Já avisado por Moisés e Elias, no episódio da Transfiguração (Lc 9:30-31), nosso Senhor parte em sua jornada final rumo à cidade sagrada dos judeus afim de apresentar-se para participar da Páscoa segundo os costumes de seu povo, consciente de que iria ser morto em tal ocasião (9:22,44).
"E aconteceu que, ao se completarem os dias em que ele devia ser assunto ao céu, manifestou, no semblante, a intrépida resolução de ir para Jerusalém" (9:51; ARA)
Junto com Jesus, também caminha o leitor para Jerusalém. Assim, os acontecimentos e parábolas seletivamente registrados em Lucas, independente da ordem cronológica como são apresentados nos outros evangelhos, devem ser compreendidos aqui como ensinamentos para a Igreja aplicar em sua jornada mesmo sem a presença física do Mestre. Os discípulos de todos os tempos não poderiam deixar de trabalhar pela causa do Reino e jamais esquecerem de carregar a cruz.
Segundo os estudiosos, quando os peregrinos da Galileia viajavam para o Templo de Jerusalém nas ocasiões festivas (celebrações como as da Páscoa, Pentecostes ou das Cabanas/Tabernáculos), havia pelo menos duas rotas. Uma delas era pela parte central de Israel indo pelas regiões montanhosas. Só que, neste caso, seria preciso atravessar as terras habitadas pelas comunidades dos samaritanos com os quais os judeus não se davam bem. Por isso, muitos preferiam o percurso mais longo, pelo leste do país, atravessando o Jordão e acompanhando o rio pela margem esquerda até a altura de Jericó quando então encaravam uma subida bem íngreme até à Cidade Santa em meio a uma paisagem desértica votada para o Mar Morto.
A inimizade entre judeus e samaritanos tinha origens históricas muito antigas que nos remetem a um processo de ruptura após a invasão militar dos assírios, ocorrida nas últimas décadas do século VIII a.C. Uns duzentos anos mais tarde, já no período posterior ao exílio babilônico da nação judaica, as diferenças vão se acentuar cada vez mais por motivo de rivalidades políticas e culturais envolvendo, inclusive, o Templo e o sacerdócio. Por isso, os samaritanos chegaram a edificar um santuário próprio no Monte Gerizim, destruído por volta de 130 a.C., mas continuaram celebrando cultos nesta montanha, o que ainda ocorre até nos tempos atuais. Na época de Jesus, devido à grande hostilidade que havia, samaritanos nunca celebrariam a Páscoa em Jerusalém.
A festa sagrada estava próxima e se tornou perceptível que Jesus caminhava com seus discípulos para a comemoração judaica. Sem qualquer desejo de alimentar essas rivalidade estúpidas, o Senhor enviou mensageiros para anunciarem a hospedagem dele e de sua comitiva numa cidade samaritana. Esta negou-se a recebê-lo como é possível ler nos versos 52 a 53. Ou seja, queriam que o Mestre tomasse partido da causa deles e odiasse os judeus também.
Acredito que Jesus deve ter passado em outras vezes anteriores por comunidades samaritanas. Mesmo sem levarmos em conta o diálogo com a mulher que consta no capítulo 3 do Evangelho de João, pode-se notar apenas pelo texto de Lucas não ter havido restrições da parte do Senhor em pernoitar naquela aldeia. Porém, a rejeição de seus moradores contra os judeus era tanta que eles foram incapazes de receberem o Senhor perdendo a oportunidade de ouvir as boas novas do Reino de Deus e o seu maravilhoso ensino de vida.
Percebo que, no nosso caminhar, enfrentamos situações parecidas pela pela recusa de tomarmos partido de certas posições políticas, religiosas ou culturais. Se um ministro do Evangelho vai anunciar a sua mensagem num diferente segmento religioso, pode ocorrer que outra igreja deixe de recebê-lo posteriormente. Um pastor protestante que aceita o convite de um padre para pregar em sua paróquia, por ocasião de uma reunião ecumênica, passa a ser olhado com desconfiança no meio evangélico fundamentalista. Se pregar num grupo espírita então, aí ele vira "apóstata" a passa a ser considerado um agente de Satanás dentro da Igreja.
É de me deixar perplexo verificar que as mesmas hostilidades ocorridas nos tempos de Jesus ainda continuem hoje entre os que dizem crer nele. Aqueles samaritanos ouviram notícias dos ensinos e dos milagres operados pelo Mestre durante os três anos de seu ministério pela Galileia. Ainda assim, reusavam-se a recebê-lo oferecendo a hospitalidade, a qual era um dever moral dentro do contexto histórico de antigamente. E, da mesma maneira, a Igreja, com sua bimilenar história, permanece agindo de um modo bem equivocado por meio de suas atitudes ainda fechadas.
No estudo feito anteriormente, vimos ter Jesus repreendido João pela sua atitude sectária. Agora será este mesmo discípulo que, juntamente com o seu irmão Tiago, vai propor ao Mestre a destruição daquela aldeia samaritana por terem os seus moradores rejeitado o Senhor.
"Vendo isto, os discípulos Tiago e João perguntaram: Senhor,queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir?" (verso 54)
A atitude dos dois irmãos corresponde às condutas daqueles que querem hoje impor o Evangelho pela velha coação psicológica do tipo "aceite Jesus ou você vai arder no inferno". João e Tiago, naquele momento, por mais que tivessem sido zelosos, não estavam permitindo aos membros da comunidade experimentarem o livre processo de escolha. Queriam um julgamento que importasse em condenação retribuindo aos samaritanos com um sentimento implacável de ira.
A resposta dada por Jesus foi o que a Igreja deveria ter assimilado nestes séculos todos. O Mestre repreendeu os dois discípulos amorosamente dizendo-lhes:
"Vós não sabeis de que espírito sois. Pois o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las" (versos 55 e 56)
Tal como os samaritanos se achavam incompreensivos, Tiago e João portavam-se da mesma maneira tratando com hostilidade os incrédulos. Oras, se a missão de Jesus era salvar a humanidade de sua maldade, insensatez e ignorância espiritual, por que ele iria agir com violência contra pessoas que não souberam entendê-lo? Nosso Senhor veio propor a construção de algo novo - o Reino de Deus. Porém, se havia gente ainda fechada para esta realidade, jamais seria pela eliminação daquelas almas que tudo se resolveria e o planeta experimentaria uma transformação ética. Tão pouco pode a coação promover o amadurecimento existencial.
Era preciso dar tempo aos samaritanos e Jesus seguiu para outra aldeia (v. 56). O Mestre ensinou que o Reino se constrói com a inclusão evolutiva de todos e para tanto é necessário termos paciência. Ao procurar hospedagem em outro lugar, nosso Senhor não fechou as portas do céu para a comunidade que não quis recebê-lo. Antes ele entendeu não ter chegado ainda o momento da acolhida do Evangelho naqueles corações e resolveu não insistir assediando a consciência das pessoas. Tomou uma atitude semelhante a que teve no episódio de Gerasa, quando os moradores de lá pediram para que se retirasse da região de Decápolis, mas continuou apostando numa conversão futura de todos.
Como discípulos de Jesus, precisamos desenvolver tamanha sabedoria com paciência e fé. O Salvador não nos enviou para destruir almas! Na nossa caminhada rumo a Jerusalém espiritual, precisaremos nos comunicar abertamente, dialogarmos com as diferentes religiões, suportarmos as rejeições e compreendermos os incompreensivos sem nunca desistirmos de ensiná-los. É o que aprendemos com Cristo!
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