"De outra feita, estava Jesus expelindo um demônio que era mudo. E aconteceu que, ao sair o demônio, o mudo passou a falar; e as multidões se admiravam. Mas alguns dentre eles diziam: Ora, ele expele os demônios pelo poder de Belzebu, o maioral dos demônios. E outros, tentando-o, pediam dele um sinal do céu. E, sabendo ele o que se lhes passava pelo espírito, disse-lhes: Todo reino dividido contra si mesmo ficará deserto, e casa sobre casa cairá. Se também Satanás estiver dividido contra si mesmo, como subsistirá o seu reino? Isto porque dizeis que eu expulso os demônios por Belzebu. E, se eu expulso os demônios por Belzebu, por quem os expulsam vossos filhos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes. Se, porém, eu expulso os demônios pelo dedo de Deus, certamente, é chegado o reino de Deus sobre vós. Quando o valente, bem armado, guarda a sua própria casa, ficam em segurança todos os seus bens. Sobrevindo, porém, um mais valente do que ele, vence-o, tira-lhe a armadura em que confiava e lhe divide os despojos. Quem não é por mim é contra mim; e quem comigo não se ajunta espalha." (Evangelho de Lucas 11:14-23; ARA)
Conforme temos visto nesses estudos sequenciais sobre Lucas, iniciados no blogue desde o mês de junho deste ano, dá para notarmos que nem todos compreenderam os gestos de Jesus da mesma maneira. Ao realizar um milagre, libertando alguém de uma opressão espiritual causadora de enfermidade, enquanto a maioria admirou-se, alguns entre as multidões acusaram o Senhor de expulsar os demônios por Belzebu.
Beelzebul ou Beelzebud era uma divindade pagã dos antigos filisteus que fora consultado pelo monarca idólatra Acazias (2Rs 1:2). Na época do Novo Testamento, talvez por força da literatura apocalíptica judaica, foi identificado como um diabo que comandava os espíritos malignos. Certamente acabou tornando-se um segundo nome para Satanás.
Pelo texto de Lucas, os que murmuravam contra Jesus não são identificados como sendo os fariseus, conforme lemos no 1º Evangelho (Mt 12:24), ou como os escribas vindos de Jerusalém de Marcos 3:22, de modo que a mensagem parece ter sido bem atualizada pelo autor sagrado para a realidade eclesiástica (nós). É de se observar que ninguém acusa frontalmente o Mestre, mas ele percebe as coisas que estavam acontecendo com aquele grupo de acusadores enquanto outros incredulamente lhe pediam um sina vindo do céu. Estes talvez desejando assistir algo como fizera o profeta Elias no episódio da disputa contra os seguidores de Baal no monte Carmelo (1Rs 18:38-39).
Entretanto, a cura dos doentes e a expulsão dos demônios eram os sinais dados por Jesus para que a sua geração viesse a compreender a chegada do Reino de Deus como já vimos em Lc 7:22-23 na resposta dada a João Batista. Aqui, nesta passagem do capítulo 11, os adversários do Mestre são levados a refletir sobre as contradições de suas palavras e de suas vidas já que uma "casa" não pode dividir-se contra si própria e se manter de pé.
É preciso haver coerência! Raciocinando com o texto, Satanás não pode expulsar a si mesmo. O máximo que o diabo poderia fazer é nos enganar causando-nos uma falsa impressão de que fomos capazes de expulsá-lo. Logo, o que as pessoas estavam assistindo Jesus fazer não poderia ser algo diferente da chegada do Reino de Deus mas ainda assim não estavam dispostas a entender ou aceitarem. Portanto, era pelo "dedo de Deus" que Jesus veio libertar as pessoas do império do mal, derrotando o valente e lhe tirando a armadura afim de saquear a casa do adversário (por em liberdade os oprimidos). E isto ele fez em todos os sentidos, inclusive libertando as consciências das doutrinas aprisionadoras dos religiosos de sua época, enfrentando a obscuridade e os preconceitos, acolhendo o pecador e a todos os excluídos da sociedade.
A clara exposição de Jesus trás luz sobre o comportamento dos seus opositores que murmuravam venenosamente no meio daquela multidão. Não dava para alguém ser contra ele e ao mesmo tempo favorável à construção do Reino de Deus. Se o Mestre estava promovendo o bem e outros apresentavam-se com a intenção de acusá-lo, de qual lado estariam tais indivíduos por mais que usassem suas máscaras religiosas? Do lado de Deus é que não poderia ser!
"Quem não é por mim é contra mim; e quem comigo não se ajunta espalha" (verso 23)
Se tomadas isoladamente, tais palavras atribuídas a Jesus parecem até presunçosas e arrogantes, mas veremos que não. No capítulo 9, lemos que o Senhor repreendeu o sectarismo de João por ter seu discípulo proibido um homem de expulsar demônios usando o nome de Jesus, embora o tal não andasse com o grupo. Ali o Mestre assim se posicionou:
"quem não é contra vós outros é por vós" (9:50)
Ambas as mensagens confirmam ser impossível a neutralidade na luta contra o mal devendo ser aplicada a nós mesmos a reflexão estudada aqui no capítulo 11 enquanto as do 9 servem para os outros fora do nosso grupo religioso. Entre as multidões de hoje que confessam ser cristãs e seguidoras de Jesus, precisamos examinar se todos estamos realmente trabalhando pela construção do Reino. Por isso achei ótimo o texto de Lucas não ter identificado especificamente os murmuradores para que o ensino do nosso Senhor não fosse erroneamente direcionado para um discurso anti-judaico, como se hoje em dia inexistisse religiosidade tão nociva e julgadora no meio da Igreja.
A verdade é que ninguém precisa andar com o grupo dos discípulos e se identificar como cristão para operar as obras do Reino. Judeus, muçulmanos e pessoas de outras religiões não monoteístas, bem como os próprios ateus, também podem abraçar o mesmo propósito edificante. E, se agem pelo bem, não estão contra o trabalho de Jesus e aí precisaremos ser todos cooperadores de uma mesma causa que se encontra além de qualquer proselitismo barato.
Este ensino de Jesus me mostra o quanto precisamos respeitar os trabalhos desenvolvidos pelas pessoas e grupos que não têm o mesmo conjunto de crenças do que eu. Pois, se chamo de Satanás quem seja de uma igreja diferente da minha, apenas porque o sujeito segue outras tradições ou doutrinas, posso estar indo contra a ação do Reino de Deus que é universalista e jamais sectária.
Oremos para que esta visão torne-se clara em toda a Igreja afim de trabalharmos unidos pelo Evangelho sem as demonizações de lideranças e de pessoas pertencentes a outros grupos. Pois quem não se considera cristão e faz também as obras de Jesus deve ser bem aceito. Do contrário, estaremos indo contra o nosso Mestre e os desígnios de Deus. Pois é pelos frutos e libertação e de vida que é estabelecido o critério de distinção. Quem assim se direciona deve juntar-se com o outro unido pelo mesmo propósito. Do contrário nos dispersaremos brincando de ser crentes ou estudiosos da Bíblia.
OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro Jesus curando cego e mudo do artista francês James Tissot (1836-1902), possivelmente baseando-se no texto correspondente de Mateus em que o endemoniado era também cego. Foi extraído do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Brooklyn_Museum_-_The_Blind_and_Mute_Man_Possessed_by_Devils_(Le_d%C3%A9moniaque_aveugle_et_muet)_-_James_Tissot.jpg
Muito bom! Respeito pela posição religiosa diferente é o que mais falta atualmente.
ResponderExcluirObrigado pela participação, Adair.
ExcluirTolerância é o que realmente tem faltado na pauta de muitos líderes religiosos. Felizmente ainda ouvimos vozes lutando pelo diálogo construtivo entre os grupos diferentes.
Abraços.