacam por leis locais ou programas de transporte sanitário e atenção domiciliar, que funcionam como boas práticas e demonstram que o problema é menos jurídico e mais político-administrativo.
Por que é urgente regulamentar esse direito?
A ausência de leis, portarias e protocolos claros gera:
- decisões arbitrárias,
- desigualdade entre municípios,
- sofrimento evitável,
- e sobrecarga das famílias.
É fundamental que União, estados e municípios:
- aprovem leis e atos administrativos específicos;
- estabeleçam critérios objetivos;
- garantam alternativas reais para pacientes vulneráveis;
- e deem transparência às decisões.
Sem isso, o direito à saúde permanece formal, mas incompleto.
O que fazer quando o serviço é negado?
Pacientes e familiares não estão desamparados. Diante da ausência de transporte ou assistência após a alta, é possível:
- Solicitar explicações formais à Secretaria de Saúde (Lei de Acesso à Informação);
- Registrar demanda na Ouvidoria do SUS;
- Procurar o Conselho Municipal de Saúde, que exerce controle social;
- Buscar a Defensoria Pública, especialmente em casos de vulnerabilidade;
- Acionar o Ministério Público, quando houver omissão sistemática;
- Reunir documentos médicos que comprovem a incapacidade de locomoção.
A mobilização institucional é muitas vezes o que transforma um problema invisível em política pública.
Cuidar até o fim é dever do Estado!
Uma sociedade que salva vidas, mas abandona pessoas na porta do hospital, falha em sua missão constitucional.
O SUS só cumpre seu papel quando ninguém fica para trás — nem mesmo depois da alta.
📝Nota sobre a Portaria nº 2.436/2017 (PNAB)
A Portaria nº 2.436/2017, do Ministério da Saúde, aprovou a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e estabeleceu as diretrizes para a organização da Atenção Básica na Rede de Atenção à Saúde (RAS) do SUS. O ato normativo reafirma a Atenção Básica como porta de entrada preferencial do sistema, bem como ordenadora do cuidado e coordenadora da atenção integral e contínua aos usuários.
A PNAB atribui aos Municípios responsabilidades centrais na gestão do cuidado, incluindo a organização dos fluxos de referência e contrarreferência, o gerenciamento responsável dos encaminhamentos e o fortalecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF) como eixo prioritário do modelo assistencial. Nesse contexto, cabe ao ente municipal articular os diferentes pontos da rede — serviços ambulatoriais, hospitalares e de atenção domiciliar — assegurando integralidade, longitudinalidade e vínculo com o paciente.
Embora a Portaria não trate de forma expressa do transporte pós-alta hospitalar, ela reforça o dever de continuidade assistencial, especialmente por meio da Atenção Domiciliar, prevista em normas complementares como a Portaria nº 963/2013. Tal diretriz impõe a necessidade de articulação intersetorial e intra-rede para evitar rupturas no cuidado de pessoas em situação de vulnerabilidade, como idosos, acamados ou pacientes com mobilidade reduzida.
Assim, a PNAB fornece base normativa relevante para a responsabilização do poder público em casos de falhas na alta hospitalar, inclusive em demandas judiciais, ao concretizar o princípio da integralidade da atenção à saúde, previsto no art. 198 da Constituição Federal de 1988.

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