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terça-feira, 23 de julho de 2013

O discípulo e a sua cruz



Na postagem anterior, sobre a confissão de Pedro, cheguei a iniciar uma abordagem muito breve dos versículos 23 e seguintes do capítulo 9 do Evangelho de Lucas. Eu pretendia ir hoje direto ao episódio da Transfiguração, mas percebi a necessidade de fazer um aprofundamento das sábias palavras atribuídas ao Mestre que, certamente, receberam uma redação conforme a significação dada pela Igreja décadas depois de sua morte.

"Dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse a salvará. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a causar dano a si mesmo? Porque qualquer que de mim e das minhas palavras se envergonhar, dele se envergonhará o Filho do Homem, quando vier na sua glória e na do Pai e dos santos anjos. Verdadeiramente, vos digo: alguns há dos que aqui se encontram que, de maneira nenhuma, passarão pela morte até que vejam o reino de Deus." (Lucas 9:23-27; ARA)

Sem dúvida que o contexto literário está primeiramente relacionado à predição de Jesus sobre sua morte (verso 22), o que vai ser confirmado na Transfiguração pelas palavras de Moisés e de Elias (v. 31). Porém, os ensinos transcritos acima convidam o leitor para se tornar também um protagonista caminhando nos passos do Mestre. Revelam-nos a inegável extensão do discipulado: carregar cada qual a própria "cruz" (v. 23).

Esses ditos do Evangelho abrem inúmeras possibilidades interpretativas e de aplicação pessoal. Cada discípulo tem uma cruz específica para colocar nas costas, isto é, uma área de sua vida onde precisará lutar contra os interesses egocêntricos que o alienam espiritualmente. É algo que somente o próprio seguidor poderá fazer porque se insere dentro das fronteiras do livre arbítrio. Logo, nem mesmo o Senhor Jesus ou a sua Igreja vão desempenhar para ele uma tarefa evolutiva que é exclusivamente pessoal.

Entretanto, o Mestre veio nos incentivar para lutar e vencer, continuando bem do nosso lado para transmitir o apoio que necessitamos. Ele nos mostra a recompensa que há em renunciarmos as ambições do ego que é ganhar/salvar a vida ao invés de perdê-la (v. 24). Tem-se, assim, uma positiva inversão de valores mas que vem nos levar à realidade existencial, libertando-nos das ilusões passageiras deste mundo.

Como alguém poderá achar a própria vida perdendo-a? Afinal de conta, que paradoxo é este?

A meu ver, Jesus não estava restringindo o seu discurso à escatologia e nem a recompensas póstumas. No verso 27, ele promete o alcance da visão do Reino de Deus antes mesmo do discípulo passar pela morte, embora nem todos chegarão a este nível de amadurecimento. E, quanto a isso, eu diria que se trata de entender intimamente o sentido da vida e de assumirmos o nosso papel existencial de relacionamento com o próximo. Compreendemos que a verdadeira alegria não se encontra no valor da conta bancária, no acúmulo de poder, bens materiais, prazeres e fama, mas reside numa vida para fora de nós mesmos numa atitude permanente de serviço. Por tal motivo, o triunfalismo do ego só pode conduzir a uma vitória vazia e a um auto-engano.

Ao longo da História, pelas escolhas de vida que fizeram, muitas pessoas parecem ter experimentado ainda aqui o Reino de Deus, o qual se encontra arraigado na eternidade, incluindo todas as dimensões da existência (lá e cá). Eu creio que o discípulo, ao partir, experimenta um gozo sem igual no reencontro de sua alma com o Criador sem as barreiras da fisicalidade. Contudo, estamos hoje aqui, chamados para sermos construtores deste jardim maravilhoso chamado Terra e temos muito a contribuir, pelo que precisamos aproveitar intensamente o tempo que nos é dado nesta breve experiência.

Confesso ter já idealizado demais as biografias daqueles que, aparentemente, teriam dado tudo de si por causas sociais ou religiosas. Cheguei à conclusão que para uns foi motivo de verdadeira realização enquanto outros se frustraram. E, se para eles deu certo, não quer dizer que servirá para todo seguidor de Jesus.

Há missionários que partem para a África, Haiti ou Timor Leste e se decepcionam. Descobrem que estavam vivendo mais uma fuga de si mesmos pelas escolhas de afastamento que fizeram ao invés de desenvolverem  o amor na proporção que caberia em seus corações. Esqueceram das possibilidades de atuação em suas respectivas cidades, juntos da companhia familiar, sem deixarem de trabalhar e de criar filhos, visitando os doentes de perto, os presídios, as clínicas psiquiátricas, os asilos, etc.

Mais adiante, no capítulo 14, o Mestre mostrará que o verdadeiro discipulado exige abnegação e aí adianto em lembrar das metáforas do homem que decide edificar a torre calculando primeiro as despesas orçamentárias e do rei que, antes de combater numa guerra, avalia o número de seu efetivo militar para saber se terá condições de dar enfrentamento ao adversário. Ou seja, é preciso nos conhecermos melhor praticando um auto-exame e, finalmente, concluir sobre qual área de nossas vidas requer uma renúncia. Jamais podemos nos esquecer que as escolhas poderão iniciar um processo novo ("dia a dia"), com causa e efeito, sendo muitas das vezes irreversível. Por isso, as decisões precisam ser sempre conscientes e maduras através das projeções feitas sobre o tempo e o espaço.

Inegável que esse ensino bíblico cause uma certa dose de angústia no leitor porque o autor sagrado vem justamente nos tirar das nossas zonas de conforto. Quando vier em sua glória, o Mestre não deseja se envergonhar de nós. Daí não é recomendável vivermos egocentricamente, mas devemos agir com cautela e descobrirmos qual o tamanho e o peso da cruz que iremos carregar para crescermos espiritualmente. Enfim, qual será a nossa participação no processo construtivo do Reino e preparação do mundo para a glória futura tanto desejada.


OBS: A ilustração acima refere-se à obra do artista italiano Sebastiano del Piombo (1485-1547). Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em https://it.wikipedia.org/wiki/File:Christ_del_piombo.jpg

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