Uma das passagens que muio me toca no Evangelho de Lucas é a narrativa sobre os dois discípulos no caminho de Emaús, a qual se encontra nos versos de 13 a 35 do capítulo 24. Como vimos no último estudo bíblico, Jesus havia ressuscitado de modo que as mulheres que o seguiam desde a Galileia, quando foram ao túmulo, encontraram o local vazio. Só que os apóstolos não acreditaram nos relatos delas, considerando tal experiência um "delírio" ou "tolice" (Lc 24:11).
Assim, dois discípulos de Jesus resolveram retornar para a casa no primeiro Domingo de Páscoa, caminhando de Jerusalém até uma antiga aldeia de localização até hoje inexata em que a narrativa bíblica diz ficar numa distância de "sessenta estádios" da Cidade Santa (v. 13). Ou seja, cerca de dez quilômetros no atual sistema de medidas. E, ao que me parece, ambos estariam também se afastando do colégio de discípulos e da fé em Cristo. Tanto no sentido físico como no espiritual.
O texto sagrado nos relata que, enquanto andavam pela estrada, conversavam sobre as coisas que tinham acontecido com Jesus. Estavam, evidentemente, entristecidos e sem esperança. Demonstravam uma incompreensão acerca da obra redentora realizada pelo Mestre e, assim como os onze apóstolos (Judas já não fazia mais parte), também não deram crédito ao testemunho das mulheres já que alguns discípulos foram até o sepulcro e nada encontraram de excepcional (v. 24).
Um outro viajante aproximou-se da dupla durante a caminhada, colocando-se ao lado deles. Era o Senhor Jesus já ressuscitado, mas ambos não conseguiram reconhecê-lo de imediato. Agindo terapeuticamente e com uma pedagogia magistral, o Mestre então lhes perguntou acerca da conversa que levavam entre si e qual o motivo daquele estado emocional negativo que expressavam. Criou deste modo uma oportunidade para que se abrissem e, com paciência, soube ouvi-los.
Interessante lermos nas nossas bíblias que, assim como os dois não estavam reconhecendo a Jesus, seus olhos espirituais também permaneciam fechados para a realidade por trás dos fatos que tinham presenciado em Jerusalém. Os rígidos conceitos sedimentados em suas mentes sobre a vinda do Messias, alimentando a expectativa de um livramento político da nação israelita em relação aos romanos, bloqueava-lhes o entendimento quanto à necessária morte do Senhor na cruz conforme era previsto há séculos em Isaías 53.
Amorosamente, Jesus passou a explicar qual seria a missão do Cristo conforme as Escrituras Hebraicas sem revelar aos dois viajantes a sua identidade. Como um bom professor, o Mestre parecia fazer uso de um instigante método indutivo de aprendizado afim de que os seus discípulos exercitassem a capacidade de reformulação da própria percepção da realidade. Permitiu que os destinatários de sua mensagem fizessem uso da reflexão e desenvolvessem a fé.
Todo o diálogo ocorrido naquela caminhada parecia não ter sido ainda suficiente para alargar a visão dos dois discípulos por mais que os seus corações ardessem como nos revela o texto (v. 32). Só que as palavras do Mestre não foram ditas em vão. Jesus sabia como conduzir a situação e, quando chegaram nas proximidades da aldeia, o Senhor disse que continuaria adiante (v. 28). Então, como se tratavam de dois sujeitos piedosos e acolhedores, convidaram o Mestre para albergar-se na casa deles. Certamente estavam também desfrutando de uma agradável companhia e devem ter encontrado em sua sabedoria o direcionamento de vida que tanto precisavam.
Curioso que não foram os hospedeiros mas, sim, o hóspede quem partiu o pão durante a refeição daquela noite (o sol já poderia estar se ponto no finalzinho daquele domingo). Isto porque, se não fosse o anfitrião quem repartia o alimento, as únicas pessoas que agiriam de tal forma apenas poderiam ser um pai de família ou um mestre. Porém, aquela iniciativa fez com que fosse lembrado o gesto ocorrido na Última Ceia (Lc 22:19) de maneira que, finalmente, conseguiram reconhecer a Jesus.
Ora, deve-se indagar por que, no momento em que foi identificado, o Senhor desapareceu no meio daquela dupla? Penso que este outro fato da narrativa também tem os seus motivos dentro do contexto literário e a minha suposição é que seria necessário Jesus deixá-los a sós na casa afim de que continuassem a buscá-lo. Por isso decidiram retornar imediatamente para Jerusalém e, novamente, juntarem-se à comunidade apostólica, a qual veio a formar a futura Igreja semanas depois.
Como podemos verificar no texto bíblico, é na congregação reunida que as experiências são partilhadas e somadas para a edificação de todos. Aprendemos que a vida cristã é um projeto coletivo e jamais individual. Ainda que, circunstancialmente, as pessoas fiquem afastadas do convívio fraternal (Paulo permaneceu anos de sua vida trancado em cadeias), Jesus nos mostra que o caminho certo está no andarmos juntos, prosseguindo rumo ao propósito messiânico de construção do Reino de Deus na conflituosas relações humanas. Amando verdadeiramente aquelas duas ovelhas que se desviavam, as quais poderiam ser dois irmãos ou até um casal, o nosso Bom Pastor foi buscá-las dando-nos o exemplo de liderança e de cuidado para que façamos o mesmo.
Quantas vezes não temos algum irmão na fé que, devido a um desentendimento, um acontecimento ruim em suas vidas, ou até mesmo uma decepção dentro da Igreja, acabam então se afastando? Nessas horas, ao invés de fofocarmos nocivamente, devemos é nos colocar ao lado dessas almas como fez Jesus. E, na nossa abordagem, não cabe fazer julgamentos ou tratarmos a pessoa com superioridade moral. Precisamos ter a capacidade de dialogar de igual para igual, dando atenção à dor, à confusão mental e ao medo que o outro sente. Só assim é que auxiliaremos o nosso companheiro de caminhada a recuperar o seu propósito e voltar "para Jerusalém".
OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro Caminho de Emaús pintado em 1877 pelo artista suíço Robert Zünd (1826-1909). A obra encontra-se atualmente no Kunstmuseum St. Gallen, Suíça. Extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Z%C3%BCnd_Gang_nach_Emmaus_1877.jpg
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