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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Corpos cingidos e candeias acesas



Diferentemente do livro de Mateus, em que os ensinamentos escatológicos concentram-se mais no Sermão Profético do Monte das Oliveiras (capítulos 24 e 25), eis que, no Evangelho de Lucas, constatamos uma abordagem mais transversal de Jesus durante sua viagem de peregrinação a Jerusalém (9:51-19:44). Importante esclarecer que as coisas que o Mestre fala sobre os "últimos tempos" não se prendem a uma revelação do futuro, mas se relacionam também com a realidade presente de todas as eras. Isto porque, em seu ministério, o Reino já é chegado, sendo um processo histórico em curso.

Quando criticou a hipocrisia religiosa, falando contra o "fermento dos fariseus", Jesus estava prevenindo seus discípulos (a futura Igreja) acerca desse comportamento capaz de corromper a nova "massa". Após ter sido interrompido por um homem que desejava ter a herança paterna com ele repartida pelo irmão e tratado particularmente da ansiosa solicitude com os seus discípulos (Lc 12:22), nosso Senhor parece retornar no versículo 35 do capítulo 12 à instrução anteriormente dada através da Parábola do servo vigilante. Não custa abrirmos nossas bíblias (ou uma janela no Windows) para acompanharmos os comentários ao texto lendo até o verso 48.

Nos tempos antigos, em que as pessoas cobriam-se com longas túnicas, estas roupas atrapalhavam o movimento do corpo durante a atividade laboral. Era preciso muitas das vezes segurar as vestes acima dos joelhos por meio de um cinto. Logo, numa visão metafórica de estudo bíblico, deve-se entender que o termo "cingido" significa nos prontificarmos para o serviço de Deus, mais precisamente trabalhando pelo outro ao invés de sermos servidos.

Sobre as candeias, não podemos jamais esquecer que, na época de Jesus, inexistia a luz elétrica. À noite, as pessoas iluminavam o ambiente de suas residências e os seus caminhos no meio externo com lâmpadas de azeite. Pode-se dizer que até hoje, mesmo com os países da OPEP produzindo milhões de barris de petróleo diariamente, existem ainda beduínos do deserto orientando-se como no primeiro século. Era impossível andar sem aquelas formas antigas de lanternas! Ainda mais se fosse uma noite sem lua.

Em resumo, o texto em análise fala de um poderoso senhor que, ao se ausentar de sua propriedade, delega funções administrativas aos servos e não marca uma hora certa para retornar. Quando volta, quer encontrá-los todos vigilantes, ocupando-se amorosamente com o serviço da casa, conscientes da responsabilidade que têm e não apenas trabalhando às vistas do dono. Ele não é um explorador da mão-de-obra utilizada na fazenda. Antes é capaz de igualmente cingir-se, permitir que seus empregados tomem assento em sua mesa e os servem (verso 37). Também não tolera que mordomos cometam injustiças contra os seus conservos (vv. 45-46).

Desde o versículo 22, como Jesus estava falando com os discípulos e não com as multidões, Pedro então pergunta se a parábola se aplicaria somente a eles "ou também para todos" (v. 41). O Mestre não lhe responde diretamente, mas, pelo que se percebe nas palavras posteriores, o papo aqui é com a Igreja. Nosso Senhor mostra que a obra de Deus não é brinquedo e haverá julgamento severo para o ministro eclesiástico que se vale das prerrogativas de sua função para agir em benefício próprio aproveitando-se dos demais companheiros.

Todo o trabalho de Jesus foi contra as injustiças de todos os tipos. Ele desafiou os sistemas excludentes dos palácios dos governadores e dos templos religiosos. Tinha consciência da má inclinação do comportamento humano para a hipocrisia e de modo algum desejava que a Igreja virasse um sacerdócio corrompido. Era sua intenção que o Evangelho do Reino se tornasse mais ou menos aquilo que, séculos posteriores, o bolchevique Leon Trótski (1879-1940) chamaria de "revolução permanente", no sentido de não sofrer solução de continuidade.

É claro que as  percepções das ideias dos ouvintes de Jesus estava sujeita aos valores da época e daí o Mestre ter usado a metáfora de um "servo". Ou melhor dizendo, de um escravo, tendo em vista que, por motivo de endividamento ou de conquista militar, as pessoas poderiam ser rebaixadas a tal condição conforme as leis de Roma. Assim, não se pode julgar com o olhar de hoje a forma como as boas-novas foram apresentadas às primeiras comunidades cristãs pelo autor sagrado, mas devemos extrair a essência da parábola, considerando que, no seu devido contexto, havia senhores bons e justos. Por ouro lado, não podemos nos esquecer que o Salvador estava fazendo uma verdadeira inversão de papéis já que, como escrevi, os servos vigilantes serão servidos na volta do dono da casa.

Conforme disse antes, a revolução de Jesus seria mais ou menos parecida com a de Trótski. Eu diria até que mais evoluída, apesar de anteriormente anunciada, por ser pacífica e não autorizar a estupidez da luta armada. Isto porque a guerra travada pela causa do Reino se dá no nível consciencial das pessoas, fazendo com que, no tempo certo, a hedionda exploração da mão-de-obra do trabalhador perca a sua força não restando nenhum efeito mais no fermento. Portanto, maior do que lutar pelo abolicionismo, o fim da propriedade privada, ou outras questões, seria a transformação ética do ser humano.

Curioso que, na parábola de Jesus, os criados e criadas são espancados pelo "mordomo", o qual era também um escravo nomeado pelo seu senhor para gerir todos os negócios da casa. Devido ao seu cargo administrativo, este servo recebia grande autoridade sobre os demais podendo até castigá-los e vivia melhor que muitos homens livres. Somente o dono da casa, que estava ausente, poderia demiti-lo da função.

Ora, não é isso que vem ocorrendo até hoje nas revoluções dos povos? Quem passa a governar o país muitas das vezes não comete delitos até piores do que o rei ou o ditador deposto?

Em relação à Igreja, Jesus estaria prevendo situação idêntica e que abrange o plano religioso. Com o aumento no número de seguidores e de pessoas sendo assistidas pela caridade, líderes tentariam fazer das futuras comunidades cristãs uma via para o poder. E esta prática aconteceu com a oficialização do cristianismo e ainda ocorre até hoje. Inclusive nesses envolvimentos eleitorais promíscuos entre pastores evangélicos e seus candidatos através do recorrente argumento de se colocar em Brasília um "homem de Deus".

Mas as palavras de Jesus não voltarão vazias!

Creio plenamente, irmãos, de que, no tempo certo de Deus, haverá uma mudança visível da realidade e os falsos líderes serão desmascarados. Deverão prestar contas do que fizeram usando o nome do Senhor em proveito pessoal, o que significará o recebimento das simbólicas penas de "açoites" (vv. 47-48). Só que até lá cabe a nós tornarmos permanente a revolução do Reino, denunciando claramente as obras desses pastores maus. Nem que para tanto sejamos excomungados das paróquias, chamados de apóstatas e tenhamos o nosso prestígio afetado no meio eclesiástico. Afinal, o nosso compromisso é com Deus e com o seu Cristo, não com os homens. Portanto, mantenhamos cingidos os corpos e acesas as candeias afim de servirmos de coração os irmãos na fé, cientes de que o nosso Senhor está voltando. Aleluia!


OBS: A imagem acima trata-se de uma gravura do artista holandês Jan Luyken (1649-1712) utilizada para ilustrar a parábola na Bíblia Bowyer. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em que a autoria da foto é atribuída a Phillip Medhurst oriunda de Harry Kossuth, conforme consta em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Teachings_of_Jesus_32_of_40._the_faithful_and_wise_steward._Jan_Luyken_etching._Bowyer_Bible.gif

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