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terça-feira, 16 de julho de 2013

As prisões espirituais de uma comunidade



Escrever sobre os exorcismos de Jesus não costuma ser um dos temas preferenciais de um pensador liberal da Teologia. Porém, equivoca-se quem me rotula enquadrando-me numa ou em outra tendência, seja nos campos religioso ou político. Leio autores de todos os tipos e procuro chegar às minhas próprias conclusões. Assim, num estudo sequencial sobre o Evangelho de Lucas, iniciado desde junho do corrente ano de 2013, não vou simplesmente pular o episódio da cura do endemoniado geraseno (Lc 8:26-39) ainda que jamais consiga abordar suficientemente todos os detalhes de qualquer passagem bíblica comentada.

Após vencerem a tempestade de ventos no Mar da Galileia (8:22-25), como analisei no texto anteriormente publicado, Jesus e seus discípulos chegam à terra dos gerasenos, região identificada na geografia histórica de Israel como Decápolis. Eram, na verdade, dez cidades gregas dentro do território dos judeus onde gentios habitavam com certa autonomia administrativa reconhecida pelo Império Romano. Embora o Evangelho de Mateus identifique o lugar como Gadara, e não Gerasa, o que me parece mais lógico por causa da menor distância em relação à margem do lago, suponho ser um detalhe de pouca importância para a nossa reflexão. A meu ver, o autor do 1º Evangelho, situado numa localidade mais próxima da Palestina, pode ter corrigido um equívoco do anterior livro de Marcos do qual o texto de Lucas também dependeu, obviamente sem fazer tantas modificações.

A visita do grupo a uma região ocupada pelos gentios significou o anúncio prévio de que as boas novas viriam a ser pregadas a todos os povos após a morte de Jesus (24:46-47). Por outro lado, tendo o Senhor se concentrado ministerialmente no resgate das ovelhas perdidas da casa de Israel, sua passagem pelo território das Dez Cidades seria um apelo para os que habitassem no meio de seu povo também se tornassem co-participantes da nova realidade pregada pelo Mestre - o Reino de Deus. Afinal, a própria Lei de Moisés sempre foi inclusiva para com os estrangeiros peregrinos e exigia de tais pessoas uma conduta mais apropriada no meio da nação judaica. Sendo os israelitas dominados por Roma, Jesus só poderia integrar os que pisavam o seu país de uma outra maneira que seria sugestiva e nunca coercitiva.

O que Jesus encontrou logo de cara foi uma resistência. Assim que desceu da embarcação, veio ao seu encontro "um homem possesso de demônios" (8:27). Informa o escritor sagrado sobre a sua aparência, o qual "havia muito não se vestia, nem habitava em casa alguma, porém vivia no sepulcros". Também diz o texto que o espírito imundo "muitas vezes se apoderava dele" e que os moradores da região não conseguiam prendê-lo porque "tudo despedaçava e era impelido pelo demônio para o deserto" (verso 29).

O termo traduzido para o português por "demônio" tem uma ampla significação no idioma grego no qual foi escrito o Novo Testamento. Trata-se do mesmo vocábulo utilizado para "deuses" em Atos 17:18 bem como "seres sobrenaturais". Logo, podemos dizer que o autor referia-se a consciências não físicas, espíritos que estavam assediando o corpo e a mente de outra pessoa, cansando-lhe danos. No caso em tela, seria um distúrbio de ordem comportamental capaz de gerar um estado de inconsciência, nem que seja aparentemente por viciar a sua vontade.

Vários estudiosos da Bíblia com uma visão mais cética tentam identificar qual seria a doença do geraseno, relacionando-a muitas das vezes com a epilepsia. Dentro deste entendimento, o homem padeceria somente de males de ordem psíquica, diagnosticados na época como sendo de origem espiritual, mas que teria alcançado a cura para as suas emoções num encontro com Jesus. Só que o texto diz mais coisas que não autorizam uma conclusão agnóstica a partir do que está lá escrito.

De olho nesta lição, penso que devemos tomar precauções antes de afirmar cabalmente que algo seja de origem espiritual ou não. Erros podem ser cometidos por qualquer tipo de generalização. Um problema de saúde pode ter causa espiritual, psíquica, ou depender de ambas. Neste caso, o processo de cura vai requerer também a ajuda de um trabalho terapêutico com o acompanhamento de psicólogos e, quem sabe até, auxiliados por psiquiatras e/ou neurologistas. Só que a ausência do apoio espiritual pode tornar-se igualmente uma omissão capaz de manter o indivíduo doente preso a uma situação não diagnosticada pela ciência. Ou então, os médicos atribuirão um CID qualquer considerando a enfermidade como "incurável".

Quantos pacientes não vivem inconscientemente por aí como, na verdade, poderiam ser libertos através da assistência espiritual? É dever da Igreja de Cristo atuar também nesta área por meio de orações e atitudes de fé! Através da mesma autoridade dada por Deus ao nosso Senhor, podemos proibir o assédio de consciências extrafísicas sobre a vida das pessoas, tarefa esta que precisa ser realizada com discernimento e exclusiva orientação do Espírito Santo.

No caso do geraseno (não me importa se a memória registrada nos evangelhos seja histórica ou teológica), o espírito que o obcecava conhecia a autoridade do Mestre como acontecera no episódio de 4:34. As ações feitas por Jesus aqui na Terra ganhavam repercussões no mundo espiritual já que se trata de uma realidade só que apenas os nossos olhos limitados não enxergam. Contudo, assim que o homem veio na direção do Senhor, ele percebeu algo de sobrenatural, digamos assim, e a ação maligna foi repreendida. É iniciado um diálogo onde o demônio manifesta o desejo de entrar numa manada de porcos que por ali pastava ao invés de ser enviado para o "abismo" (vv. 31 e 32).

A presença de porcos em Israel era algo que demonstra contrariedade aos costumes de pureza dos israelitas. Seria até uma ofensa aquela criação de suínos pois se tratava de uma carne que não fazia parte da dieta judaica e o próprio cadáver do animal era entendido como fonte de contaminação cerimonial. Só que os moradores dessa região situada a Sudeste do Mar da Galileia eram estrangeiros vivendo na Terra Santa de modo que tal detalhe tem importância para todo o texto e, talvez, ajude a explicar o motivo de Jesus permitir que os demônios atacassem a manada.

Mas será que Jesus permitiu os demônios entrarem nos porcos apenas porque aquelas comunidades estrangeiras das Dez Cidades ofendiam frontalmente os costumes de seu povo?

Não haveria alguma relação entre o homem possesso de espíritos imundos e os demais gerasenos?

E estes não davam alguma legalidade no mundo espiritual para que o mal continuasse atuando no ambiente social?

Suponho que, por razões de ordem ética, toda a comuna estabelecia um relacionamento de prisão espiritual entre os seus membros. O homem liberto por Jesus até então atraía para si aquele mal refletindo uma situação que era coletiva. Ele era ao mesmo tempo um refém dos próprios compatriotas que jamais desejaram solucionar seu problema. Tentavam segurá-lo sem qualquer sucesso e fico a indagar se, no fundo, muitos não gostavam de tê-lo continuamente naquele estado.

Com a vitoriosa expulsão do mal, os gerasenos reencontraram o homem desta vez "vestido, em perfeito juízo, assentado aos pés de Jesus" (v. 35). Ninguém ali se alegrou com a sua restauração que é contrastada com o comportamento anteriormente descrito na narrativa bíblica. O sentimento que toma conta da mente daquelas pessoas passa a ser um medo aterrorizante. Por isso, pedem então a Jesus para se retirar do meio delas (vv. 35-37).

Afinal, o que os gerasenos temiam?

Seria o desconforto pelo rompimento daquilo que tanto os oprimia?

A liberdade proposta pelas boas novas do Reino em seu aspecto prático importaria para a comunidade a perda de algo ruim mas que os seus membros tanto estimavam?

Se refletirmos novamente na perda dos suínos, com estes simbolizando uma vida entregue ao pecado, podemos nos aproximar da resposta. Para uma pessoa ou comunidade tornar-se verdadeiramente livre, importa afastar-se do comportamento que a aprisiona. Certos tipos de condutas podem conceder legalidade à ação de espíritos malignos. A glutonaria assim como a embriaguez, a prostituição, a feitiçaria, a idolatra, os assassinatos e as injustiças sociais tornam-se portas de entrada para o mal. O praticante encontra algum prazer nestas coisas e os demônios também. Como consequência de um envolvimento coletivo, alguns membros da comunidade passam a manifestar com maior intensidade a mesma realidade da qual todos participam sem nunca perceberem. O endemoniado de Gerasa, talvez, tivesse até um dom de se relacionar mais intimamente com o mundo espiritual, mas estava com a sua capacidade comprometida devido ao assédio extrafísico que sofria.

Para não me alongar demais a ponto de transformar suposições puramente hipotéticas em mais uma doutrina parapsíquica, indo além do texto em estudo, contento-me com as coisas ali reveladas. O Evangelho trás uma liberdade verdadeira com implicações espirituais, éticas e sociais. As boas novas do Reino propõe aos homens uma novidade de vida que requer um nível de comprometimento dos receptores da mensagem com a prática dos ensinamentos.

Ainda não tinha chegado o momento de Gerasa e as demais cidades gentílicas da circunvizinhança compreenderem o propósito do Evangelho. Jesus entende e respeita isso, abstendo-se de cometer um assédio às consciências daquelas pessoas. Eles pedem ao Mestre que saísse do meio onde viviam e o Senhor, em momento algum, impõe sua presença ou as ideias que expressava. Todavia, o que estivera endemoniado permanece na região de origem para testemunho do benefício a ele ministrado. Torna-se um seguidor de Jesus à distância e, ao mesmo tempo, um missionário que se reintegra à sua família e ao convívio social.

"Então, foi ele anunciando por toda a cidade as coisas que Jesus lhe tinha feito" (8:39b)


OBS: A figura usada acima trata-se de uma ilustração da época medieval sobre o episódio bíblico em comento - o exorcismo do geraseno.  Extraí do acervo virtual da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Healing_of_the_demon-possessed.jpg

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