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terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Por que dar tempo à ciência antes de colonizar Marte?


NASA / Divulgação


A ideia de colonizar Marte fascina a humanidade há décadas. Ela reúne ciência, imaginação, tecnologia e um legítimo desejo de futuro. No entanto, entre o entusiasmo e a responsabilidade existe uma pergunta que precisa ser feita com calma: não estamos apressando um passo que deveria ser dado apenas mais adiante?

Este texto propõe uma reflexão racional e acessível sobre por que uma colonização efetiva de Marte precisa de mais tempo, tanto em nome da ciência quanto da segurança humana.


Marte não é apenas um destino — é um arquivo

Marte é o planeta mais parecido com a Terra que conhecemos. Há bilhões de anos, teve água líquida, atmosfera mais densa e condições que, ao menos em tese, poderiam ter favorecido o surgimento de vida microbiana.

Justamente por isso, Marte é um arquivo natural único. Ele nos permite responder a uma pergunta fundamental:


O que acontece com um planeta semelhante à Terra quando sua história toma outro rumo?


Se contaminarmos Marte cedo demais — com microrganismos terrestres, resíduos biológicos ou ambientes artificiais — esse arquivo se torna ambíguo. Qualquer descoberta futura poderá ser questionada: é marciana ou fomos nós que levamos?

Dar tempo à ciência significa ler esse arquivo com cuidado antes de alterá-lo para sempre.


A expectativa de vida em Marte é baixa — mas não irrelevante

É importante ser honesto: hoje, a expectativa de encontrar vida ativa em Marte é baixa. Não se fala em plantas, animais ou ecossistemas. A hipótese mais plausível é a de vida microbiana antiga ou, no máximo, residual no subsolo.

Mas, do ponto de vista científico, basta uma única descoberta inequívoca para mudar profundamente nossa compreensão da vida no universo.

Perder essa possibilidade por precipitação não seria ousadia — seria descuido.


Colonizar não é o mesmo que visitar

Enviar humanos a Marte para missões temporárias é uma coisa. Colonizar, no sentido real da palavra, é outra completamente diferente.

Colonização implica:


  • Presença humana contínua
  • Infraestrutura permanente
  • Produção de alimentos
  • Reprodução humana
  • Ambientes fechados que inevitavelmente vazam para o exterior


A partir desse ponto, a contaminação biológica deixa de ser um risco e passa a ser um fato consumado.

Por isso, a pergunta correta não é “se” Marte será contaminado, mas “quando estaremos prontos para aceitar isso conscientemente”.


A segurança humana ainda não está garantida

Além da ciência, há um fator frequentemente subestimado: a vida humana.

Uma missão a Marte envolve cerca de três anos fora da Terra, sem possibilidade de resgate rápido. Hoje, ainda não dominamos plenamente:


  • Proteção eficaz contra radiação cósmica
  • Medicina de longo prazo fora do ambiente terrestre
  • Cirurgias complexas em isolamento total
  • Impactos psicológicos extremos do confinamento prolongado


Não se trata de coragem ou pioneirismo. Trata-se de não transformar seres humanos em experimentos irreversíveis.

Esperar não é covardia — é maturidade.


O risco é assimétrico

Este é um ponto-chave:


  • Se colonizarmos Marte cedo demais, podemos perder ciência para sempre.
  • Se esperarmos mais algumas décadas, não perdemos a chance de colonizar.


Em outras palavras: o custo do erro existe apenas em um dos lados.

A prudência, nesse caso, não é conservadorismo. É simplesmente a decisão mais racional.


Um horizonte mais responsável

Muitos cientistas e analistas defendem hoje um caminho gradual:


  • Até meados do século XXI: exploração robótica intensa, retorno de amostras, mapeamento profundo.
  • Entre 2040 e 2050: missões humanas temporárias, bases experimentais, sem colonização permanente.
  • Final do século XXI ou início do século XXII: decisão consciente sobre colonização, já com conhecimento, tecnologia e marcos éticos mais sólidos.


Esse ritmo não atrasa o futuro — ele o torna viável.


O futuro não exige pressa, exige responsabilidade

A Lua sempre estará lá. Marte também. O que pode não estar é a oportunidade de fazer essa escolha de forma lúcida.

A história humana mostra que civilizações raramente erram por falta de ousadia. Elas erram por confundir capacidade técnica com maturidade histórica.

Dar tempo à ciência antes de colonizar Marte não é negar o futuro.

É garantir que, quando ele chegar, não seja construído sobre perdas irreversíveis.


OBS: Este texto não é um manifesto contra a exploração espacial, mas um convite à reflexão: explorar, sim — colonizar, quando estivermos prontos.

Minha solidariedade ao Padre Júlio



Em meio a debates recentes, manchetes apressadas e interpretações muitas vezes reducionistas, torna-se necessário recolocar o foco onde ele sempre deveria estar: na trajetória, nos valores e no testemunho público e pastoral do Padre Júlio Lancellotti. Mais do que reagir a episódios pontuais, o debate exige profundidade, contexto e responsabilidade, especialmente quando envolve figuras cuja atuação transcende conjunturas imediatas.

Há décadas, o Padre Júlio dedica sua existência pastoral ao cuidado dos mais vulneráveis — pessoas em situação de rua, famílias invisibilizadas, homens e mulheres tratados como descartáveis por uma sociedade que, não raras vezes, naturaliza a exclusão e banaliza o sofrimento. Trata-se de uma atuação contínua, pública e coerente, construída no cotidiano, longe de holofotes ocasionais e de conveniências circunstanciais. Seu trabalho não nasceu de conveniências políticas nem de modismos ideológicos, mas de uma opção ética e cristã clara: estar ao lado de quem mais sofre.

Ao longo dos anos, essa atuação lhe rendeu reconhecimento nacional e internacional, mas também resistência, ataques e incompreensões. Isso não é novidade. Toda prática que confronta estruturas de desigualdade e indiferença tende a incomodar. Ainda assim, sua coerência sempre foi marcada pelo compromisso com o diálogo, com a legalidade e com a própria Igreja da qual faz parte.

Decisões internas de instituições — religiosas ou não — fazem parte de sua dinâmica própria e devem ser analisadas com responsabilidade, sobriedade e respeito à complexidade institucional que as envolve. A leitura apressada desses movimentos, sobretudo quando mediada por manchetes de forte impacto, tende a produzir mais ruído do que esclarecimento. Transformar tais decisões em narrativas de confronto absoluto ou silenciamento definitivo empobrece o debate e obscurece aquilo que realmente importa: o legado construído ao longo de uma vida inteira de serviço.

Mais do que reagir a fatos pontuais, é preciso resistir à tentação de reduzir pessoas a episódios. O Padre Júlio não se resume a uma manchete, a uma controvérsia momentânea ou a interpretações apressadas. Ele representa uma prática concreta de fé traduzida em ação, acolhimento e defesa intransigente da dignidade humana.

Em tempos marcados por polarização, ruído informacional e disputas narrativas, apoiar o Padre Júlio é, sobretudo, afirmar valores. É reafirmar que justiça social não é radicalismo, que solidariedade não é ameaça e que o compromisso com os mais pobres não deveria ser alvo de suspeição, mas reconhecido como expressão legítima de humanidade e ética pública. É reafirmar que justiça social não é extremismo, que solidariedade não é ameaça e que o cuidado com os mais pobres não deveria ser objeto de suspeita, mas de reconhecimento.

Que o debate público seja conduzido com mais responsabilidade, menos espetáculo e maior compromisso com a verdade e a complexidade dos fatos. E que não se perca de vista aquilo que realmente importa: a vida dedicada ao serviço, à fraternidade e ao Evangelho vivido na prática.

Minha solidariedade ao Padre Júlio Lancellotti e a todos que seguem acreditando que dignidade humana não é favor, é direito.

Lixo Zero em Mangaratiba: Educação Ambiental como Pilar da Transformação



A gestão de resíduos sólidos em Mangaratiba tem uma trajetória marcada por desafios e aprendizados. Durante o desgoverno do ex-prefeito Alan Campos da Costa, latões coloridos foram espalhados pela cidade para estimular a coleta seletiva. No entanto, sem um trabalho consistente de educação ambiental, a iniciativa não se consolidou: a população não compreendeu plenamente a importância da separação de resíduos, e o sistema não se tornou sustentável.

Atualmente, a cidade conta com duas leis fundamentais que estruturam a política de resíduos sólidos:


1. Lei 1.586/2025 — Entulho

Regulamenta o descarte de resíduos de construção civil e obras, definindo regras para uso de caçambas, sacos e contêineres licenciados, evitando que entulho seja jogado em vias públicas ou áreas ambientalmente sensíveis. Prevê multas e responsabilização de todos os envolvidos, fortalecendo a cultura de legalidade na gestão de resíduos.




2. Lei 1.588/2025 — Programa Lixo Zero

Institui um programa amplo de gestão de resíduos sólidos, incluindo resíduos domésticos, galhadas, industriais e de limpeza urbana. Define o descarte irregular como crime ambiental, incentiva a separação na fonte, a reciclagem e a compostagem, e promove a inclusão de catadores. Além disso, estabelece metas de educação ambiental e engajamento social como pilares estratégicos para a eficácia do programa.


Educação Ambiental: O Pilar do Sucesso

A verdadeira transformação não vem apenas da lei, mas da mudança de comportamento da população.


  • A proximidade de um contêiner de coleta seletiva na Escola Municipal Nossa Senhora das Graças, em Muriqui, é um exemplo de como a educação escolar prática pode gerar hábitos sustentáveis.
  • Agentes ambientais e fiscalização devem adotar uma abordagem pedagógica inicial, orientando cidadãos antes de aplicar multas, fortalecendo a compreensão sobre os impactos do descarte inadequado.
  • A divulgação contínua nas redes sociais reforça campanhas e amplia o alcance da conscientização, engajando crianças, jovens e adultos.


Metas e Indicadores

Para que o Programa Lixo Zero seja efetivo, recomenda-se acompanhar indicadores claros:


  • Redução de descarte irregular em vias públicas e áreas sensíveis.
  • Volume de resíduos separados por tipo (recicláveis, galhadas, entulho).
  • Número de escolas e alunos engajados em projetos de educação ambiental.
  • Participação da comunidade em ações de conscientização e mutirões de limpeza.


Alta Temporada: Planejamento e Ação

Com o Ano Novo e o Carnaval, Mangaratiba enfrenta aumento significativo no fluxo turístico. É fundamental que a Prefeitura e a população:


  • Planejem ações coordenadas de coleta e limpeza urbana.
  • Intensifiquem campanhas educativas nos bairros e redes sociais.
  • Distribuam material informativo para turistas, orientando sobre descarte correto tal como foi feito no choque de ordem pública em fevereiro deste ano.
  • Monitorem pontos críticos de geração de resíduos, reforçando a fiscalização pedagógica.


Conclusão

O sucesso das leis de Mangaratiba — Lei do Entulho (1.586/2025) e Lei Lixo Zero (1.588/2025) — depende da integração entre regulamentação, infraestrutura, educação ambiental e engajamento social. A mudança de hábitos começa nas escolas, se fortalece na comunidade e se consolida com fiscalização pedagógica e campanhas de conscientização.

Investir em educação ambiental é investir em uma Mangaratiba mais limpa, sustentável e socialmente responsável, onde o conhecimento e o engajamento transformam leis em resultados concretos e duradouros, garantindo uma cidade preparada para turistas e para seus moradores.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

PL 2.531/2021: valorização de quem sustenta a escola pública brasileira

 


A educação básica pública brasileira é, cotidianamente, sustentada por um conjunto amplo de profissionais cuja atuação raramente ganha visibilidade, mas sem os quais nenhuma escola funciona. São técnicas e técnicos administrativos, auxiliares, secretárias e secretários escolares, merendeiras e merendeiros, vigilantes, motoristas, profissionais de apoio e tantos outros trabalhadores que garantem o funcionamento, a segurança, a organização e a dignidade do ambiente escolar.

É exatamente para esse público que se dirige o Projeto de Lei nº 2.531, de 2021, hoje em fase decisiva de tramitação no Congresso Nacional. Trata-se de uma proposição que busca corrigir uma histórica distorção do sistema educacional brasileiro: a ausência de um piso salarial profissional nacional para os profissionais técnico-administrativos da educação básica pública.

Este texto tem como objetivo apresentar, de forma clara e detalhada, o conteúdo do PL 2531/2021, explicar o texto atualmente em discussão, situar o leitor quanto à tramitação em dezembro de 2025 e, sobretudo, convocar os servidores e servidoras de todo o país à mobilização, neste momento crucial.


O que é o PL 2.531/2021?

O PL 2.531/2021 propõe a criação de um piso salarial profissional nacional para os profissionais dos quadros técnico e administrativo da educação básica pública, abrangendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Até hoje, diferentemente do magistério, esses trabalhadores não contam com um parâmetro nacional mínimo de remuneração. O resultado é uma profunda desigualdade entre entes federativos, com salários muitas vezes incompatíveis com a importância das funções exercidas e, não raro, abaixo de patamares dignos.

O projeto parte de um princípio simples e justo: não há educação de qualidade sem valorização de todos os profissionais da educação.


O texto atual do projeto: o que ele estabelece?

Após debates e aprimoramentos nas comissões da Câmara dos Deputados, o texto hoje em discussão apresenta um avanço significativo.

O ponto central é a definição de que o piso salarial dos profissionais técnico-administrativos da educação básica pública corresponderá a 75% do valor do piso salarial nacional dos professores do magistério público da educação básica, para jornada de até 40 horas semanais.

Essa escolha não é aleatória. Ao atrelar o piso desses profissionais ao piso do magistério:


  • garante-se atualização automática, sempre que houver reajuste do piso dos professores;
  • evita-se a defasagem histórica causada por valores fixos que rapidamente perdem poder de compra;
  • reconhece-se que a escola é um espaço coletivo de trabalho, onde funções distintas possuem igual relevância social.


O texto também deixa claro que:


  • o piso tem caráter nacional e obrigatório, funcionando como valor mínimo;
  • nenhum ente federativo poderá utilizá-lo para reduzir salários ou suprimir direitos já existentes;
  • o financiamento pode se apoiar nos recursos do Fundeb, que já prevê a destinação majoritária de verbas para a remuneração dos profissionais da educação.


Trata-se, portanto, de uma proposta juridicamente consistente, financeiramente viável e socialmente necessária.


Em que ponto está a tramitação em dezembro de 2025?

Em dezembro de 2025, o PL 2.531/2021 encontra-se em fase avançada de tramitação na Câmara dos Deputados.

O projeto já foi analisado e aprovado nas comissões temáticas centrais, incluindo aquelas responsáveis pelo mérito educacional e pelos impactos financeiros. O texto também passou pelo crivo constitucional, consolidando sua legalidade e compatibilidade com a ordem jurídica.

Nesse momento, a proposição aguarda os procedimentos finais na Câmara, podendo seguir para votação em Plenário ou, não havendo recurso, ser encaminhada diretamente ao Senado Federal.

Isso significa que o projeto entrou em sua fase decisiva. O mérito já foi reconhecido. O que passa a ser determinante agora é o peso da mobilização social e institucional para que o PL avance sem retrocessos e seja aprovado em definitivo.


Por que esse projeto é tão importante?!

A aprovação do PL 2.531/2021 representa:


  • reconhecimento institucional de profissionais historicamente invisibilizados;
  • redução das desigualdades regionais e salariais;
  • fortalecimento da educação pública como política de Estado;
  • valorização concreta do trabalho cotidiano que sustenta o ambiente escolar.


Mais do que números, trata-se de dignidade, respeito profissional e justiça social.

Não há escola que funcione sem quem abre o portão, prepara a merenda, organiza documentos, cuida do patrimônio, garante a segurança e acolhe estudantes e famílias. Valorizar esses profissionais é valorizar a própria educação pública.


Um chamado à mobilização nacional

O momento exige atenção e ação.

Servidores e servidoras da educação básica de todo o Brasil — municipais, estaduais e federais —, sindicatos, entidades representativas, conselhos escolares e comunidades educacionais precisam acompanhar de perto a tramitação do PL 2.531/2021.

É fundamental:


  • dialogar com parlamentares;
  • fortalecer a mobilização nas redes e nos territórios;
  • pressionar para que não haja desfiguração do texto;
  • exigir celeridade na votação e compromisso com a valorização profissional.


A história demonstra que nenhuma conquista estrutural se consolida sem mobilização social. O PL 2531/2021 é uma oportunidade real de corrigir uma injustiça histórica — e oportunidades como essa não surgem com frequência.


Conclusão

Apoiar o PL 2.531/2021 é defender uma educação pública mais justa, humana e coerente com seus próprios princípios. É afirmar que todos os profissionais da escola importam. É reconhecer que qualidade educacional se constrói também com respeito, estabilidade e valorização do trabalho.

Que este seja o momento de união e mobilização nacional.

Sem técnicos e administrativos valorizados, não há escola pública forte.

A hora é agora!

Entre a História e a Prudência: democracia, sistemas de governo e o tempo necessário do Brasil



O Brasil convive, desde a Proclamação da República, com uma inquietação recorrente acerca de suas formas de governar. Não se trata apenas de uma disputa entre modelos institucionais, mas de uma busca mais profunda por estabilidade, legitimidade e equilíbrio entre poder e representação. Em diferentes momentos da história, essa inquietação reaparece com força, geralmente impulsionada por crises políticas, impasses entre os Poderes ou frustrações com o funcionamento do sistema partidário.

A República, proclamada em 1889, nasceu sem plebiscito, sem pedagogia cívica e sem consenso social. Foi um ato de elite, militar e civil, que rompeu com o Império não por exaustão popular do regime monárquico, mas por rearranjos de poder. Desde então, o Brasil republicano atravessou experiências autoritárias, democracias interrompidas, constituições sucessivas e crises cíclicas de governabilidade. O presidencialismo, adotado como símbolo de modernidade, mostrou-se frequentemente tensionado por personalismos, rupturas institucionais e dependência excessiva de maiorias congressuais instáveis.

Não surpreende, portanto, que o debate sobre sistemas de governo reapareça sempre que a engrenagem política parece emperrar. Contudo, a história ensina que a forma da decisão importa tanto quanto o conteúdo decidido.


Os plebiscitos de 1963 e 1993: decisões sem maturação

O plebiscito de 1963 ocorreu em um ambiente claramente desfavorável. Tratava-se menos de uma escolha livre e refletida e mais de um acerto de contas entre forças políticas após a solução parlamentar improvisada que permitiu a posse de João Goulart. O presidencialismo venceu, mas o país mergulharia, pouco depois, em um golpe de Estado e em duas décadas de regime autoritário. A consulta popular, naquele contexto, não foi capaz de produzir estabilidade nem consenso duradouro.

Já o plebiscito de 1993, embora formalmente democrático, padeceu de outro problema: a ausência de debate estruturado e de instituições partidárias sólidas. A jovem democracia ainda se reorganizava após a Constituição de 1988, o sistema partidário era fragmentado e pouco programático, e o eleitorado não dispunha de informações claras sobre as implicações práticas de cada escolha. A República presidencialista venceu, mas sem encerrar o debate — apenas o adiou.

Entre esses dois momentos, ergue-se como marco incontornável o movimento das Diretas Já, que não foi apenas uma campanha por eleições presidenciais, mas uma afirmação profunda de soberania popular, participação e rejeição a soluções tuteladas. Qualquer proposta séria de revisão institucional no Brasil precisa dialogar com esse legado: não há atalhos legítimos quando se trata de decidir como o país deve ser governado.


Crises contemporâneas e falsas soluções imediatas

As crises recentes — marcadas por impeachment, hiperfragmentação partidária, fortalecimento do chamado “Centrão” e conflitos reiterados entre Executivo, Legislativo e Judiciário — reacenderam o interesse por alternativas institucionais. O semi-presidencialismo, em particular, passou a ser visto por muitos como uma possível válvula de equilíbrio: preserva a eleição direta para a chefia do Executivo, mas compartilha responsabilidades com um governo dependente de maioria parlamentar.

A simpatia por esse modelo não é casual. Democracias maduras, como a francesa, e, de forma indireta, a britânica — esta última admirada pela solidez de suas convenções, pela centralidade do Parlamento e pela neutralidade simbólica da chefia de Estado — mostram que o segredo não está apenas no modelo, mas na qualidade das instituições que o sustentam.

Aqui reside o ponto central: nenhum sistema de governo funciona adequadamente quando apoiado em partidos frágeis, personalistas e desprovidos de vida programática real. Um parlamentarismo sem partidos sólidos tende à captura oligárquica. Um presidencialismo sem coalizões transparentes deriva para o fisiologismo. Um semi-presidencialismo, implantado prematuramente, poderia amplificar conflitos em vez de mitigá-los.


Monarquia, memória e presença contemporânea

É igualmente necessário reconhecer, com honestidade intelectual, a presença contínua e organizada dos círculos monárquicos no debate público brasileiro nas últimas décadas. Diferentemente do que se supõe, não se trata apenas de nostalgia. Há ali reflexões sérias sobre estabilidade institucional, moderação do poder e simbolismo do Estado. O paradoxo histórico é evidente: o Brasil teve, no século XIX, um chefe de Estado — D. Pedro II — cuja postura intelectual e republicana no sentido cívico era, sob muitos aspectos, mais moderna do que a de grande parte das elites que o sucederam.

Ainda assim, qualquer debate contemporâneo sobre monarquia só faz sentido como etapa posterior, condicionada a uma escolha prévia por um sistema parlamentar e, sobretudo, a um ambiente institucional amadurecido. Antecipar esse debate, ou misturá-lo a crises conjunturais, seria politicamente imprudente e historicamente equivocado.


O verdadeiro pré-requisito: reforma partidária

Se há um consenso possível neste momento, ele não está na escolha imediata de um novo sistema de governo, mas na urgência de reformar profundamente o sistema partidário brasileiro. Cláusulas de desempenho mais rigorosas, fidelidade partidária efetiva, financiamento transparente e um sistema eleitoral que fortaleça vínculos entre representantes e representados são condições mínimas para qualquer avanço institucional sério.

Sem isso, o risco é evidente: transformar qualquer novo modelo em refém das mesmas estruturas viciadas, das mesmas oligarquias regionais e dos mesmos mecanismos informais de poder que hoje limitam a qualidade da democracia brasileira.


Prudência, pedagogia e tempo histórico

A história constitucional brasileira sugere que decisões estruturais exigem tempo, pedagogia e maturação. Não se trata de adiar indefinidamente o debate, mas de organizá-lo de forma racional, sequencial e responsável, respeitando o legado das Diretas Já e evitando soluções apressadas.

Nesse sentido, um caminho possível — e intelectualmente honesto — seria preparar o país ao longo das próximas décadas para uma decisão verdadeiramente informada.


Cronograma indicativo para um debate institucional responsável

2027–2034:
• Implementação gradual de uma reforma partidária robusta
• Fortalecimento das cláusulas de desempenho
• Consolidação da fidelidade partidária
• Debate público e acadêmico permanente sobre sistemas de governo

2035–2042:
• Estabilização do novo sistema partidário
• Experiências institucionais incrementais no presidencialismo
• Ampliação da educação cívica e constitucional

2043:
• Plebiscito nacional sobre o sistema de governo
 – Presidencialismo
 – Parlamentarismo

2044–2046:
• Debate aprofundado e regulamentação constitucional conforme o resultado do plebiscito

2047:
• Plebiscito condicionado:
 – Se mantido o presidencialismo: presidencialismo reformado ou semi-presidencialismo
 – Se adotado o parlamentarismo: república parlamentar ou monarquia constitucional parlamentar


Considerações finais

A democracia não se fortalece com atalhos nem com decisões tomadas sob o calor das crises. Ela se aperfeiçoa quando instituições precedem escolhas, quando partidos precedem líderes e quando o tempo histórico é respeitado. Admirar a democracia britânica ou reconhecer as virtudes do semi-presidencialismo para o caso brasineiro não implica impor modelos, mas aprender com eles.

Talvez a maior lição seja esta: antes de decidir como governar, o Brasil precisa reaprender a organizar sua própria representação política. Sem isso, qualquer sistema será apenas uma nova promessa frustrada em uma história já longa de expectativas interrompidas.

Como as manifestações de 14 de dezembro podem influenciar a PEC 38/2025 no Congresso Nacional?



Nas últimas semanas, as ruas brasileiras foram palco de novas manifestações políticas em ao menos 21 capitais contra o chamado “PL da Dosimetria” e outras pautas legislativas impulsionadas pelo Congresso Nacional. Essas mobilizações ecoaram um sentimento amplo de repúdio a projetos percebidos como ameaças à democracia e à responsabilização de envolvidos em atos antidemocráticos — ainda que o público tenha sido menor do que o registrado em atos anteriores, como os de 21 de setembro de 2025.

Um dos principais focos do debate público nas últimas semanas, entretanto, envolve também a Proposta de Emenda à Constituição nº 38/2025 (PEC 38) — conhecida no meio político como a Reforma Administrativa — que foi protocolada na Câmara dos Deputados em outubro e vem gerando intensa resistência de servidores públicos, entidades ligadas ao funcionalismo e setores da sociedade civil.


📌 O que é a PEC 38/2025?

A PEC 38/2025 propõe uma ampla reforma administrativa da estrutura do Estado brasileiro. Oficialmente, seus autores afirmam que a intenção é modernizar a gestão pública, promover eficiência e combater privilégios, com medidas que incluem:


  • avaliações de desempenho para progressão na carreira;
  • extinção de vantagens como anuênios e licenças-prêmio;
  • alteração de normas relativas à gestão de pessoal e governança pública.


Contudo, críticos argumentam que a proposta — na prática — representa um ataque aos direitos e garantias do serviço público, podendo prejudicar a qualidade dos serviços prestados à população e fragilizar importantes mecanismos de fiscalização e proteção social. Organizações sindicais também apontam que a PEC pode ferir cláusulas pétreas da Constituição, como a autonomia dos entes federados e a separação de poderes, além de criar mecanismos que enfraquecem a estabilidade e os direitos de servidores e servidoras.


📌 Resumo das manifestações

As manifestações do último domingo (14) reuniram mobilizações em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Salvador, com participação de movimentos sociais, artistas e setores organizados da sociedade civil. O foco principal desses atos foi a defesa da democracia e a crítica a projetos de lei que possam flexibilizar penas ou reduzir a responsabilização por atos antidemocráticos, como o PL da Dosimetria — embora tenha havido repercussão também sobre outras pautas legislativas em curso no Congresso.

Comparativamente, os protestos de 21 de setembro, que se concentraram contra a chamada PEC da Blindagem — proposta que alteraria regras de processo penal para parlamentares e diversas garantias jurídicas — mobilizaram um público maior e com destaque nacional, inclusive com a presença de artistas renomados e grandes concentrações em locais como a Avenida Paulista e Copacabana.


📌 Efeito das manifestações sobre a PEC 38 no Congresso Nacional

Embora as manifestações recentes não tenham sido direcionadas exclusivamente à PEC 38, elas fazem parte de um contexto mais amplo de pressão social sobre o Legislativo, que vem enfrentando críticas por impulsionar propostas percebidas por muitos como desconectadas dos interesses da maioria da população.

No caso da PEC 38, a mobilização nos últimos meses já se mostrou relevante para criar resistência política dentro e fora do Congresso Nacional:


  • Marchas nacionais e protestos de servidores públicos em Brasília evidenciaram a oposição organizada à reforma administrativa, destacando que a proposta pode enfraquecer o Estado e prejudicar serviços essenciais à população.
  • A pressão acumulada contribuiu para que vários deputados e líderes parlamentares recuassem ou se distanciassem do apoio à PEC 38, dificultando o avanço irrestrito da proposta no Plenário.


É importante ressaltar que PECs só avançam com 3/5 dos votos em dois turnos em cada uma das Casas Legislativas. Isso significa que, mesmo sem ampla maioria, uma articulação forte no Congresso pode levar a tramitação acelerada. Porém, a combinação de mobilização popular, resistência institucional e debate público intenso tende a encarecer politicamente a aprovação de matérias impopulares. A experiência recente com a PEC da Blindagem — em que senadores chegaram a recuar após forte pressão pública — ilustra como a mobilização pode alterar cálculos no plenário.


📌 Expectativas e cenário político

A aprovação da PEC 38/2025 ainda continua sendo um tema de disputa no Congresso. De um lado, parlamentares e grupos que defendem “modernização” da administração pública articulam apoio à proposta. De outro, entidades sindicais, servidores e segmentos sociais pressionam para que a PEC seja revista ou até mesmo retirada de pauta, argumentando que ela traria prejuízos sociais e institucionais.

As manifestações — especialmente quando mantêm presença ativa e ampla articulação — podem:


  • aumentar o custo político de apoio à PEC no plenário;
  • estimular parlamentares a repensar votos em função de pressões locais;
  • ampliar o debate público e institucional em torno dos riscos da proposta.


Ao mesmo tempo, cabe lembrar que o papel do Congresso é deliberativo e que, sem uma frente parlamentar ampla e consolidada contra a PEC, ela ainda pode avançar, especialmente se setores políticos fortes apoiarem o texto com vistas a uma agenda de mudanças estruturais.


📌 Conclusão

As manifestações de 14 de dezembro, integradas a uma sequência de protestos e mobilizações ao longo dos últimos meses, podem enfraquecer politicamente a tramitação da PEC 38/2025, mesmo que não a derrubem automaticamente. Elas reforçam a necessidade de uma interlocução constante entre sociedade civil e representantes eleitos, lembrando que o Congresso — em qualquer reforma de grande impacto — deve ouvir e refletir o clamor popular.

Assim, o desfecho da PEC 38 dependerá não apenas da pressão das ruas, mas também da capacidade de organização política e institucional das forças contrárias e favoráveis dentro do próprio Congresso Nacional.

O Jardim de Dois Caminhos



Rodrigo Tanaka, bisneto de japoneses nascido em São Paulo, desembarcou no aeroporto de Narita com o coração apertado e a Bíblia debaixo do braço. Neo-pentecostal convicto, tinha uma missão clara: levar a “verdadeira fé” aos descendentes de seus ancestrais. Tóquio, com suas luzes de néon e multidão apressada, parecia-lhe ao mesmo tempo estranha e familiar.

Nos primeiros dias, Rodrigo percorria bairros comerciais e templos, tentando iniciar conversas sobre Jesus. Cada tentativa encontrava sorrisos gentis, mas recusas educadas. Ele via indiferença, mas aos poucos percebeu algo diferente: os japoneses valorizavam a convivência pacífica entre crenças diferentes, e sua fé era respeitada, mas não imposta.

Foi em um pequeno café em Shinjuku que conheceu Aiko, jovem de Hiroshima de olhos claros e sorriso tranquilo. Conversaram sobre trabalho, música e, inevitavelmente, religião. Rodrigo, ansioso para explicar sua fé, ficou surpreso quando Aiko contou que sua família praticava xintoísmo e budismo.


  • “Então vocês acreditam em tudo ao mesmo tempo?” — perguntou ele.
  • “Não é questão de acreditar em tudo,” respondeu Aiko, “é questão de viver cada momento respeitando o que é sagrado para cada um.”


Rodrigo ficou intrigado. Para ele, fé era dogma e exclusividade. Mas o que via nos relatos de Aiko era diferente: o xintoísmo no Japão lida com a vida, a natureza e festividades, enquanto o budismo se ocupa da morte e da reflexão espiritual. Cada prática cumpria sua função, coexistindo de maneira harmoniosa.

Nas semanas seguintes, Rodrigo viajou com Aiko a Hiroshima. Conheceu os pais dela, que mantinham um kamidana (pequeno altar xintoísta em casa) para oferecer orações aos kami — espíritos da natureza ou ancestrais — e um butsudan (altar budista) para honrar falecidos. Ele participou de festivais locais, ou matsuri, que celebravam os deuses locais com dança, música e oferendas. Também assistiu a funerais em templos budistas, marcados por silêncio, reverência e meditação.

Um dia, Aiko o levou a conhecer seu tio-avô, Kenji, sobrevivente da bomba atômica de 1945. Sentados sob cerejeiras em flor, Kenji contou:


  • “Após a guerra, os americanos ocuparam o país. O xintoísmo estatal, aquele que dizia que o imperador era divino, foi abolido. Mas o povo podia continuar praticando xintoísmo e budismo livremente. Aprendemos que a fé é uma escolha, não uma imposição.”


Rodrigo sentiu o peso da história e da resiliência de um povo. Começou a refletir: sua fé não precisava ser uma espada contra o outro; podia ser uma bússola interior, coexistindo com respeito e tolerância.

Ele aprendeu sobre o hatsumode, a visita aos santuários no Ano Novo, e sobre os rituais de casamento e bênçãos familiares; sobre a importância de não conflitar crenças e de participar de celebrações comunitárias sem perder sua própria fé. A ideia de “converter” alguém aos poucos perdeu sentido.

Meses depois, Rodrigo e Aiko caminharam pelo templo xintoísta local, rodeados por lanternas de pedra, sons suaves de sinos e folhas de cerejeira caindo. Ele não via mais um “pagão” ou “desconhecido”, mas alguém cuja espiritualidade complementava a dele. Casaram-se ali, com monges budistas recitando orações discretas, e Rodrigo sentiu que fé verdadeira também é tolerância, amor e convivência pacífica.

De volta a Tóquio, Rodrigo ainda frequentava sua igreja, mas agora com o coração mais leve. Compreendia que a religião no Japão não era sobre dominação ou conversão, mas sobre respeito, tradição e harmonia. Aprendeu que podia ser um homem de fé sem querer moldar o mundo inteiro à sua visão, e que a diversidade espiritual era um presente que enriquecia a vida cotidiana.

E assim, entre santuários xintoístas, templos budistas e a vida moderna de Tóquio, Rodrigo encontrou não apenas trabalho e família, mas uma nova forma de enxergar Deus e o mundo, aprendendo que cada caminho sagrado pode coexistir em paz quando guiado pela compreensão e pelo amor.


📝 Notas culturais e religiosas explicadas no conto

  • Kami: espíritos da natureza, ancestrais ou divindades do xintoísmo.
  • Kamidana: pequeno altar doméstico xintoísta, usado para orações e oferendas.
  • Butsudan: altar budista doméstico para honrar antepassados falecidos.
  • Matsuri: festivais locais celebrando deuses ou espíritos, com rituais, danças e comida.
  • Hatsumode: visita anual a santuários xintoístas no Ano Novo, para bênçãos e desejos.

📷: Santuário Kanda-Myojin em Tóquio, 07/08/2013, extraída do Flicker, em https://www.flickr.com/photos/pelican/9507449790/

domingo, 14 de dezembro de 2025

Sob o Sol de Dezembro, a Democracia caminhou em Copacabana



Hoje, milhares de brasileiros e brasileiras ocuparam de forma pacífica as ruas de dezenas de cidades em todo o país para reafirmar um princípio fundamental de toda democracia: a voz ativa do povo como força legítima de participação política. Mesmo diante do forte calor típico desta época do ano e da proximidade do período natalino — circunstâncias que poderiam desencorajar a mobilização — a presença nas ruas demonstrou compromisso com a democracia, a justiça e os valores constitucionais que regem o Brasil.


Em Copacabana, no Rio de Janeiro, a manifestação concentrou-se entre os postos 4 e 5 da orla, reunindo milhares de pessoas em um ambiente plural, pacífico e marcado pelo engajamento cívico. Movimentos sociais, sindicatos, estudantes, partidos políticos e cidadãos sem filiação partidária compartilharam o mesmo espaço público para expressar preocupação com os rumos do país e defender a responsabilização por atos que atentaram contra o Estado Democrático de Direito.


Entre as lideranças políticas presentes, destacou-se a participação do deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), cuja fala sintetizou o espírito de resistência democrática que marcou o ato e as perseguições políticas que vem sofrendo na Câmara culminando na sua suspensão por seis meses quanto ao exercício do mandato. Em sua manifestação no Facebook, Glauber afirmou:


Eles pensaram que, com os métodos tradicionais de coação, nós ficaríamos calados. Que nos dobraríamos. Mas eles estão falando com militantes da esquerda brasileira que não se entregam.

Nos próximos 6 meses o nosso mandato não ficará sem gabinete, porque o gabinete será a praça pública, será a rua, mobilizando junto com as pessoas a luta contra a anistia dos golpistas.


A declaração reforçou a ideia de que o mandato parlamentar não se limita aos espaços institucionais, mas se projeta na rua, no diálogo direto com a população e na defesa permanente da democracia frente a retrocessos.


O ato em Copacabana também teve forte presença cultural. Convocado pelo cantor Caetano Veloso, o encontro reuniu artistas e personalidades da música e da cultura brasileira, como Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Emicida, Lenine, Fernanda Abreu, Duda Beat, Xamã, Baco Exu do Blues e Tony Bellotto, entre outros. A participação desses nomes reforçou o papel histórico da cultura como instrumento de consciência política, resistência e mobilização social.


A pauta central das manifestações foi a crítica ao chamado PL da Dosimetria, projeto de lei recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados e atualmente em análise no Senado Federal. Para os manifestantes, a proposta representa uma tentativa de suavizar penas e abrir brechas para a redução de punições aplicadas a condenados por crimes relacionados aos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, sendo interpretada por amplos setores da sociedade como uma forma indireta de anistia aos golpistas.


Além dessa pauta central, os atos também expressaram preocupação com:


- a defesa das instituições democráticas;

- a necessidade de transparência e responsabilidade no uso de recursos públicos;

- a rejeição a retrocessos em direitos sociais, ambientais e dos povos indígenas;

- a valorização dos direitos humanos e das liberdades civis.


Em comparação com os protestos de 21 de setembro de 2025, realizados contra a chamada PEC da Blindagem e propostas de anistia mais amplas, as manifestações deste domingo reuniram um público numericamente menor. Em setembro, Copacabana chegou a concentrar mais de 40 mil pessoas, em um contexto de forte sensação de ameaça estrutural e imediata às instituições. Ainda assim, o ato de dezembro mantém enorme relevância política: ocorreu em pleno período natalino, sob altas temperaturas, e tratou de uma pauta mais técnica — o que torna a mobilização ainda mais significativa do ponto de vista do engajamento consciente.


A repercussão nacional foi ampla, com manifestações em diversas capitais e cidades do interior, como São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza, Recife e Salvador. A mobilização também repercutiu na imprensa internacional, que acompanha atentamente os desdobramentos legislativos e judiciais no Brasil, sobretudo no que diz respeito à responsabilização por ataques à democracia.


Quanto às expectativas em relação ao Congresso Nacional, a pressão social exerce papel fundamental no debate que agora se desloca para o Senado. A mobilização popular envia um recado claro aos parlamentares: decisões dessa magnitude não podem ser tomadas à revelia da sociedade. Ainda que existam instrumentos institucionais como veto presidencial e controle judicial, a escuta ativa da população é indispensável para a legitimidade democrática.


Por fim, é essencial reafirmar que manifestações sociais pacíficas são pilares centrais de uma democracia viva e saudável. Elas fortalecem o debate público, ampliam a participação cidadã e lembram que os direitos e garantias democráticas não são concessões, mas conquistas permanentes. A todas as pessoas que estiveram presentes hoje — enfrentando o sol forte, o cansaço e os compromissos de fim de ano — fica o reconhecimento: a democracia se constrói com presença, coragem e participação coletiva.

Quando a força tenta substituir o Direito: o caso do petroleiro venezuelano



A recente apreensão, por autoridades dos Estados Unidos, de um navio petroleiro transportando petróleo venezuelano com destino a Cuba não é apenas mais um episódio de tensão geopolítica. Trata-se de um fato grave, que lança sérias dúvidas sobre o respeito do governo Donald Trump aos fundamentos do Direito Internacional e à própria ordem multilateral construída no pós-guerra.

O episódio, amplamente noticiado pela imprensa internacional, teria ocorrido em alto-mar, com base exclusiva em sanções econômicas unilaterais impostas pelos Estados Unidos. Não houve autorização do Conselho de Segurança da ONU, tampouco consentimento do Estado da bandeira do navio. Ainda assim, Washington decidiu agir como se sua legislação interna tivesse alcance planetário.

Esse comportamento não é um detalhe técnico: ele atinge o coração do Direito do Mar. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) estabelece, de forma clara, que embarcações em alto-mar estão submetidas à jurisdição exclusiva do Estado cuja bandeira ostentam. As exceções a essa regra são taxativas — pirataria, tráfico de escravos, rádio pirata, navio sem nacionalidade — e nenhuma delas se confunde com a suposta violação de sanções unilaterais.

Quando um Estado ignora essas normas e decide apreender um navio estrangeiro com base apenas em sua própria lei, abre-se um precedente perigoso: o da substituição do Direito pela força. Se todos os países resolvessem agir da mesma forma, os mares deixariam de ser espaço de cooperação e liberdade de navegação para se tornarem território de disputas arbitrárias, regidas pela lei do mais forte.

Outro ponto central é a natureza das sanções aplicadas pelos Estados Unidos contra Venezuela e Cuba. Diferentemente das sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU, essas medidas não possuem legitimidade universal. São decisões políticas internas, que não podem, à luz do Direito Internacional, produzir efeitos coercitivos automáticos sobre terceiros Estados ou sobre o comércio internacional em alto-mar.

Não por acaso, mecanismos das próprias Nações Unidas — como o Relator Especial sobre medidas coercitivas unilaterais — vêm reiteradamente alertando que esse tipo de sanção, quando aplicada de forma extraterritorial, viola princípios básicos como a soberania, a não intervenção e o direito ao desenvolvimento. No caso concreto, os impactos recaem não sobre governos abstratos, mas sobre populações civis, que dependem de energia, transporte e cooperação econômica para garantir condições mínimas de vida.

Chamar esse tipo de prática de “pirataria” pode não ser tecnicamente preciso no sentido jurídico estrito, já que a pirataria pressupõe atos privados. Mas, no plano político e moral, a expressão cumpre um papel simbólico importante: denuncia a apropriação indevida de bens alheios em alto-mar, sem respaldo no sistema jurídico internacional.

O mais preocupante é a naturalização desse comportamento. Quando uma potência global se coloca acima das regras que ajudou a construir, enfraquece-se todo o edifício do multilateralismo. Hoje é um navio venezuelano; amanhã pode ser qualquer outro país que não se alinhe aos interesses de quem detém maior poder militar e econômico.

Diante disso, cabe à comunidade internacional — e também à sociedade civil — não tratar o episódio como algo trivial. Questionar, denunciar e debater esses atos é fundamental para preservar a ideia de que as relações entre os Estados devem ser regidas pelo Direito, e não pela força. Caso contrário, abre-se caminho para um mundo em que tratados viram papel morto e a legalidade internacional se torna apenas um discurso conveniente, descartável quando deixa de servir aos interesses das grandes potências.

Defender o Direito Internacional não é defender governos específicos, mas sim proteger um mínimo de previsibilidade, justiça e equilíbrio nas relações globais. Quando esse direito é violado, todos perdem — especialmente os mais vulneráveis.

Racismo religioso no Brasil: dívida histórica e caminhos para a efetivação da imunidade tributária dos terreiros



O racismo religioso no Brasil é uma das expressões mais persistentes e invisibilizadas do racismo estrutural. Embora a Constituição Federal de 1988 consagre a liberdade religiosa e assegure a imunidade tributária aos “templos de qualquer culto”, a realidade vivida pelas religiões de matriz africana revela uma distância profunda entre o texto constitucional e sua aplicação concreta. Terreiros de Candomblé, Umbanda, Batuque, Tambor de Mina e outras tradições afro-brasileiras continuam enfrentando obstáculos burocráticos, discriminação institucional e violência simbólica e material que negam, na prática, direitos que são formalmente garantidos.


1. O racismo religioso como herança da escravidão

A perseguição às religiões de matriz africana no Brasil não é um fenômeno recente. Desde o período colonial, práticas religiosas africanas foram criminalizadas, associadas à feitiçaria, à desordem moral e à ameaça à ordem pública. O Código Penal do Império e, posteriormente, o Código Penal da República, trataram essas manifestações como crime ou contravenção. A repressão policial aos terreiros atravessou todo o século XX, mesmo após a separação formal entre Estado e Igreja.

Essa trajetória produziu efeitos duradouros. Diferentemente de igrejas cristãs, que se institucionalizaram com personalidade jurídica, registros patrimoniais e reconhecimento estatal, muitos terreiros se organizaram como espaços comunitários, familiares e ancestrais, marcados pela oralidade, pela circularidade do saber e pela resistência cultural. Essa diferença histórica é frequentemente ignorada pelo poder público, que exige dos terreiros padrões formais de documentação e organização moldados a partir de uma lógica eurocristã.


2. Racismo religioso hoje: entre a violência e a negação de direitos

Atualmente, o racismo religioso se manifesta de forma múltipla: ataques físicos a terreiros, destruição de imagens, discursos de ódio, expulsões de comunidades por grupos fundamentalistas e, de forma mais silenciosa, pela negação de direitos administrativos e tributários. Quando um município cobra IPTU de um terreiro ou nega o reconhecimento de sua imunidade tributária, não se trata apenas de um ato burocrático: trata-se de uma continuidade histórica da marginalização dessas religiões.

A Constituição é clara ao afirmar que a imunidade tributária alcança templos de qualquer culto, como instrumento de proteção à liberdade religiosa. No entanto, na prática administrativa municipal, essa garantia muitas vezes se transforma em um privilégio seletivo, acessível apenas a instituições religiosas que se enquadram em formatos tradicionais, formais e hegemônicos.


3. A dívida histórica do Estado brasileiro com os afrodescendentes

Reconhecer a imunidade tributária dos terreiros não é concessão nem favor: é parte de uma dívida histórica do Estado brasileiro com os povos afrodescendentes. As religiões de matriz africana foram fundamentais para a preservação da identidade, da memória e da resistência cultural negra diante da escravidão, do racismo e da exclusão social.

Negar direitos a esses espaços é perpetuar desigualdades históricas e reforçar a lógica de que determinadas expressões religiosas são menos legítimas do que outras. A efetivação da imunidade tributária deve ser compreendida como política de reparação institucional, em consonância com os princípios constitucionais da dignidade humana, da igualdade material e do combate ao racismo.


4. O papel estratégico dos municípios

Embora a imunidade tributária seja uma limitação constitucional ao poder de tributar, sua efetivação cotidiana passa, em grande medida, pelos municípios, especialmente no que se refere ao IPTU. Por isso, é no âmbito municipal que se concentram muitos dos entraves – e também as maiores possibilidades de transformação. Neste sentido, seguem propostas para facilitar o reconhecimento da imunidade tributária dos terreiros:


4.1. Normatização administrativa clara
Os municípios podem editar decretos, instruções normativas ou portarias que reconheçam expressamente os terreiros como templos de culto para fins tributários, evitando interpretações restritivas por parte de fiscais e secretarias de fazenda.


4.2. Procedimentos simplificados de reconhecimento
Criar processos administrativos simplificados, com exigências documentais compatíveis com a realidade dos terreiros, respeitando suas formas próprias de organização e ocupação do espaço.


4.3. Capacitação de servidores públicos
Promover formação continuada para fiscais, procuradores municipais e gestores sobre liberdade religiosa, racismo religioso e diversidade cultural, reduzindo decisões baseadas em preconceitos ou desconhecimento.


4.4. Reconhecimento autodeclaratório com presunção de boa-fé
Adotar mecanismos de autodeclaração do caráter religioso do espaço, com presunção de legitimidade, cabendo ao poder público apenas a fiscalização posterior em casos excepcionais.


4.5. Articulação intersetorial
Integrar secretarias de fazenda, cultura, direitos humanos e igualdade racial, reconhecendo os terreiros também como patrimônios culturais imateriais e espaços de proteção comunitária.


4.6. Conselhos e diálogo permanente
Instituir ou fortalecer conselhos municipais de promoção da igualdade racial e de liberdade religiosa, com participação efetiva de lideranças de matriz africana.


5. Conclusão

O combate ao racismo religioso no Brasil exige mais do que discursos genéricos sobre tolerância. Exige decisões administrativas concretas, políticas públicas afirmativas e o reconhecimento de que a neutralidade formal do Estado não pode servir de escudo para a reprodução de desigualdades históricas.

Garantir a imunidade tributária aos terreiros de religiões de matriz africana é cumprir a Constituição, promover justiça histórica e fortalecer a democracia. Enquanto esse direito continuar sendo negado ou dificultado, o Brasil seguirá em dívida com sua própria história e com milhões de cidadãos cuja fé, cultura e ancestralidade sustentaram – e ainda sustentam – a resistência contra o racismo estrutural.

Lula e as eleições de 2026: por que Tarcísio pode ser um adversário mais difícil (e ao mesmo tempo mais estável)

 


Uma recente matéria da CartaCapital sugere que o PT e Lula veem Tarcísio de Freitas como um adversário “mais fácil” do que Flávio Bolsonaro em uma possível disputa presidencial de 2026. No entanto, uma análise mais detalhada mostra que essa percepção pode não refletir a realidade eleitoral.

Do ponto de vista das pesquisas, Tarcísio apresenta menor rejeição que Flávio Bolsonaro — aproximadamente 30% a 35%, contra 50% a 55% do senador. Uma menor rejeição significa que ele tem maior potencial de conquistar eleitores moderados e centristas, além de atrair o apoio de setores empresariais e políticos que não se alinham com a base bolsonarista tradicional. Flávio, apesar do reconhecimento de nome e de sua base consolidada, enfrenta um obstáculo natural na rejeição mais alta, o que tende a favorecer Lula em cenários de segundo turno. Vale destacar que, como senador, Flávio não precisaria abrir mão do mandato para disputar a presidência, o que garante a ele um certo grau de estabilidade política pessoal, mas não altera a dinâmica eleitoral.

Essa combinação de menor rejeição e potencial de unidade da direita e do centro coloca Tarcísio em um patamar eleitoral mais competitivo do que Flávio. Cenários simulados indicam que, enquanto Lula poderia vencer Flávio com relativa margem de segurança (aproximadamente 55% a 45%), uma disputa contra Tarcísio poderia se aproximar de um empate técnico ou vitória apertada de Lula, dependendo da consolidação do apoio da oposição moderada. Ou seja, do ponto de vista estritamente eleitoral, Tarcísio não é um adversário necessariamente mais fácil — pelo contrário, sua menor rejeição e capacidade de formar alianças tornam a disputa mais equilibrada.

No entanto, é justamente essa característica moderada de Tarcísio que oferece uma vantagem significativa do ponto de vista da estabilidade política e institucional. Diferente de Flávio, que é associado a discursos mais radicais e confrontações com instituições, Tarcísio atua dentro do campo democrático, respeitando as regras eleitorais e os limites institucionais. Um segundo turno Lula x Tarcísio — mesmo equilibrado — tende a gerar menos tensão pós-eleitoral, reduzir riscos de contestação de resultados e preservar a governabilidade do país.

Portanto, a suposta “preferência” do PT por Tarcísio não se explica pela facilidade de vitória, mas sim por um cálculo estratégico que equilibra disputa eleitoral e estabilidade institucional. Lula enfrentaria um adversário mais competitivo, mas o país teria maior segurança de que o processo democrático seria respeitado, independentemente de quem vença em 2026.


📝 Nota de simulação de cenários (hipotética), realizados com a auxílio do ChatGPT

(para ilustrar os possíveis resultados em um segundo turno)


- Lula x Flávio Bolsonaro Alta (50–55%): Lula 55% – Flávio 45%. Vitória confortável de Lula, mas maior risco de radicalização da oposição

- Lula x Tarcísio (união parcial da direita/centro): Lula 52% – Tarcísio 48%  Disputa apertada, equilíbrio mais intenso

- Lula x Tarcísio (união total da direita/centro): Lula 50% – Tarcísio 50% (empate técnico). Cenário mais desafiador para Lula, porém com menor risco institucional


OBS: Tarcísio representa um adversário mais competitivo do ponto de vista eleitoral devido à menor rejeição e capacidade de formar alianças. Flávio, apesar de base sólida e mais engajada, é menos competitivo devido à rejeição alta, favorecendo a vitória de Lula. Por outro lado, a disputa contra Tarcísio é menos arriscada institucionalmente, garantindo estabilidade política e governabilidade, mesmo em um cenário apertado.

sábado, 13 de dezembro de 2025

A candidatura do vazio político?!



A tentativa de apresentar Flávio Bolsonaro como liderança nacional revela menos um projeto de país e mais um esforço de herança política. Sua pré-campanha, ao que parece, não nasce de uma trajetória marcada por ideias, propostas ou visão estratégica para o Brasil, mas da necessidade de manter viva uma marca familiar que já demonstrou seus limites e contradições quando esteve no poder.


Até aqui, Flávio Bolsonaro não apresentou um plano de governo consistente, metas claras ou diagnósticos próprios sobre os grandes desafios nacionais. Seu discurso oscila entre a promessa vaga de “dar continuidade ao projeto do pai” e movimentos defensivos para se blindar de escândalos passados. Em vez de liderar o debate público, reage a ele. Em vez de propor, recua. Em vez de convencer, tenta sobreviver politicamente.


A ausência de um projeto nacional não é detalhe: é o centro do problema. Um candidato à Presidência precisa dizer ao país o que pretende fazer com a economia, como enfrentará as desigualdades, qual será sua política ambiental, como fortalecerá as instituições democráticas e que lugar o Brasil ocupará no mundo. Flávio Bolsonaro, até o momento, limita-se a slogans ideológicos, críticas genéricas ao governo atual e à repetição de uma agenda que já foi testada — e rejeitada — nas urnas.


Sua pré-campanha também expõe insegurança política. Declarações ambíguas sobre desistir, recuos retóricos e tentativas de parecer “mais moderado” revelam um candidato que ainda busca uma identidade própria. Isso reforça a percepção de que sua candidatura não nasce de convicção ou vocação pública, mas de cálculo familiar e partidário.


Não se trata apenas de comparar estilos. Trata-se de substância. O bolsonarismo, enquanto esteve no Planalto, deixou um legado de instabilidade institucional, isolamento internacional e conflitos permanentes. Flávio Bolsonaro não apresentou nenhuma autocrítica a esse período, nem explicou o que faria de diferente. Ao contrário, se apoia nele como credencial política.


O Brasil não precisa de um herdeiro político tentando administrar um espólio ideológico. Precisa de lideranças com ideias claras, coragem para enfrentar a complexidade do país e compromisso real com a democracia, a ciência, o diálogo e as políticas públicas baseadas em evidências.