O sol nascia por detrás do que restava do Pão de Açúcar. O mar, mais alto e espesso, lambia os topos dos prédios submersos, enquanto as gaivotas, híbridas de carne e circuito, riscavam o céu como pincéis elétricos. O vento trazia cheiro de sal e de memória.
Certa manhã, mergulhando perto das ruínas de uma ponte antiga, Iara encontrou um medalhão coberto de limo. Gravadas nele, estavam as palavras: “Cidade de São Sebastião”. Ao tocá-lo, uma vibração percorreu sua pele — e ela ouviu, nítida, uma voz feminina no fundo das águas: “Desce à cidade da memória.”
E assim começou sua travessia.
A Cidade da Memória
A antiga cidade dormia sob metros de silêncio. O Museu do Amanhã era agora um esqueleto branco — asas fossilizadas de uma esperança que não aprendeu a voar.
Já a Biblioteca Nacional resistia, meio soterrada, guardando cápsulas de dados que pulsavam como corações esquecidos. Iara ativou um dos arquivos, e o passado se abriu diante dela:
— O século XIX, os navios negreiros, os corpos acorrentados que ergueram o império;— D. Pedro II, ordenando a restauração da Floresta da Tijuca, sonhando que o verde salvaria a cidade da sede e da poeira;— As reformas de Pereira Passos, que demoliram cortiços e apagaram os pobres em nome da “civilização”;— O século XX, com as favelas nascendo nas encostas e o povo reinventando o mundo em samba e futebol.
Os arquivos mostravam escolas coloridas, crianças de uniformes azuis e professores sorrindo em pátios ensolarados: os CIEPs. Era a tentativa de educar o Brasil para o futuro. No entanto, as imagens seguintes mostravam o abandono dos governos que foram sucedendo em cada quatro e quatro anos: paredes rachadas, promessas esquecidas, a indiferença política.
“O fracasso da educação é o sucesso da ignorância organizada.”
A frase ecoou na água como um aviso. Naquela ruína submersa, Iara percebeu que o colapso do planeta começara muito antes das tempestades — começara quando se deixou de educar, de imaginar, de sentir.
Refletindo acerca disso, ela encontrou um fragmento de gravação de 1992: a Eco-92, a cúpula da Terra. Ali, líderes do mundo inteiro prometiam um “amanhã sustentável”. Atrás deles, viu uma mulher sorria, segurando uma muda de árvore.
“Um dia”, dizia a voz, “o amanhã não será apenas um museu.”
Iara sorriu — e chorou ao mesmo tempo.
O Coração do Rio
“Marielle vive”, dizia uma, ainda legível sob o musgo.
Iara dançava entre eles, com o sol queimando seus ombros nus e a pele refletindo o brilho dourado das águas. Sua sensualidade não era provocação: era celebração. O corpo, ali, era parte da paisagem — tão natural quanto o vento. E por um instante, o mundo pareceu lembrar que o prazer também é uma forma de sabedoria.
Um velho músico se aproximou, os olhos brilhando como o mar noturno:
— Porque esquecemos de ouvir — respondeu ela.
— Então bate. O som é o que nos resta.
Iara bateu. O som ecoou pelos vales, atravessando o Atlântico, as plantas se abriram em flores luminosas e os drones que sobrevoavam o céu pararam no ar. Do fundo da baía, ergueu-se uma figura imensa — Gaia, ou talvez o próprio espírito do Rio de Janeiro.
Seu rosto mudava — ora indígena, ora africano, ora mestiço. E quando falou, a voz soava como samba e trovão:
“Toda dor guardada é uma semente.Toda lembrança é um rio que busca o mar.Vocês são o que sobrou e o que virá.Ouçam — o coração da Terra bate em português.”
O tambor de Iara se confundiu com o batuque coletivo. As águas recuaram e o vento trouxe o cheiro da floresta replantada. E, pela primeira vez em séculos, o Rio respirou de novo — com a alegria, a luta e o corpo inteiro do Brasil.


Nenhum comentário:
Postar um comentário