O capítulo 14 do Evangelho de Lucas fala de mais uma refeição que Jesus teria feito com os fariseus a qual ocorre num dia de sábado. Desta vez, o debate não girou em torno das questões de pureza ritual como em Lc 11:37-52. Os temas tratados serão a prática de atos de misericórdia no sétimo dia da semana (versos 1-6), a humildade (vv. 7-11) e a falta de receptividade que os tais religiosos tinham em relação ao convívio com as pessoas excluídas (vv. 12-24), acrescentando ali a Parábola da Grande Ceia.
Como temos visto nestes nossos estudos sequenciais sobre o 3º Evangelho, Jesus havia despertado polêmicas anteriores por curar aos sábados quando esteve pregando pelas sinagogas (6:6-11; 13:10-17). Porém, na reunião ocorrida na casa do fariseu, nenhuma discussão polêmica surge a este respeito. Havia entre eles um homem hidrópico (com fluidos corporais acumulados em suas cavidades internas) e os caras apenas o observavam. É o Mestre quem tenta polemizar, perguntando-lhes se seria lícito ou não fazer curas no dia santo, por conhecer de antemão como deveriam pensar aqueles religiosos, mas ninguém responde (v. 4). Então, após operar o milagre, ele lhes apresenta argumentos não muito diferentes dos que foram dados nos episódios já analisados do homem da mão ressequida e da mulher encurvada, conforme podemos comparar nas transcrições abaixo, segundo a versão revista e atualizada do tradutor João Ferreira de Almeida:
"Que vos parece? É lícito, no sábado, fazer o bem ou o mal? Salvar a vida ou deixá-la perecer?" (6:9)
"Hipócritas, cada um de vós não desprende da manjedoura, no sábado, o seu boi ou o seu jumento, para levá-lo a beber? Por que motivo não se devia livrar deste cativeiro, em dia de sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?" (13:15-16)
"Qual de vós, se o filho ou o boi cair num poço, não o tirará logo, mesmo em dia de sábado?" (14:5)
O evangelista diz que "a isto nada puderam responder", mas não descarto a hipótese de que o grupo reunido na casa do fariseu tenha optado convenientemente pelo silêncio e as pessoas ali não pretendiam polemizar. Talvez porque fosse um dia de sábado ou não tiveram uma boa argumentação para expor, ou ainda desejassem estabelecer um bom relacionamento no convívio com Jesus já que o Mestre tinha uma personalidade bem forte e apimentada. Contudo, há sempre uma resposta por trás do silêncio e, quando as vozes se calam, pode-se supor uma indisposição no ambiente para que haja a necessária abertura de entendimento quanto a determinadas posições.
Entretanto, Jesus insiste em dialogar com aquele grupo apático. Sendo ele um convidado, não poupa palavras para fazer da ceia uma metáfora para seus belos ensinamentos de vida. Ali ele diz o que tais religiosos precisavam ouvir.
Como podemos acompanhar nas nossas bíblias, o capítulo iniciou dizendo que aquela era a casa de um dos principais dos fariseus, dando a entender que, entre eles, havia líderes e pessoas de destaque. Tanto nas sinagogas como nos banquetes, eles desejavam ocupar os primeiros lugares, certamente buscado ter reconhecimento social pelo que faziam dentro das suas respectivas comunidades onde viviam. Contudo, o Mestre não criticou a honraria em si e nem estava dando um conselho secular sobre escolhermos literalmente os últimos assentos, mas estava se referindo ao reprovável comportamento de alguém pretender exaltar a si próprio:
"Pois todo o que se exalta será humilhado [ou rebaixado]; e o que se humilha será exaltado" (14:11)
Frequentemente encontramos indivíduos querendo se auto-promover. Os políticos então chegam a negociar posições entre si, bajulando quem esteja acima deles ou fazendo jogadas de marketing. Em praticamente todos os lugares, encontramos quem pretenda ser notado para alcançar os primeiros lugares, seja por razões financeiras, de poder ou mesmo de status no grupo ao qual pertence. Ignoram que o reconhecimento é algo que precisa ser consequência decorrente de um trabalho sincero e livre de negociatas, fruto de uma humildade genuína capaz de nos auxiliar em todas as conquistas da vida. Fingi-la ocupando hipocritamente os últimos lugares para ser notado pelos homens também não vale.
A terceira grande lição daquele encontro sabático vai cuidar de uma das principais controvérsias do ministério do Senhor com os fariseus - a falta de receptividade destes em relação aos excluídos moralmente e que nada tinham a oferecer. Não bastava o anfitrião ter convidado para a sua casa a pessoa de Jesus para estar ali presente junto com outros homens considerados santos, como muitas das vezes vemos nas nossas igrejas de hoje por causa da seletividade criada no ambiente. O Mestre percebeu que estavam faltando os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Gente incapaz de retribuir dando-lhes em troca outro banquete porque não tinham condições de ser doadores.
Verdade é que muitas das nossas relações acabam sendo baseadas numa troca. Até na afetividade do casamento ou do namoro ocorre um pouco de toma-lá-dá-cá. Inconscientemente agimos assim e a Psicologia estuda muito bem esses comportamentos mesmo quando aparentemente mostram-se desvantajosos para alguma das partes. É a velha busca pela recompensa...
Pois bem. Muitos séculos antes da Psicanálise ser inventada por Sigmund Schlomo Freud (1856-1939), Jesus soube compreender profundamente a alma humana. Ele propõe ali um passo evolutivo mais elevado que seria esperar pelas recompensas "na ressurreição dos justos" (v. 14). Aliás, fazer o bem deve se tornar um fim em si mesmo porque tanto a ressurreição quanto o céu são metáforas da vida eterna a qual, por sua vez, corresponde à nossa existência multidimensional diante do Deus Onisciente de todas as consciências. Logo, precisamos ser sinceros perante nosso bom juízo, cuidando do coração onde se passam as intenções e cogitações de cada um.
Às vezes questiono se estamos mesmo dispostos a acolher os verdadeiros necessitados no nosso meio eclesiástico. É certo que a Igreja fez dos pobres e dos deficientes ícones da bondade cristã, mas será que os queremos justo na intimidade dos nossos banquetes domésticos? Até que ponto estamos aceitando o outro com os seus erros e defeitos, admitindo o mendigo mesmo com seus vícios de embriaguez habitual, sem cuidados com a higiene, exalando mal odor, falando alto, dizendo palavrões e se aproximando das nossas crianças? Ou criaremos condições para o morador de rua conviver conosco, admitindo-o apenas se ele primeiramente for enquadrado? Complicado, mas o certo é que nenhum religioso quer mesmo se envolver com os dramas pessoais de quem tanto necessita receber o amor fraternal. Caridade só por alguns instantes...
Após Jesus ter proferido suas duras palavras na casa do fariseu, eis que uma das pessoas assentadas à mesa lhe diz: "Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus" (v. 15). Tal expressão "piedosa e convencional" que, segundo consta nos comentários teológicos da Bíblia de Estudo de Genebra, pode ter sido dita para mudar o rumo da conversa, mas talvez signifique também que o homem não tivesse compreendido o sentido das palavras do Mestre. Isto porque ele parece ligar as coisas que o Senhor havia acabado de falar no versículo anterior, sobre a ressurreição, dando ênfase numa ceia futura. Entretanto, o céu precisa ser também experimentado/vivenciado no aqui e agora, sendo o Reino uma realidade já presente, de modo que Jesus retoma o seu ensino contando-lhes uma parábola:
"Ele, porém, respondeu: Certo homem deu uma grande ceia e convidou muitos. À hora da ceia, enviou o seu servo para avisar aos convidados: Vinde, porque tudo já está preparado. Não obstante, todos, à uma, começaram a escusar-se. Disse o primeiro: Comprei um campo e preciso ir vê-lo; rogo-te que me tenhas por escusado. Outro disse: Comprei cinco juntas de bois e vou experimentá-las; rogo-te que me tenhas por escusado. E outro disse: Casei-me, por isso, não posso ir. Voltando o servo, tudo contou ao seu senhor. Então, irado, o dono da casa disse ao seu servo: Sai depressa para as ruas e becos da cidade e traze para aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos. Depois lhe disse o servo: Senhor, feito está como mandaste, e ainda há lugar. Respondeu-lhe o senhor: Sai pelos caminhos e atalhos e obriga todos a entrar, para que fique cheia a minha casa. Porque vos declaro que nenhum daqueles homens que foram convidados provará a minha ceia." (vv. 15-24)
Tal parábola liga-se de certo modo à conclusão do ensino sobre a porta estreita, em que os últimos virão a ser primeiros (13:30). Os que tinham sido inicialmente convidados e, na hora da ceia, apresentaram injustificadas desculpas, ficarão de fora da celebração, enquanto "os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos" entrarão na casa participando da festa. E ainda assim sobram lugares de modo que o servo precisa então sair "pelos caminhos e atalhos" convidando mais gente que estava fora da cidade (v. 23).
Como se lê em Lucas, os religiosos consideravam-se santos demais para aceitarem o batismo de arrependimento proposto por João (7:30), como se não tivessem pecados. Já o restante do povo atendeu ao chamado do profeta e deu ouvidos também a Jesus, maravilhando-se com os feitos milagrosos operados pelo Mestre. Os considerados indignos pelos fariseus estavam precedendo-os no Reino. Pobres, aleijados, cegos e coxos tornam-se figuras das pessoas desprezadas que foram acolhidas por Jesus e representam os pecadores em geral (conferir artigo Um messias que se fez amigo dos pecadores).
Esta perícope vai se relacionar com o tema da recepção dos pecadores que é novamente tratado no capítulo 15 em que Jesus contará três parábolas (da ovelha e da dracma perdidas e do filho pródigo) afim de confirmar o seu ensino. Por isso, o Mestre não vai mais perder tempo naquela casa onde os ouvintes mostrava-se desinteressados quanto ao diálogo. Havia multidões lá fora acompanhando-o (14:25) e para elas é que o Senhor vai se voltar. Os religiosos já tinham conhecimento bíblico e teológico suficiente para compreenderem a verdade. Por que ficar alimentando a palhaçada de uma turma que não queria nada com a construção do Reino se, nas ruas, havia gente sedenta por ouvir a Palavra de Deus? Jesus prefere dar sua atenção para quem realmente estava disposto a aprender com a escola da vida! O papo com os fariseus termina e eles vão ficar escandalizados quando virem os publicanos com Jesus. Chegaremos lá.
OBS: A imagem acima trata-se de uma gravura do artista holandês Jan Luyken (1649-1712) utilizada para ilustrar a parábola na Bíblia Bowyer. Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em que a autoria da foto é atribuída a Phillip Medhurst oriunda de Harry Kossuth, conforme consta em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Teachings_of_Jesus_28_of_40._invitation_to_the_great_banquet._Jan_Luyken_etching._Bowyer_Bible.gif
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