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quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

4 de dezembro: memória, fé e o legado da intolerância religiosa



No dia 4 de dezembro, somos lembrados de três marcos históricos — distintos em seu contexto, mas unidos pelo seu significado profundo: a esperança de fé, o martírio e, sobretudo, a violência da intolerância religiosa. 

A data evoca a memória da Santa Bárbara de Nicomédia — mártir do cristianismo —, remonta às tragédias da Primeira Cruzada com a conquista de Sídon (1110) e converge com o exílio imposto a comunidades judaicas e muçulmanas na Portugal de 1496. 

Revisitar esses episódios e conectá-los aos dias de hoje ajuda a colocar em perspectiva os ciclos de fé, violência e resistência — e a lembrar da urgência da tolerância religiosa.


🕯️ Santa Bárbara: fé, martírio e significado simbólico

Segundo a tradição cristã, Santa Bárbara nasceu em Nicomédia (atual Turquia) por volta do ano 280 d.C. Era filha única de um homem pagão chamado Dióscoro, que, temendo pela segurança dela, a enclausurou em uma torre. Lá, Bárbara se converteu ao cristianismo e, rejeitando casamentos e o abandono de sua fé, foi denunciada, torturada e decapitada por seu próprio pai — no dia 4 de dezembro. Diz a lenda que Dióscoro foi morto por um raio logo depois, interpretado como sinal divino.

Com o tempo, Bárbara passou a ser venerada como santa — padroeira contra tempestades, raios, fogo; protetora de bombeiros, mineiros e artilheiros. No Brasil, especialmente na Bahia, sua festa no dia 4 de dezembro se transformou em celebração popular marcada pelo sincretismo: católicos e seguidores das religiões de matriz africana, como o Candomblé, juntos veneram a figura de Santa Bárbara, muitas vezes associando-a à orixá Iansã — senhora dos ventos, trovões e tempestades.

Esse sincretismo revela, de forma simbólica, como crenças de origens diversas podem conviver, fundir tradições e gerar práticas culturais e religiosas plurais. A figura de Santa Bárbara — uma mulher que, pela fé, rompeu com imposições familiares e pagãs, mesmo enfrentando a morte — ressoa como símbolo de resistência, convicção e liberdade de consciência.


⚔️ A Primeira Cruzada e a conquista de Sídon — violência religiosa e dominação

A Primeira Cruzada, iniciada no fim do século XI, representou um momento em que a religião se converteu em instrumento de guerra, conquista e repressão. Após a tomada de Jerusalém, os exércitos cruzados continuaram campanhas pelo Levante. No ano de 1110, Sídon foi cercada e conquistada por forças lideradas por cruzados — concretizando o domínio cristão em territórios predominantemente muçulmanos ou cristãos de outras tradições.

Mais do que uma disputa territorial, a Cruzada expressava uma mentalidade de supremacia religiosa — impondo conversões, expulsões, massacres e apagamento de comunidades inteiras consideradas “infiéis”. Um dos capítulos mais brutais desse ciclo foi o massacre de povos judeus e muçulmanos, que culminou em violência extrema, expulsões, destruição de locais de culto e reestruturação demográfica e cultural da região.

Esse padrão de guerra sagrada — fé misturada a política, poder e dominação — deixou marcas profundas na história do Oriente Médio e moldou tensões religiosas e culturais que persistem até hoje. A aliança entre religião e força militar transformou povos, culturas e estruturas sociais, muitas vezes pela dor, pelo exílio ou pela morte.


🚫 1496 — Expulsão de judeus e muçulmanos de Portugal: limpeza religiosa e apagamento de memória

Séculos após as Cruzadas, já na Europa, o uso da religião para definir identidades nacionais voltou a se manifestar de forma sistemática: em 1496, o Manuel I de Portugal ordenou a expulsão de judeus e muçulmanos do reino — exigindo conversão ou partida. Comunidades inteiras foram forçadas a abandonar suas casas, sinagogas e mesquitas foram destruídas ou transformadas, e um passado milenar de convivência plurirreligiosa foi apagado.

Estimativas colocam entre 20.000 e 100.000 o número de judeus afetados, além de um contingente menor, porém também expressivo, de muçulmanos. Essa política de limpeza religiosa buscava construir um Estado homogêneo, cristão, negando identidades distintas e desacreditando a presença histórica dessas comunidades.

Hoje há quem reaproveite esse passado para revisitar a história, recuperar identidades e lembrar que a diversidade religiosa — muito antes de ser “descoberta” — existiu e floresceu. Há, inclusive, reconhecimento oficial: em 2015, Portugal aprovou uma lei que oferece cidadania a descendentes de judeus expulsos, admitindo publicamente a injustiça histórica cometida.

Esse episódio evidencia como a intolerância institucionalizada, a perseguição e o exílio religiosamente motivados foram parte integrante da formação da Europa moderna — e como os rastros dessa história reverberam até os dias de hoje.


🌍 Intolerância religiosa hoje — no Brasil e no mundo

Infelizmente, o passado não está superado. A intolerância religiosa continua viva — sob novas formas — tanto no Brasil quanto globalmente.

No Brasil, os dados mais recentes são alarmantes: em 2024, foram registradas 2.472 denúncias de intolerância religiosa pelo canal Disque 100, coordenado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) — um aumento de 66,8 % em relação a 2023. Religiões de matriz africana, como o Umbanda e o Candomblé, são as mais afetadas. As vítimas são majoritariamente mulheres, e os estados com mais denúncias incluem São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.

Além disso, no mundo, há exemplos recentes de ódio e crimes religiosos: por exemplo, o aumento recorde de crimes de ódio religioso na Inglaterra e no País de Gales após a guerra em Gaza — com ataques dirigidos a judeus e muçulmanos. Também se verifica um recrudescimento da islamofobia, antisemitismo e atitudes de hostilidade contra minorias religiosas interior e exteriormente em muitos países.

Esses dados mostram que, apesar das leis de liberdade de culto, o preconceito, a ignorância, o medo e o fanatismo continuam promovendo discriminações, violências simbólicas e concretas. A intolerância religiosa se manifesta de muitas formas — desde agressões físicas ou verbais até destruição de templos, exclusão social, perseguição e estigmatização — e atinge principalmente aqueles que professam religiões menos hegemônicas ou historicamente marginalizadas.


🎯 Por que recordar 4 de dezembro importa — e o que isso nos ensina

Unir em um mesmo dia a memória de Santa Bárbara, o relato das Cruzadas e a expulsão em Portugal permite enxergar um trajeto histórico de como a religião, em muitos momentos, foi instrumento de exclusão, dominação e violência. Ao mesmo tempo, revela a força simbólica da fé enquanto resistência e identidade — como no caso de Santa Bárbara, mas também na persistência de comunidades que, apesar da perseguição, seguem mantendo suas crenças e tradições.

Para o Brasil contemporâneo — país de profunda diversidade religiosa —, essa reflexão se torna ainda mais urgente. Os dados de 2024 mostram que a intolerância religiosa não é algo do passado: é uma realidade presente, que atinge pessoas de religiões afro-brasileiras, evangélicos, católicos, espíritas, islâmicos, judeus, entre outros.

Celebrar 4 de dezembro não deve ser apenas um ato de fé ou tradição — mas um momento de consciência crítica. Lembrar das feridas do passado, reconhecer os erros cometidosblog do em nome da religião, valorizar a pluralidade cultural e religiosa, e renovar o compromisso com a tolerância, o respeito e a liberdade de crença.

Se quisermos um Brasil — e um mundo — onde fé e convivência não signifiquem exclusão, discriminação ou medo, esse dia deve servir como um lembrete: a memória deve alimentar a empatia.

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