O capítulo 13 do livro de Lucas relata um milagre de Jesus nos seus versículos de 10 a 17. Trata-se da cura de uma mulher que, há dezoito anos, vivia encurvada devido à opressão de um espírito maligno, o qual era o causador daquela enfermidade (verso 11).
No entanto, o acontecimento se passa numa sinagoga, quando alguns judeus estavam reunidos em dia de sábado cumprindo ali o 4º mandamento da Lei de Deus. Jesus ensinava naquela congregação e suponho que deva ter sido convidado por algum dos líderes locais, talvez por ocasião de sua passagem pela respectiva cidade durante a longa viagem de peregrinação a Jerusalém (Lc 9:51-19:44). Mesmo sendo perseguido pelos religiosos de sua época, parece que o Mestre ainda deveria ser aceito e estimado por alguns deles. Porém, ao ver aquela mulher sofrendo e, sem conseguir firmar-se numa postura correta, tomou a iniciativa de curá-la impondo-lhe as mãos. Ela se endireitou imediatamente e começou a dar glórias a Deus (Lc 13:13).
Apesar de tudo, nem todos ali foram capazes de dar louvores por causa daquela maravilhosa libertação de uma irmã que havia passado boa parte de sua vida doente e oprimida pelo diabo. O presidente da sinagoga sente-se então "indignado" porque Jesus havia operado uma cura em dia de sábado (v. 14). Só que, por algum motivo, ele evita enfrentar o Mestre diretamente e resolve repreender a multidão indicando que as pessoas devessem vir nos outros dias da semana para serem curadas. Não no repouso sabático.
- "Hipócrita", disse Jesus.
Embora algumas versões do texto bíblico constem no plural, o Salvador não deixou de repreender claramente a atitude daquele chefe religioso. Se este ainda pretendia fazer a velha política da boa vizinhança, evitando os confrontos, nosso Senhor não ficou medindo palavras. O fato de ter respondido ao invés de se calar demonstra como o Mestre tinha uma personalidade marcante e incapaz de se adequar ao comportamento de sujeição aos homens, não importando onde estivesse. Aliás, Jesus viu ali uma ótima oportunidade para continuar o seu ensino e, talvez, tenha sido a melhor lição daquele dia fazendo os ouvintes refletirem já que nenhum deles deixava o próprio rebanho morrendo de sede só porque era sábado:
"cada um de vós não desprende da manjedoura, no sábado, o seu boi ou o seu jumento para levá-los a beber? Por que motivo não se devia livrar desse cativeiro, em dia de sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?" (v.v 15-16)
Como temos lido em Lucas, houve várias controvérsias de Jesus com os religiosos por causa do uso do sábado (ler o artigo A transgressão dos falsos valores em favor da vida). Jamais o Senhor pretendeu revogar o 4º mandamento do Decálogo, nem abolir o descanso semanal, ou muito menos transferi-lo para o domingo. No capítulo 6, versos de 6 a 11, os escribas e fariseus desejaram que o homem da mão ressequida fosse curado pelo Mestre no dia santo para terem motivo de acusá-lo por violação da Lei e a resposta que receberam foi esta:
"Que vos parece? É lícito, no sábado, fazer o bem ou o mal? Salvar a vida ou deixá-la perecer? (6:9)
Ao censurar os fariseus e os intérpretes da Lei no capítulo 11, Jesus disse que estes religiosos sobrecarregavam os homens "com fardos superiores às suas forças" (11:46) e que, tomando eles a "chave da ciência", não entravam na vida e ainda impediam os que estavam entrando (11:52). Assim, no episódio em comento, sobre a cura da mulher encurvada, temos uma representação do que muitas das vezes sucede com as pessoas sufocadas pelo legalismo.
Lamentavelmente, muitos se tornam encurvados e sem poder se endireitar por causa das regrinhas de homens elaboradas a partir de uma má interpretação dos mandamentos constantes nas Escrituras. Em diversas igrejas da nossa atualidade, impõe-se uma teologia cega em relação à própria vida e que faz as pessoas adoecerem espiritualmente. As orientações pastorais passam a conflitar até mesmo com a real vontade de Deus diante de cada caso concreto e a doutrina torna-se um peso nas costas impedindo o indivíduo de contemplar o lindo horizonte em sua frente e passando a olhar só para o chão da letra.
Nesta sinagoga desconhecida onde Jesus teria pregado, seus adversários ali presentes ficaram envergonhados enquanto o povo se alegrou pelos atos gloriosos realizados (v. 17). Compreendemos assim que o Senhor não veio só para curar as pessoas de suas enfermidades físicas mas também as espirituais. Falo daquelas doenças capazes de oprimir as mentes e o interior do nosso ser em que muitos padres, pastores, rabinos, teólogos, professores de escola bíblica e mestres fechados de qualquer religião cerceiam a liberdade nos mais diversos aspectos impedindo o homem de viver com plenitude e de guardar a Lei de Deus na espontaneidade do amor.
Por que razão aquela comunidade iria celebrar o deleitoso Shabat com uma pessoa da congregação doente se a mesma poderia receber de uma vez o milagre e curtir o resto daquele dia santo de adoração totalmente curada?
Que justificativas ainda podem existir para alguns pastores de igreja quererem proibir suas ovelhas de tomarem banho de mar com decência numa praia, irem a um culto vestidas de bermuda, beberem moderadamente uma cervejinha se não sofrerem de alcoolismo, ouvirem músicas seculares edificantes ou mesmo terem um sadio relacionamento sexual com fidelidade dentro do namoro sem ainda estarem casadas no papel? Ora, já vi gente honesta vivendo em união estável há anos serem boicotadas de ir a retiros de casais. Não duvido que essa truculência neo-farisaica chegue a abranger também um patrulhamento na participação da Ceia do Senhor a ponto desses hipócritas de hoje ignorarem uma situação fática incontestável. Aliás, certa vez um casal que virou evangélico foi induzido a pensar que ambos deveriam abster-se da intimidade matrimonial até formalizarem o relacionamento. Absurdo!
Faço deste texto a minha oração para que as libertadoras palavras de Jesus não permaneçam encobertas para o coração da Igreja neste século XXI de decisivas mudanças. Seguir a Cristo implica em nos livrarmos dos fardos pesados da religiosidade abraçando a causa do Evangelho com o devido esclarecimento, atitudes de fé e amor. Nossa caminhada espiritual para Jerusalém precisa ser uma festiva celebração da vida, sem qualquer regramento inútil criado por alguns homens para oprimirem os demais.
OBS: A ilustração acima refere-e ao quadro Cristo curando uma mulher enferma no sábado do artista francês James Tissot (1836-1902), correspondendo ao texto estudado. A obra encontra-se atualmente no Museu do Brooklyn, em Nova York, e foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:HealWomanSabbath.jpg
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