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sexta-feira, 7 de novembro de 2025

O Rio de Iara e as vozes de um mundo colapsado



O sol nascia por detrás do que restava do Pão de Açúcar. O mar, mais alto e espesso, lambia os topos dos prédios submersos, enquanto as gaivotas, híbridas de carne e circuito, riscavam o céu como pincéis elétricos. O vento trazia cheiro de sal e de memória.


Iara vivia numa das ilhas flutuantes do pós-colapso. Nasceu em 2178, mas sentia saudades de um tempo muito anterior — um tempo que só conhecia pelos relatos preservados nos Arquivos da Terra, onde vozes antigas falavam de praias, risadas, batuques e multidões em estádios.


As lendas diziam que, antes do dilúvio urbano, o território do Rio fora habitado por Tupinambás, que chamavam o mar de “a respiração da deusa”. Dentre eles, um guerreiro — Araribóia, o homem que viera do mar — havia enfrentado a violência dos conquistadores e fundado um novo lar, em Niterói. Nas histórias orais contadas nas aldeias flutuantes, Araribóia não era herói, mas guardião: aquele que entendeu que terra, corpo e alma são a mesma matéria.


Certa manhã, mergulhando perto das ruínas de uma ponte antiga, Iara encontrou um medalhão coberto de limo. Gravadas nele, estavam as palavras: “Cidade de São Sebastião”. Ao tocá-lo, uma vibração percorreu sua pele — e ela ouviu, nítida, uma voz feminina no fundo das águas: “Desce à cidade da memória.”


E assim começou sua travessia.


A Cidade da Memória


A antiga cidade dormia sob metros de silêncio. O Museu do Amanhã era agora um esqueleto branco — asas fossilizadas de uma esperança que não aprendeu a voar. 


Já  a Biblioteca Nacional resistia, meio soterrada, guardando cápsulas de dados que pulsavam como corações esquecidos. Iara ativou um dos arquivos, e o passado se abriu diante dela:


— O século XIX, os navios negreiros, os corpos acorrentados que ergueram o império;
— D. Pedro II, ordenando a restauração da Floresta da Tijuca, sonhando que o verde salvaria a cidade da sede e da poeira;
— As reformas de Pereira Passos, que demoliram cortiços e apagaram os pobres em nome da “civilização”;
— O século XX, com as favelas nascendo nas encostas e o povo reinventando o mundo em samba e futebol.


E entre todas as vozes, duas se destacavam — Leonel Brizola e Darcy Ribeiro.

Os arquivos mostravam escolas coloridas, crianças de uniformes azuis e professores sorrindo em pátios ensolarados: os CIEPs. Era a tentativa de educar o Brasil para o futuro. No entanto, as imagens seguintes mostravam o abandono dos governos que foram sucedendo em cada quatro e quatro anos: paredes rachadas, promessas esquecidas, a indiferença política.


Iara tocou o visor e murmurou:

— Eles tentaram.

E uma voz respondeu, do arquivo antigo de Darcy Ribeiro:

“O fracasso da educação é o sucesso da ignorância organizada.”


A frase ecoou na água como um aviso. Naquela ruína submersa, Iara percebeu que o colapso do planeta começara muito antes das tempestades — começara quando se deixou de educar, de imaginar, de sentir. 


Refletindo acerca disso,  ela encontrou um fragmento de gravação de 1992: a Eco-92, a cúpula da Terra. Ali, líderes do mundo inteiro prometiam um “amanhã sustentável”. Atrás deles, viu uma mulher sorria, segurando uma muda de árvore.


“Um dia”, dizia a voz, “o amanhã não será apenas um museu.”


Iara sorriu — e chorou ao mesmo tempo.


O Coração do Rio


O sol nascia vermelho sobre as florestas verticais que cobriam o que um dia fora o Morro do Alemão. Iara subia entre as raízes, tocando os troncos como se cumprimentasse antigos deuses. Os galhos guardavam marcas humanas — nomes, corações, letras apagadas de orações e protestos.

“Marielle vive”, dizia uma, ainda legível sob o musgo.


No alto, um grupo de músicos tocava samba, maracatu, tambores híbridos feitos de fibra e concha. O Dia da Voz da Terra reunia todos os sobreviventes — descendentes de indígenas, negros, mestiços, exilados do mundo que fora. Homens e mulheres dançavam com os pés descalços, corpos livres, suados, vibrantes.


Iara dançava entre eles, com o sol queimando seus ombros nus e a pele refletindo o brilho dourado das águas. Sua sensualidade não era provocação: era celebração. O corpo, ali, era parte da paisagem — tão natural quanto o vento. E por um instante, o mundo pareceu lembrar que o prazer também é uma forma de sabedoria.


Um velho músico se aproximou, os olhos brilhando como o mar noturno:


— Tu sabes por que o mundo caiu, menina?

— Porque esquecemos de ouvir — respondeu ela.


Ele sorriu e lhe entregou um tambor feito de madeira da antiga Tijuca.

— Então bate. O som é o que nos resta.


Iara bateu. O som ecoou pelos vales, atravessando o Atlântico, as plantas se abriram em flores luminosas e os drones que sobrevoavam o céu pararam no ar. Do fundo da baía, ergueu-se uma figura imensa — Gaia, ou talvez o próprio espírito do Rio de Janeiro.


Seu rosto mudava — ora indígena, ora africano, ora mestiço. E quando falou, a voz soava como samba e trovão:


“Toda dor guardada é uma semente.
Toda lembrança é um rio que busca o mar.
Vocês são o que sobrou e o que virá.
Ouçam — o coração da Terra bate em português.”


O tambor de Iara se confundiu com o batuque coletivo. As águas recuaram e o vento trouxe o cheiro da floresta replantada. E, pela primeira vez em séculos, o Rio respirou de novo — com a alegria, a luta e o corpo inteiro do Brasil.

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