Encontramos no capítulo 11 de Lucas um modelo oracional praticamente idêntico ao do Pai Nosso contido no Sermão da Montanha (mais precisamente em Mt 6:9-13). A diferença maior seria que, no 3º Evangelho, a oração é dada em resposta a um pedido feito pelos discípulos para que Jesus os ensinasse a falar com Deus como costumavam fazer os mestres religiosos da época, a exemplo do que teria sido ministrado por João Batista aos que o seguiam (11:1). O acontecimento é contextualizado pelo autor durante a longa viagem de peregrinação a Jerusalém (9:51-19:44), pelo que deve ser a instrução igualmente lembrada pela Igreja a sua contínua jornada espiritual.
"Então, ele os ensinou: Quando orardes, dizei:
Pai [nosso nos céus],
santificado seja o teu nome;
venha o teu reino; [seja feita a tua vontade, assim na terra, como no céu]
o pão nosso cotidiano dá-nos de dia em dia;
perdoa-nos os nossos pecados, pois também
nós perdoamos a todo o que nos deve;
e não nos deixe cair em tentação [mas livra-nos do mal]."
(ARA; versos de 2 a 4 com acréscimos encontrados em alguns manuscritos antigos em itálico)
Algo que muito me chama a atenção neste texto bíblico é a maneira sugestiva sobre como devemos estabelecer a nossa relação com a Divindade. Jesus foi revolucionário ao identificar Deus como sendo o seu Pai Celestial e desejou que os discípulos (leia-se a Igreja) chegassem a um mesmo grau de intimidade no Espírito. Algo que devemos desenvolver sem perdermos a devida reverência pelo Santíssimo.
É preciso nunca esquecer que a oração é uma conversa que estabelecemos com o nosso Criador bendito. Embora os olhos físicos não estejam vendo Aquele que está em tudo e em todos, Deus conhece cada um de nós e pode "radiografar" o nosso coração como bem teria dito Davi no Salmo 139.
Contudo, Deus nos ama pra valer! Nem mesmo a metáfora do acolhimento paterno-materno é suficiente para explicar a grandeza desse amor infinito. Ainda assim, seria o que temos de melhor para tentar expressar aquilo que a nossa mente limitada é incapaz de compreender na totalidade.
Chamar Deus de Pai ensina-nos sobre a acessibilidade do Altíssimo. O Senhor dos céus, assentado em seu sublime trono de glória, não está distante de nós. Ele também pode fazer parte do cotidiano de cada um, visitar o jardim da nossa alma como no final das tardes do Éden (Gn 3:8), e se presentificar nos momentos de alegria e tristeza, vitória e derrota, companhia e solidão, saúde e doença, vida e morte. O homem não deve deixar de significar nenhum aspecto de sua experiência diante do Pai Eterno.
Ainda assim, nunca podemos nos esquecer de sua santidade. Toda essa intimidade relacional deve estar de acordo com as lições do Monte Sinai e do terceiro mandamento do Decálogo. É preciso aproximarmos Dele com a devida reverência, tirando as "sandálias" dos pés (Ex 3:5). Deus jamais será nosso aliado para as práticas injustas e pecaminosas. Seu Nome não deve ser de modo algum invocado para coisas vãs, sob nenhum pretexto.
Entendido com Quem é que estamos falando, Jesus indica que tipo de pedidos é adequado nas nossas orações. O modelo do Mestre não diz o que, especificamente, podemos/devemos peticionar ao Pai. Nada impede elaborarmos uma lista de solicitações sobre trabalho, cura física, sucesso na aquisição de um bem, processos judiciais, bem estar de um familiar, namoro, vida conjugal, etc. Porém, cabe ao homem refletir se aquilo que espera receber tem a ver com o propósito de construção do Reino de Deus.
O ensino de Jesus esteve basicamente focado no anúncio da chegada do Reino. Tanto suas parábolas e feitos milagrosos tiveram essa finalidade evangelística. O Mestre mostrou aos destinatários de sua mensagem que a nossa experiência terrestre deve estar voltada para esse alvo superior. As relações pessoais, familiares e comunitárias (eu incluiria ainda o trato com a natureza) precisar ser plenamente sintonizadas com o governo divino expressando obedientemente a sua vontade. Tanto é que algumas variantes textuais incluem que "seja feita a tua vontade, assim na terra, como no céu", tal como em Mateus, numa evidente repetição de pensamento.
Será que tudo o quanto peticionamos está realmente de acordo com esse propósito elevado ou, de fato, pretendemos satisfazer as nossas ambições egoístas?
Jesus não foi contra colocarmos sob os cuidados do Pai todas as necessidades pessoais. Antes o Senhor orienta aos seus discípulos pedirem "o pão nosso cotidiano" a ser concedido "de dia em dia". Tal lição vai ser melhor compreendida no capítulo 12, do verso 22 em diante, quando o Mestre falará sobre como tratarmos a ansiosa solicitude pela vida. Na oração modelo, entretanto, há uma sintetização proposital. O suprimento do que realmente precisamos para vivermos com contentamento, conforme a vontade divina, chega no tempo certo.
O item seguinte da versão resumida deste trecho do Evangelho diz respeito ao perdão dos pecados. Devemos nos lembrar de pedir isto ao Pai e creio que a confissão caso a caso dos nossos erros e faltas tem tudo a ver com o que o Mestre propõe. Nosso relacionamento com o Santo e a busca do seu querer vão exigir um frequente e contínuo auto-exame das condutas praticadas e até do que cogitamos/desejamos. Pois, devido à sua natureza ambígua, o homem precisa em todo instante retornar ao Caminho já que não somos capazes de nos conduzir em perfeição. Por diversas vezes nos afastamos do alvo.
O perdão não é negado, mas Jesus ensina que liberemos quem nos ofendeu. Se alguém nos fez mal, causou prejuízos materiais ou morais, abalou o nosso emocional, fez-nos perder tempo ou nos negou o que era de direito, tal pessoa tornou-se devedora para conosco. Porém, podemos zerar a conta do ofensor e confirmarmos isto no momento de oração, sabendo que o Pai também lança os nossos pecados no mar do esquecimento. E, assim, pela maneira como lidamos com o próximo, somos julgados por Deus.
Finalizando o modelo oracional, Jesus menciona sobre pedirmos ao Pai que "não nos deixe cair em tentação". O discípulo, embora desconheça o seu futuro, precisa enfrentar com fé o que virá pela frente. Nunca seremos capazes de nos conduzir em perfeição, como já dito, mas devemos evitar o mal. Para isto dependeremos tanto das nossas próprias escolhas como do auxílio divino que vem por meio do fortalecimento interior, da sabedoria concedida para superarmos as situações difíceis e do apoio de terceiros - os anjos de carne e osso colocados nas nossas veredas.
Portanto, podemos e devemos contar com o Pai Celestial. Seus braços estão abertos e suas mãos estendidas. Ele anseia por nos dar colo pelo tempo que necessitarmos. Fará isso de graça e se alegrará quando o buscarmos com o coração aberto. Bendito seja o seu Santo Nome! Jamais deixemos de orar.
OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro O Pai Nosso do artista francês James Tissot (1836-1902), pintado entre 1886 e 1894, encontrando-se atualmente no Museu do Brooklyn, em Nova York. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em https://en.wikipedia.org/wiki/File:Brooklyn_Museum_-_The_Lord%27s_Prayer_(Le_Pater_Noster)_-_James_Tissot.jpg
Curioso que estes estudos sobre o Evangelho de Lucas que tenho feito vieram a coincidir com a aproximação do dia dos pais.
ResponderExcluirParabéns a todos os papais!