O capítulo 8 de Lucas, depois de apresentar duas parábolas e uma curta narrativa sobre o encontro que a família de Jesus queria ter com ele, passa a tratar então da questão do medo e da fé em quatro episódios sequenciais.
Como escrevi nos dois artigos anteriores, tanto na tempestade acalmada quanto na cura do endemoniado geraseno, as pessoas foram controladas por seus temores. No barco, os discípulos acordaram o Mestre achando que iriam perecer (verso 24). Já em Gerasa, a comunidade local amedrontou-se diante das mudanças provocadas pela chegada do Reino de Deus, quando viram o homem curado aos pés de Jesus, e pediram ao Senhor que se retirasse daquela região (v. 37).
Ao retornar de sua viagem, dois novos milagres serão marcados dessa vez pelos sentimentos de coragem e de ousadia: a cura da mulher com hemorragia e a ressurreição da filha de Jairo. Em ambos, a fé prevalecerá sobre a aparência das circunstâncias através das atitudes de pessoas que, insistentemente, lutaram até o fim pelas coisas por elas desejadas.
Jairo foi um homem que não se conformou com nenhuma notícia ruim sobre o estado de saúde de sua filha adoentada. Tendo ele uma posição de destaque na sinagoga onde regia o culto e, consequentemente, na própria comunidade também, não se importou sobre o que iriam pensar ou dizer a seu respeito, caso não fosse abençoado. Quando procurou por Jesus, diz o texto que a menina "estava à beira da morte" (v. 42).
Jesus não se recusou a ir até sua casa curar a mocinha e, quando estavam a caminho, seguidos por uma multidão, aproximou-se uma mulher que sofria de uma hemorragia crônica há 12 anos e encostou nas vestes do Salvador. Imediatamente, ela ficou curada de sua doença e o Mestre percebeu que algo fora de comum acontecera. Aquele não fora um toque comum como os outros apertos da multidão em sua volta.
"Alguém me tocou, porque senti que de mim saiu poder" (v. 46)
Segundo Levítico 25:15, o fluxo de sangue menstrual tornava tal mulher cerimonialmente impura, excluindo-a de vários relacionamentos dentro da sociedade judaica. Além de conviver com a doença, ela também lidava com a rejeição das pessoas. Quem tocasse em seu corpo, nas suas vestes, ou na cama onde dormia, tornava-se também temporariamente imundo.
Que ousadia teve ela ao tocar em Jesus! Sem dúvida que muitos líderes, pregadores, mestres da lei, levitas e, principalmente sacerdotes, deveriam evitar qualquer conato físico com ela. Se teve marido algum dia, este pode tê-la deixado ou então nunca se casara já que a cada ato sexual custaria-lhes um sacrifício no Templo, segundo as leis de purificação do judaísmo conhecidas através do Talmud Babilônico (M. Niddah 2:1b-5). De acordo com o texto de Lucas, ela tivera bens, mas gastou tudo com os médicos sem conseguir alcançar o resultado. Ainda assim, a sofrida mulher buscou forças para não desistir e foi atrás de Jesus.
Fico pensando sobre o que seria daquela mulher se, após tocar nas vestes, não fosse curada? Certamente, ela seria publicamente humilhada e mais rejeitada do que já era. Como havia uma multidão de pessoas atrás do Mestre, era mais provável que ninguém descobrisse nada. Só que ela percebeu a ocorrência de um milagre em seu corpo e se apresentou voluntariamente diante do Mestre. Até mesmo porque precisava obter o reconhecimento da cura para ser socialmente reabilitada. A declaração de Jesus era o que lhe faltava e foi preciso coragem e confiança naquele momento:
"Então, lhe disse: Filha, a tua fé te salvou; vai-te em paz" (v. 48)
Interessante que Jesus não atribuiu a si mesmo a causa da cura, mas sim à atitude daquela mulher. Ele mesmo sabia que o seu corpo servia apenas de canal para o Espírito de Deus agir. Todos poderiam exercer a fé independentemente de sua pessoa! Talvez, por motivo de infantilidade espiritual, muitos condicionassem a necessidade de um toque físico para a obtenção da cura. Porém, ao dizer que a fé da própria pessoa trouxe salvação, nosso Senhor estava ensinando o caminho da maturidade. Foi esta a mesma advertência dada aos discípulos anteriormente no barco após acalmar a tempestade:
"Onde está a vossa fé?" (v. 25)
Ao que parece, nem houve tempo de Jesus dizer mais coisas após a cura da mulher. Enquanto falava, veio alguém trazendo uma triste notícia da casa de Jairo. A filha deste acabara de falecer. São duras as palavras ditas na ocasião e capazes de produzir o mais profundo desânimo:
"Tua filha está morta, não incomodes mais o Mestre" (v. 49)
Que bomba! Jesus já estava a caminho da casa do chefe da sinagoga e este havia se humilhado suplicantemente para que o Senhor fosse curar a sua única filha. Com a notícia, ele tinha acabado de perder até a oportunidade de ficar ao lado da menina nos últimos instantes da vida dela, tendo que lidar com o seu sofrimento diante de um público sequioso em que cada qual parecia estar mais preocupado em resolver a própria situação através de Jesus. A multidão nem ao menos se comoveu.
A impressão que tenho seria que muitos viam Jesus como um objeto de cura para solucionarem os seus problemas imediatos. Formava-se uma fila de pessoas ansiosas para alcançarem bençãos, porém quase sempre desinteressadas das boas novas do Reino. Nessa busca pelo milagre, o amor talvez ficasse esquecido. Tanto é que o noticiante, por nem vislumbrar a possibilidade de uma ressurreição ocorrer, pede a Jairo para não incomodar mais o Mestre. A fila anda e outros tinham que ser atendidos!
Todavia, Jesus se importava com a dor daquele homem e de sua esposa. Os milagres que operava não tinham por finalidade provar algo grandioso a seu respeito para que o Mestre viesse a ser logo reconhecido como Messias. Antes eram sinais da chegada do Reino e atitudes de compaixão para com o próximo. Diante das palavras que Jairo acabara de ouvir, o Senhor o encorajou a manter a fé:
"Não temas, crê somente, e ela será salva" (v. 50)
Jairo passava a ter duas opções: aceitar a derrota ou crer na vitória. E, deparando-se com os fatos, ele preferiu ter fé acolhendo em seu coração aquelas palavras de ânimo. Sem saber o que estava para acontecer, levou Jesus para a casa e entrou com ele no local onde se encontrava o corpo, enquanto todos choravam. O Senhor, então toma a mesma atitude de consolo que teve no funeral da viúva de Naim (7:13), dizendo-lhes o seguinte:
"Não choreis; ela não está morta, mas dorme" (v. 52)
Além de consolar, Jesus estava ensinando ali que o evento conhecido como "morte" não passa de mera aparência. Algo que pode ser comparado a um sono visto que a alma de todos nós é eterna. E, neste sentido, as três ressurreições registradas no 3º Evangelho vem confirmar a extensão das boas novas do Reino, valendo lembrar da resposta dada a João Batista em 7:22 e das palavras que, no capítulo final de Lucas, serão ditas às mulheres quando foram levar aromas ao túmulo do Salvador (24:5-6).
Pessoas escarnecedoras começaram a caçoar de Jesus quando ouviram o que fora dito no verso 52. Nenhuma delas ali foi capaz de demonstrar fé e nem respeito pela dor dos pais. Embora o texto não diga quem eram aqueles sujeitos, supõe-se que estivessem no local pranteadores profissionais que eram remunerados para fazer lamentações em funerais, conforme os costumes culturais do antigo Oriente Próximo. Só que o nosso Senhor resolveu se opor ao ambiente de luto da mesma maneira como reagiu à notícia de derrota transmitida anteriormente a Jairo.
No exercício da nossa fé, muitas vezes iremos lutar contra a negatividade dos outros. Precisamos estar preparados para lidar com as palavras contrárias e não darmos crédito em nossos corações ao que dizem tais pessoas sem propósito. Nestas horas, devemos imaginar o Salvador do nosso lado incentivando-nos a ter fé e vencer o medo.
A terceira ressurreição registrada em Lucas será a do próprio Senhor que, definitivamente, ensinará sobre a eternidade do ser humano, cujo espírito sobrevive à destruição do corpo físico. Com isto, torna-se completa a mensagem das boas novas. Mas para aquele momento, bastava que a filha de Jairo fosse reunida ao seu corpo mortal como no acontecimento de Naim. E a diferença para a primeira ressurreição foi que, na casa de Jairo, somente os pais e os três discípulos mais íntimos testemunharam o ocorrido. Mais ninguém teria que saber daquilo.
Considerando que muitos sepultam seus parentes, cônjuges ou amigos e, raramente, acontecem milagres de restituição do espírito ao corpo já falecido (o que a ciência tem estudado ultimamente são as experiências de quase morte - EQMs), as palavras de Jesus precisam ser lembradas nos momentos de luto que enfrentamos. Para quem crê nas boas novas, ninguém que partiu daqui está mesmo morto! A alma continua viva e a ausência que sentimos da pessoa não passa de um simples sono. Um dia reencontraremos os nossos entes queridos e, quando chegar a hora de deixarmos esta morada terrena, não precisaremos temer. Apenas crer, e seremos salvos.
OBS: A ilustração acima refere-se à gravura Ressurreição da filha de Jairo do pintor e desenhista francês Paul Gustave Doré (1832-1883). Foi extraída do acervo virtual da Wikipédia em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:R%C3%A9surrection_de_la_fille_de_Jairus,_par_Gustave_Dor%C3%A9.jpg
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