Antes de nascer, João Batista estremecera no ventre de Isabel quando esta recebeu a visita de Maria (1:39-45). Sendo ainda um nascituro inconsciente, parece ter João percebido de alguma maneira extraordinária a missão relacionada ao seu destino profético, transmitindo pelo Espírito Santo uma mensagem proferida pela própria mãe. Trinta anos depois, conscientemente, passou a pregar um batismo de arrependimento para a nação judaica. Com uma severidade capaz de lembrar os antigos profetas bíblicos, ele advertia o povo sobre um juízo certo e repentino que viria contra os pecadores impenitentes:
"E também já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo" (3:9; ARA)
Acerca do Messias, ele assim dizia, usado também a figura assustadora do "fogo" como símbolo de juízo:
"A sua pá, ele a tem na mão, para limpar completamente a sua eira e recolher o trigo no seu celeiro; porém queimará a palha em fogo inextinguível" (3:17)
Ao ouvir as coisas que Jesus andava fazendo, João deve ter ficado confuso tendo em vista as expectativas que tinha sobre o Messias prometido. Suas ideias de julgamento não se aplicavam às obras do Mestre: as curas e o convívio com os pecadores. Daí a dúvida formulada no texto bíblico sendo que a passagem de Lucas, diferente de Mateus 11:2-19, omite na perícope sobre a prisão feita por Herodes, o que afasta a influência da situação de encarceramento sobre o que pensava João em relação a Jesus.
"És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?"
A esta indagação Jesus responde com base em Isaías 35:5-6, combinado com 61:1 do mesmo livro profético. Ou seja, todas as curas por ele operadas significavam a inclusão de pessoas marginalizadas da sociedade. Numa época em que a manifestação da doença era relacionada a uma punição pelo pecado, a restauração dos cegos, surdos, paralíticos e leprosos, além da ressurreição dos mortos, ganhava o sentido de perdão. As pregações do Senhor, certamente, tratavam-se das boas novas dirigidas as pobres e aos que também não tinham nenhum valor para a moral estabelecida pelos homens.
Interessante que Jesus não reprovou João por ter manifestado a sua dúvida. Sua única advertência foi a proclamação de mais uma bem-aventurança no Evangelho para os que não achassem nele um "motivo de tropeço". A resposta dada também não foi diretamente clara, mas serviu para promover a reflexão de João e do leitor da época do Evangelho de Lucas (e penso também que de nós).
O testemunho que Jesus dá sobre João, do versículo 24 em diante, mostra elevada consideração por aquele que poderíamos chamar de maior de todos os profetas. Contudo, "o menor no reino de Deus é maior do que ele" (v. 28b), dando a entender que, com o ministério do "mensageiro do deserto", uma era havia se passado e um outro tempo chegado. Pois, na nova realidade que estava sendo introduzida (o Reino), já não subsistiria o velho discurso de ameaça de punição dos pecadores, mas sim o acolhimento inclusivo e misericordioso do Salvador. Algo que nosso Senhor fez estabelecendo escandalosos contatos de proximidade com as almas feridas.
Por acaso a mensagem de João não trazia esperanças e uma nova oportunidade para os pecadores? Sem dúvida que sim, da mesma maneira que muitos pregadores da nossa atualidade ainda fazem. Jesus, porém, teve a ousadia de tornar-se também um "amigo de publicanos e pecadores" (v. 34). Ele toca nas pessoas com compaixão e se deixa tocar. No milagre antecedente, a ressurreição do filho da viúva de Naim, nosso Senhor foi capaz de tocar no impuro esquife (v. 14), tal como fizera no caso da purificação do leproso (5:13). Na passagem seguinte, que conclui o capítulo 7 de Lucas, o Mestre permitirá que uma mulher pecadora (uma prostituta talvez) venha ungir seus pés enquanto comia na casa do fariseu, motivo pelo qual o seu anfitrião resolveu duvidar sobre ser ele um profeta (v. 39).
Praticamente dois mil anos se passaram desde que Jesus anunciou a chegada do Reino pelos vilarejos da antiga Galileia e até hoje a Igreja parece mais interessada em prosseguir com uma equivocada concepção de profetismo julgador. O novo e o velho coexistem entre os que dizem seguir a Cristo. A recusa de muitos crentes em conviverem com pessoas consideradas "do mundo" evidencia não terem ainda se libertado de uma noção limitada da santidade que é incompatível com a proposta do Evangelho do Reino. Enquanto o Senhor foi ao banquete na casa de Levi (5:29-32), tem evangélicos por aí que se recusam a ir até num aniversário de criança temendo encontrar ali "gente ímpia", isto é, pessoas comuns que escutam músicas seculares, contam piadas engraçadas sobre sexo e se divertem normalmente.
O Reino de Deus é chegado! Pregar o Evangelho é também se misturar com toda a humanidade sem preconceitos. Posso ir hoje numa igreja, partilhar uma mensagem bíblica no púlpito e amanhã estar numa festa bem alegre. Conversar com um líder religioso mas também ser amigo de usuários de drogas, prostitutas, travestis de programa, criminosos condenados pela Justiça, etc. Por isso, o verdadeiro sábio não se escandaliza e não cai nas armadilhas de uma falso saber que a tudo e a todos julga condenando.
O que João Batista, os leitores originais de Lucas e nós precisamos compreender é qual o sentido da ação do Reino. Qual a essência do movimento messiânico protagonizado por Jesus? Pois penso que, nos primeiros séculos, reconhecer o nosso Mestre como o Messias significava abraçar as suas escandalosas obras. Hoje em dia, porém, a confissão de fé feita em muitas igrejas acaba significando a negação das coisas mais importantes pelas quais o Senhor tanto lutou. Por isso é que não podemos consentir que, ao "aceitar Jesus", o novo convertido acabe se filiando a um neo-farisaísmo cristão e perca o encantamento pela descoberta de Deus logo no comecinho de sua caminhada espiritual.
Que a cristandade deste terceiro milênio seja finalmente desperta pela Luz!
Forte! Glória a Deus!
ResponderExcluirAmém!
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