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| 📷: Luciana Whitaker/Folhapress |
Rodrigo apertou os cadarços dos tênis surrados, sentiu o suor começar a formar gotas finas na nuca — era verão carioca e o calor se misturava à urgência que pulsava em seu peito. Vinha de Juiz de Fora, tinha 17 anos, estava de férias na casa de familiares antes de voltar à escola, e carregava dentro de si a chama da indignação que só se acende quando se acredita ser jovem demais para aceitar o mundo como está.
Na noite anterior, a TV mostrara os rostos encapelados de companheiros — secundaristas, operários, jornalistas, sindicalistas — antes da BVRJ; a polícia, a repressão; o grito contra a privatização da PQU. “Petróleo, para os brasileiros!”, “Essa fábrica não se vende!”, “Não à entrega do patrimônio nacional!”. Rodrigo dormiu mal, com o som das buzinas, sirenes e vozes no ouvido. Ele queria estar lá.
De manhã, após tomar o café preparado por sua avó, pegou um ônibus da linha 422 rumo ao Centro do Rio — a mistura de empolgação e nervosismo formava um nó na garganta. Imaginou faixas tremulando ao vento, gente cantando, pedindo direitos, segurando cartazes com tinta borrada de esperança. Quando chegou à porta da antiga BVRJ, porém, apenas silêncio. O portão estava fechado. A rua parecia normal — gente apressada, comércio abrindo, três ou quatro guardas conversando de costas para o prédio. Nem sombra de cartaz. Nem rastro de angústia ou convicção coletiva.
Rodrigo engoliu o desapontamento. Uma parte dele esperava a repetição do rabioso dia anterior; outra parte, conformou-se. “Talvez o ato tenha acabado — ou atracado em outro lugar.” Respirou fundo. O calor dava vertigem.
Foi quando os viu: dois jornalistas encardidos, com gravadores e câmeras — luzes brutas, microfones apontados. Uma delas se aproximou com tom de voz grave:
— Você é o único manifestante? — perguntou, já ligando a câmera.
Rodrigo ergueu os olhos. Estava sozinho. Por um instante, sentiu vergonha — e ao mesmo tempo, uma estranha determinação floresceu dentro dele. Não estava ali apenas para a multidão: ele estava ali para si mesmo, para sua consciência juvenil, para a inquietação que latejava.
— Sim — disse, com firmeza — Vim acreditando que haveria protesto hoje. Quero ser parte dessa luta.
A câmera clicou. A sirene distante de um carro de polícia. O vento trazia um ruído abafado de buzinas e o tilintar de garrafas passando por mãos apressadas. Rodrigo olhou para o prédio — as janelas espelhadas, o concreto ao sol forte — e por um segundo acreditou em cada grito que ouvira na noite anterior.
No fundo da mente, voltou à imagem de Barbosa Lima Sobrinho — a voz forte, o punho levantado nas páginas dos jornais, denunciando a “entrega do patrimônio nacional”, chamando a população ao despertar. A lembrança de sua combativa coerência, seu olhar altivo e incisivo, lhe deu força. Imaginou-o falando, naquele andar mais alto: “Não permitiremos que vendam nosso futuro como se fosse mercadoria”. E pensou também em Leonel de Moura Brizola — na época governador do estado do Rio no último ano de seu segundo mandato, que estava deixando rastros de escolas, de políticas sociais e educação pública, embora o país seguisse uma onda neoliberal que vendia suas estatais a pleno vapor após o impeachment de Fernando Collor.
Rodrigo ficou ali. A câmera gravava. O silêncio ao redor era espesso — o tipo de silêncio que cala multidões, mas revela coragens. Sem cartaz, sem bandeira, sozinho.
Ele pensou: “Se não há ato, farei o meu.” E permaneceu, imóvel, sob o sol, como figura isolada de resistência.
Anos depois — memória, mudança e convicção
Hoje, mais de 30 anos depois, Rodrigo revisita aquela manhã. Ao longe, os prédios da antiga BVRJ foram transformados, o país mudou, a PQU deixou de ser estatal. A economia se abriu, novos atores privados chegaram — o Brasil buscou modernizar-se. Com a maturidade, ele aprendeu a ver nuances, balanços positivos, transformações necessárias. Ele, que jovem sonhara com protestos de massas, compreende que a privatização trouxe para alguns setores investimentos, reestruturação, talvez eficiência.
Contudo, de pé diante da memória, Rodrigo não tem arrependimentos. Ele honra aquele instante — o momento em que, sozinho, levantou sua voz contra a indiferença, quando preferiu estar presente a seguir como espectador. A câmera gravou um “protesto solitário”, mas para ele foi a confirmação de uma verdade: que todo ato de consciência, mesmo isolado, é legítimo.
Ele sorri — não por nostalgia, mas por reconhecimento. Reconhecimento da própria juventude, da própria coragem, da própria autonomia.
E conclui, com serenidade: fez o que devia fazer, guiado por uma chama interior. E essa chama, mesmo acesa em solidão, nunca se apagou.
📝 Nota Informativa
Barbosa Lima Sobrinho (foto) nasceu em 22 de janeiro de 1897, no Recife. Formado em Direito, em 1917, cedo enveredou para o jornalismo, integrando veículos como o Jornal do Brasil. Trabalhou como redator político e editor-chefe, mantendo-se ativo durante décadas. Presidiu a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) por longos períodos — de 1926‑27, 1930‑32, e novamente entre 1974 a 1977 e 1978 a 2000. Foi um incansável defensor da soberania nacional, dos direitos democráticos, e um crítico ferrenho das privatizações indiscriminadas: na década de 1990, quando o país vivia a onda de vendas de estatais, Barbosa se posicionou publicamente contra essa política, denunciando o que considerava “entrega” do patrimônio público.
Já a Petroquímica União (PQU) foi uma empresa estatal brasileira do setor petroquímico que, no início dos anos 1990, tornou-se alvo do programa de privatizações do governo federal. O leilão que a alienou ocorreu no contexto de venda massiva de estatais, em busca de modernização e capital privado para investimentos. A venda visava abrir o seu capital, transferir controle para um consórcio ou investidores privados, e desligar o Estado das operações industriais da empresa. No longo prazo, para muitos analistas e para o mercado, essa desestatização representa um marco de reestruturação econômica brasileira — ainda que, na época, suscitasse resistências, críticas e intensos debates sobre soberania nacional, emprego, controle social e passivos ambientais.
Quanto a Leonel de Moura Brizola — de fato, em janeiro de 1994 ele era o governador do estado do Rio de Janeiro: exerceu seu segundo mandato de 15 de março de 1991 até 2 de abril de 1994.
Finalmente, em relação à Bolsa de Valores do Rio de Janeiro — BVRJ — foi uma das mais antigas instituições de mercado de capitais do Brasil, criada ainda no século XIX. Por décadas, concentrou boa parte das negociações de títulos e ações, especialmente no século XX. Porém, a partir da década de 1970, perdeu relevância para a bolsa de São Paulo; após sucessivas crises e queda no volume de negócios, teve seu pregão de ações encerrado em 2000. Em 2002, a BVRJ foi formalmente incorporada pela BM&F, e as negociações de ações passaram a ser centralizadas na B3 (via fusões e consolidações do mercado financeiro). Hoje, seu prédio histórico permanece como símbolo da antiga BVRJ — e, embora a instituição esteja extinta como praça de pregão, ocasionalmente retorna à memória pública quando se discute a retomada de uma bolsa no Rio de Janeiro. Recentemente (2024), foi aprovada lei municipal que visa criar — ou reativar — uma nova bolsa de valores para a cidade, mas esta nova instituição será distinta, embora carregue a simbologia da antiga BVRJ.



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