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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Por que a humanidade do Messias assusta?


“Apareceu-lhe então um anjo do céu que o fortalecia. Estando angustiado, ele orou ainda mais intensamente; e o seu suor era como gotas de sangue que caíam no chão.” (Evangelho de Lucas 22.43-44; Nova Versão Internacional – NVI)


Poucas pessoas sabem e quase ninguém prega numa igreja que os versículos 43 e 44 do capítulo 22 de Lucas são omitidos por alguns respeitáveis manuscritos antigos sobre o Novo Testamento.

Esta perturbadora notícia trás um problema a ser enfrentado pelos estudiosos e que ainda mexe com a fé biblicista de alguns, no sentido dos dois versos terem sido um acréscimo ou se o texto sofreu omissões. Porém, para muitos dos eruditos tais versos realmente têm a ver com o estilo e o cunho do autor do Terceiro Evangelho e, por isso, a redação deve ser mantida nas versões de nossas bíblias.

O que mais me intriga, entretanto, é por que alguns copistas teriam suprimido o referido trecho do Evangelho de Lucas? Quais foram as razões ideológicas que os levaram a omitir um importante detalhe sobre a vida de Jesus?

Lendo os comentários da Bíblia de Jerusalém, encontrei uma preciosa pista para as minhas inquietantes indagações e que vieram a se tornar inspiradoras para o presente artigo. Pois, de acordo com a nota de rodapé (coisa que muitos leitores das Escrituras ignoram), a censura no texto pelo copista seria explicada “pelo cuidado de evitar um rebaixamento de Jesus, julgado demasiadamente humano”.

Ao refletir sobre a história eclesiástica, selecionei dois aspectos relevantes que devem ser considerados. Um é que, nos primeiros séculos da era comum, parecia não haver a mesma preocupação dos dias atuais em se preservar a integridade e a originalidade do texto na transmissão do Evangelho. Outra é que o surgimento da doutrina acerca da divindade do Messias passou a integrar a concepção cristológica da Igreja helenizada do século II em diante a ponto de se tornar um dogma da religião cristã e sufocar qualquer versão mais humanizada do Deus encarnado.

Pode-se dizer que, até hoje, com quase 500 anos de protestantismo, ainda é mitigada a livre interpretação da Bíblia pregada por Lutero, pois a maioria dos cristãos nutre um forte apego pelas suas concepções doutrinárias sobre o Messias, reagindo com intolerância às ambiguidades bíblicas como se toda a Sagrada Escritura tivesse que dar embasamento à formação de uma teologia unificada. Só que, devido a isto, as passagens que contrariam as nossas concepções estabelecidas acabam sendo evitadas, mesmo que inconscientemente. Tudo pela infeliz escolha pelo (cai)chão da doutrina.

Curiosamente Jesus referia-se a si mesmo como o “Filho do Homem” e não tinha inibição para expor a sua humanidade. O Messias, embora tivesse realizado milagres pelo poder do Espírito Santo, não escondeu-se atrás da máscara de super herói. Aliás, ele se derramou em lágrimas quando visitou Marta e Maria pela ocasião da morte de Lázaro.

Sabendo de que também iria passar pela morte, suas emoções ficaram abaladas na cena do Getsêmani, abatendo sobre sua alma o sentimento de angústia. Ali, no Monte das Oliveiras, o homem que tanto amou a vida estava sendo confrontado entre escolher o natural instinto de auto-preservação ou se submeter à vontade de Deus.

Nossa idealização acerca da perfeição do Messias pode tornar-se em péssimo empecilho para que contemplemos a beleza de sua humanidade. Somos atraídos pela racionalização das coisas e queremos definir tudo pelo método aristotélico, criando loucas sistematizações. Em outras palavras , agimos como se tudo precisasse de explicações baseadas na lógica humana.

Todavia, o clamor de Jesus na cruz, em que o Messias recita as dolorosas palavras do Salmo 22, arranha mais uma vez aquilo que nós ocidentais supomos ser um comportamento perfeito. Logo, dizer “Deus meus, Deus meu, por que me desamparaste” expressa uma queixa que se mostra até inconveniente aos nossos olhares. Algo que soa na nossa cultura como uma falta de reverência ao Onipotente significando até mesmo a incompreensão de sua soberana vontade.

No seu sofrimento, Jesus não ficou dizendo Aleluia e nem entoou algum hino de ação de graças. Aquela Hora não dava para ele cantar louvores, mas apenas expressar lamentos. E foi uma tarde tenebrosa caracterizada por grande angústia. Estava morrendo o Messias.

O comportamento de Jesus é para mim a chave para a cura de muitos problemas emocionais com os quais lidamos e daí talvez venha a explicação para que muitos tentem abafar a humanidade do Messias.

Não tenho dúvidas de que olhar para a humanidade do outro implique em considerarmos a nossa. Pois equivale a perceber que estamos nus e que o comportamento falso que praticamos não passa de máscaras e de encenações com o intuito de encobrir quem somos de fato: crianças carentes e ansiosas pelo recebimento de afeto, aceitação e consolo, desejando ardentemente a restauração do ser.

Embora libertador, encarar é nossa humanidade é um processo doloroso visto que ainda sentimos vergonha de nós mesmos e iremos nos tornar pessoas incômodas para outras. Então, ao se deparar com tal dificuldade, muitos acabam repetindo o hábito praticado pelos nossos ancestrais, em cozer folhas de figueira para servir de vestimenta.


OBS: Acredita-se que a escultura acima do Cristo nu seja obra de Michelangelo. Extraí a imagem do site http://www.etudogentemorta.com/2010/01/cristo-nu/

4 comentários:

  1. Perfeita sua observação "Pode-se dizer que, até hoje, com quase 500 anos de protestantismo, ainda é mitigada livre interpretação da Bíblia pregada por Lutero, pois a maioria dos cristãos nutre um forte apego pelas suas concepções doutrinárias sobre o Messias, reagindo com intolerância às ambiguidades bíblicas como se toda a Sagrada Escritura tivesse que dar embasamento à formação de uma teologia unificada. Só que, devido a isto, as passagens que contrariam as nossas concepções estabelecidas acabam sendo evitadas, mesmo que inconscientemente".
    Os guardiões da sã doutrina querem cristalizar,rotular e apresentar um pacote fechado para que não haja a possibilidade de se pensar fora da caixa ameaçando assim o monopólio de consciências que foi conquistado a base de imposições psicológicas disfarçadas de teológicas.
    Pensar fora do convencional, incomoda aqueles que gostam de tudo com uma explicação lógica e plausível.
    Essa deficiência de pensar por si próprio, impede o crescimento e novas possibilidades libertadoras.

    Um abraço Rodrigo,

    Franklin Rosa

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  2. Rodrigo

    Parabéns pela ótima abordagem sobre o Cristo humano, que sofreu uma espécie de mitificação com o passar das eras.

    Como o que caracteriza o Humano é a ambivalência ou ambiguidade, muitos não toleram ver um filho de Deus demonstrando fragilidade, impotência, e um certo desconhecimento do futuro, quando foi surpreendido pelo abandono do Pai, nos últimos momentos de vida.

    Dizia meu pai, enfurecido nos idos de 1954: "Não acredito nunca que Jesus foi um ATOR!"

    Naquele tempo se pregava que Jesus não foi abandonado pelo pai, pois tudo aquilo que Ele estava passando já tinha sido traçado previamente em sua mente. Ele apenas estava cumprindo uma papel.

    Dizia-se:
    Jesus chorou, mas não foi como a gente chora. Foi tentado, mas não como nós somos tentados. E por aí vai a construção "invangélica" de um Cristo inumano, que nos foi ensinado desde os tempos da tenra idade.(rsrs)

    P.S.: É TEMPO DE DESCONSTRUÇÃO...

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  3. rodrigo, li seu comentário para mim da penúltima postagem e concordo com você em termos gerais.

    para mim, a doutrina mais absurda que a cristandade teve que construir foi a tal da divindade de jesus e a da morte vicária. ele teria sido verdadeiro homem e verdadeiro deus, ou seja, ele foi homem e deus ao mesmo tempo; só que tal doutrina acabou por enevoar tanto a sua humanidade quanto a sua "divindade", pois ninguém poderia ser totalmente deus e morrer, sofrer, sentir dor, ter tesão(tem gente que ainda acha que jesus não tinha pinto e nem testosterona); tal ser tinha que ser humano, muito humano.

    para mim a divindade de jesus estava exatamente na sua consciência de ser "filho do homem", na sua consciência de ser o mais humano possível com todas as suas ambiguidades mas com um grau de espiritualidade muito forte a partir da fé do seu próprio povo.

    mas é claro que não se pode discutir a doutrina da encarnação divina em jesus de modo coerente e realista, mas somente por fé. quem quiser ter esse tipo de fé que não se autoquestiona, que tenha.

    abraços

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  4. Olá, FRANKLIN, LEVI e EDUARDO!

    Inicialmente quero agradecer a visita e a participação de vocês neste texto.


    FRANKLIN, concordo com o que expôs. Pois realmente pensar de uma maneira livre implica em contrariar ensinamentos impostos pela ortodoxia religiosa, política e moral da sociedade ou grupo em que vivemos, o que ameaça o poder daqueles que tentam manipular os homens. Porém, observo que o pensamento livre também constitui uma ameaça aos manipulados que se sentem confortavelmente na posição onde estão. Cabe aí a famosa expressão popular do "engana que eu gosto" e, de certo modo, faz lembrar o mito de Platão quanto à reação dos caras que viviam dentro da caverna e tinham se acostumado a perceber o mundo exterior através de sombras refletidas no interior da gruta.

    Entretanto, tenho refletido até que ponto eu também posso estar reproduzindo ambos os comportamentos (do manipulador e/ou do manipulado "feliz"), apesar de tanto questionar as manipulações. Pois tenho visto o quanto o comportamento humano é tendencioso para criar doutrinas e substituir a Verdade libertadora pelas próprias concepções confortáveis elaboradas nas nossas mentes. Logo, costumo fazer uma análise de mim mesmo se, em certas ocasiões, eu não me torno dependente da manipulação.


    LEVI, assim como seu pai, não acredito que Jesus fosse um ator. E concordo que a sua limitação à figura humana não lhe permitia conhecer todo o futuro, exceto pelas revelações que o Espírito Santo lhe trazia. Aliás, quando veio ao mundo na forma de um bebê, fica evidente para mim que Jesus ainda iria tomar consciência de seu papel perante a nação como um Messias e, talvez, ele possa ter tido momentos como os do profeta Jeremias quando este se percebeu uma frágil criança para encarar o árduo ministério que o Eterno lhe ordenava. Assim, vejo que todo o trabalho desenvolvido por Jesus é praticado na dependência do Espírito Santo assim como passou a ser, em tese, o ministério da Igreja. E digo em tese porque, como a história mostra, na maior parte das vezes, a Igreja não ouve a direção divina.


    EDUARDO, embora eu creia na divindade do Messias, penso que a dogmatização desta doutrina bloqueou mesmo os entendimentos das pessoas durante séculos e deve ter levado muita gente para a fogueira. Também criou uma antítese considerada dentro do cristianismo - as radicais "Testemunhas de Jeová". E, nos conflitos entre os seguidores desta seita e os evangélicos vejo muita energia desperdiçada pois todos poderiam estar caminhando juntos pela construção do Reino de Deus nos corações dos homens. Se bem que, como um efeito da antítese da divinização de Jesus, os Testemunhas de Jeová formam um dos grupos religiosos mais apegados à doutrina, o que praticamente acaba dificultando o estabelecimento de uma conexão com eles.

    Em seu comentário você tocou num ponto que muitos evitam por considerarem escandaloso ou blasfematório: Jesus sentiu tesão? Teve alguma polução noturna em razão da ausência de relacionamentos sexuais?

    Tal assunto acabou de inspirar-me a escrever quem sabe um futuro artigo daqui algum tempo, se Deus assim permitir. Mas posso compartilhar a ideia de que Jesus, pelas atividades com as quais envolvia-se, pode ter sublimado o desejo sexual. E, pelo comportamento dos essênios, podemos supor que, naqueles tempos, o celibato parece ter sido praticado por uma minoria dentro do judaísmo sendo que Jesus, embora não tivesse uma vida ascética como viviam os membros da comunidade de Qumran, provavelmente ele se absteve do matrimônio por ser este incompatível com sua missão. E aí eu creio que, desde o começo da idade adulta, talvez, na época em que passou pelo Bar Mitzvah (Lucas 2.42-50?), ele já estivesse conscientizando-se de quem ele realmente era e o que precisava ser feito na história de seu povo.

    Concordo que Jesus foi o mais humano possível, sendo que é a sua humanidade plena que o tornou perfeito, o que inclui “morrer, sofrer, sentir dor e ter tesão”.


    Saudações a TODOS!

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