Como vimos no último estudo bíblico sobre o Evangelho de Lucas, A revelação dada aos "pequeninos", sobre os versos 21 a 24 do capítulo 10 desse terceiro livro do Novo Testamento, o ensino de Jesus foi bem compreendido pelos humildes, mas não pelos religiosos e teólogos da época. Estes, como se verá nos fatos que antecedem à Parábola do Bom Samaritano, muitas vezes aproximavam-se do Senhor com a finalidade de testá-lo, procurando uma oportunidade para acusar o Mestre. Queriam odiosamente manchar a sua reputação diante das multidões:
"E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna?" (Lc 10:25; ARA)
Neste caso, o homem que procurou por Jesus era um culto conhecedor da Bíblia em sua logia e também religioso. Para poder interpretar a lei de Deus aplicando os preceitos de Moisés às necessidades de sua geração, o estudioso precisava ser mais do que um escriba comum. Teria que discernir com profundidade as Escrituras Sagradas, ter um comportamento aprovado de demonstrar inteligência. Portanto, era um cargo de alguma autoridade, quer estivesse do lado dos fariseus ou dos sacerdotes.
Embora Jesus não estivesse voltado para a satisfação dos interesses desse grupo, digamos, elitista, o seu ministério parece ter chamado a atenção deles. Os sacerdotes, bem como os fariseus, estavam de olho no que o Mestre fazia e se sentiam escandalizados por suas palavras. O seu comportamento inclusivo em relação aos pecadores e o impacto da evangelização nas comunidades israelitas eram motivos suficientes de preocupação pelos mantenedores do status quo. A revolução do Reino ameaçava tanto os poderosos políticos que viviam no luxo dos palácios como os religiosos em seus templos, sinagogas e, atualmente, nas igrejas cristãs.
A pergunta do instruído especialista da Lei corresponde às mesmas indagações que muitos fariam hoje. Lembra a busca sincera do jovem rico em Mateus 19:16 só que, no caso, o homem age com falsidade. Ele desejava saber como Jesus iria se posicionar para depois derrubá-los com seus argumentos. Seu objetivo não era de modo algum aprender e nem de se aperfeiçoar.
Contudo, o Senhor não lhe forneceu resposta imediata dando qualquer ocasião para debates em torno de controvérsias. Fez com que o próprio exegeta expusesse o seu pensamento e a maneira como compreende a Bíblia. Ele então confirma o que os mestres da época, a exemplo do ancião Hillel, já diziam antes mesmo de Jesus nascer, juntando a confissão do Shemá Israel de Deuteronômio 6:5, a profissão de fé central do monoteísmo judaico, com Levítico 19:18. Os quarenta dias que Moisés passou no Monte Sinai recebendo a Torá resumem-se desta maneira no amor a Deus e ao próximo. E isto os doutores teólogos já sabiam e Jesus lhes manda praticar ao invés de teologizarem somente.
"Respondeste corretamente; faze isto e viverás" (verso 28)
Jesus disse ao homem que entrasse na vida através de uma atitude positiva. Em outras palavras, era para que ele experimentasse a eternidade em seus frutos, coisa que, certamente, não estava fazendo por querer colocar o Senhor à prova. Por isso, nosso Mestre tentou ser logo conclusivo. Tais religiosos já tinham na Lei e nos Profetas toda a orientação que precisavam para andarem no caminho da salvação. Eles só precisavam por em prática o conhecimento. O Evangelho se achava bem diante dos olhos deles, nos rolos das Escrituras e nos arquivos da mente (memória), mas ainda assim não compreendiam espiritualmente o sentido da mensagem. Assim, se passassem a amar verdadeiramente o próximo, colocando o outro no lugar deles. seria resolvida a preocupação que o homem tem consigo mesmo sobre "o que fazer para herdar a vida eterna". Isto porque quem experimenta amar descobre a grandeza da bondade divina e o quanto é descabido gastar energia pensando na existência após a morte.
Será que hoje pessoas nas igrejas e nos seminários não vivem situações semelhantes às daquele intérprete da Lei? Quantas vezes não carregamos debaixo dos nossos braços uma Bíblia, incluindo os evangelhos e as cartas paulinas, mas demonstramos incompreensão acerca do mandamento do amor pelas condutas exteriorizadas? Por que ainda existem cristãos com tantas inquietações e incertezas se vão herdar a vida eterna?
Percebendo que Jesus teria se evadido do debate, o especialista da Lei ainda vai procurar tentá-lo novamente nos versos seguintes. Ele formula uma outra questão que era muito debatida pelos antigos rabis capaz de provocar prolongadas discussões entre os judeus devido a uns pontos bem polêmicos. Algo com grande potencial de gerar disputas e divisões tendo em vista o alto nível de xenofobismo e de etnocentrismo existentes naqueles dias de domínio político dos romanos:
"Quem é o meu próximo?" (verso 29)
Caso Jesus desse uma resposta direta, certamente que não agradaria a todos. Se o próximo fosse qualquer outro israelita, por que excluir o estrangeiro já que a Torá, por ser fonte da justiça humana, não pode ensinar amor para uns e vingança para outros? Mas, na hipótese de incluir o não judeu, outros argumentariam de um modo contrário na interpretação de Levítico 19:18, considerando que, no verso da lei mosaica, vem falando quanto à proibição do ódio contra os irmãos do mesmo povo bem, como os sentidos diversos assumidos pela palavra hebraica Ach. Deste modo, preferiu o Mestre dos mestres fazer os seus ouvintes refletirem contando-lhes uma parábola que nós conhecemos como a do bom samaritano:
"Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo. Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocado-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar." (versos 30 a 35)
A metáfora, além de ser indiscutivelmente anticlerical, é também universalista. O próximo do homem assaltado e agredido não foi um leigo israelita mas sim um "imundo" samaritano. Alguém considerado pior do que um estrangeiro para muitos judeus daqueles tempos. De acordo com o historiador Josefo, um grupo de de samaritanos chegaram a profanar o Templo durante uma celebração da Páscoa espalhando ossos humanos por todo o santuário (Antiguidades 18:30), sendo que as origem dessa inimizade são ainda bem mais antigas como expus brevemente no texto Uma comunidade hostil no caminho de Jerusalém.
Conforme já havia analisado esta parábola aqui neste blogue, antes de iniciar os atuais estudos em sequência sobre o Evangelho de Lucas, o levita e o sacerdote teriam deixado de prestar socorro ao homem assaltado temendo que ele estivesse já morto. Por razões religiosas, não poderiam tocar num cadáver sem se tornarem cerimonialmente imundos (Lv 21:1-4,10-12; Nm 19:11-13). Era como se o serviço no Templo valesse mais do que a vida humana (ler o artigo Quando a religiosidade nos impede de amar).
Assim, o sacerdote e o levita "passam de largo". Preferem se afastar do homem semimorto supondo que ele já seria um cadáver. Deixam de exercer compaixão por causa das posições que tinham enquanto que o samaritano cumpre bem o papel de ser o próximo de quem necessitava de ajuda. Aliás, ele não mede valores. Ao ver o corpo, aproxima-se ("passou-lhe perto"). Percebe que o seu próximo ainda estava vivo, abre o espaço de um dia em sua agenda, presta os primeiros socorros, transporta o sujeito no seu próprio animal e ainda paga o dono de uma hospedaria com dois denários para cuidar dele até seu restabelecimento. Se aquela caridade ainda ficasse mais cara, não teria problema. Ele indenizaria assim que voltasse.
Embora na outra vez em que estudei a parábola eu tenha focado mais no aspecto anticlerical, quero agora realçar mais a ação do bom samaritano. O texto não diz qual a sua condição econômica, se era rico ou pobre, mas não parece que aquela assistência tenha lhe custado barato. De fato, ele tinha algumas provisões extras, umas economias que lhe permitiram ajudar quem dele precisasse. Porém, o dinheiro pago ao dono da hospedaria corresponde a dois denários, o equivalente a duas diárias de trabalho nos valores monetários da época. Desta maneira, pode-se constatar que o gasto de tempo foi mais do que uma noite na pousada. Ele dispôs foi de uns três dias de sua vida!
Curioso, mas tanto os levitas quanto os sacerdotes eram sustentados pelo dízimo da nação israelita. Também, através dessas importâncias recolhidas, era possível distribuir ajudas aos mais necessitados: órfãos, viúvas, estrangeiros peregrinos e os pobres em geral. Contudo, o bom samaritano não manda a conta para o tesouro do Templo. Nem mesmo chega a pedir ao proprietário da hospedaria que fosse um pouquinho solidário na caridade arcando com os custos da fatura ou se abstivesse de lucrar. Ele simplesmente encara como seu o dever ético para com um desconhecido que trata como se fosse parente, um irmão. Age sem receber qualquer agradecimento ou retribuição da vítima que, talvez, ainda estivesse inconsciente por causa da gravidade dos ferimentos. Daí suponho ter sido um judeu que fora assaltado naquela estrada pelo trajeto que fazia.
Certamente aquele samaritano foi um cara que acreditou na vida e lutou por ela. Amou pra valer mais do que muitos médicos na atualidade. Assim, com este ensino, Jesus mostrou ao doutor da Lei quem é o próximo. Nem precisou entrar em detalhes se o judeu precisava amar até quem não fizesse parte da nação de Israel. Narrando aquela parábola, o Senhor inverteu a situação e fez com que um compatriota fosse amado por quem era um excomungado ou o pior dos estrangeiros. Aliás, o auxiliador torna-se, por consequência, o próximo do assistido e vice-versa dentro de uma reciprocidade existencial que se estabelece em dimensões espirituais. Logo, o conceito só pode ser universalista mesmo e ficou esclarecido de uma maneira bem sábia que a interpretação de Levítico 19:18 deve ser a mais abrangente possível, designando qualquer homem, sem distinção de raça, cor ou credo.
Novamente Jesus devolve a questão para o intérprete da Lei perguntando qual dos três foi o próximo do homem assaltado (verso 36). O experiente teólogo não vê outra alternativa. Percebe a ausência de espaços para suscitar controvérsias ou expor uma interpretação restritiva do preceito da Torá e, discretamente, reconhece ter sido "o que usou de misericórdia", sem declarar abertamente que fora o samaritano (verso 37).
Pela segunda vez, o Senhor manda o doutor por em prática o que já sabia: "Vai e procede tu de igual modo". Afinal, deve-se amar e não teologizar. Toda a Lei de Deus se resume em condutas compassivas, não podendo os mandamentos virarem uma logia estéril de mestres. Inclusive o maior deles que é o amor.
OBS: A ilustração acima refere-se ao célebre quadro O Bom Samaritano pintado por Rembrandt (1606-1669). Foi extraído do acervo virtual da Wikipédia em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Rembrandt_Harmensz._van_Rijn_033.jpg
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