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domingo, 14 de julho de 2013

O progresso no Reino de Deus e a família

"Vieram ter com ele sua mãe e seus irmãos e não podiam aproximar-se por causa da concorrência de povo. E lhe comunicaram: Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem ver-te. Ele, porém, lhes respondeu: Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a praticam." (Lucas 8:19-21; ARA)

Os evangelhos não escondem o conflituoso momento experimentado por Jesus no relacionamento que teve com a família durante o período de seu ministério. Já em sua infância, segundo a tradição bíblica exclusiva de Lucas, seus pais "não compreenderam" os motivos da explicação do menino porque havia ele permanecido entre os doutores do Templo após o término da celebração pascal (Lc 2:50). E, provavelmente, os parentes do Senhor não conseguiram acompanhar a evolução espiritual que teve mesmo convivendo tão próximos debaixo de um mesmo teto.

A citada narrativa do 3º Evangelho sobre o conflito de Jesus com a família apresenta-e bem resumida se comparada com o texto paralelo de Marcos. Suponho que os leitores originais dos dois primeiros séculos talvez já conhecessem o episódio acima tal como relatado no 2º Evangelho, do qual Mateus e Lucas dependem. Por isso, o autor preferiu mencionar o polêmico fato numa perspectiva mais sequencial, no sentido de confirmar a necessidade do seguidor ouvir e praticar a Palavra de Deus. Como havia escrito no artigo anterior, Corações que podem dar muitos frutos, as parábolas do semeador e da candeia são organizadas em Lucas para que os ouvintes da mensagem pregada refletissem sobre como estavam recebendo as boas novas do Reino em seus corações. Por duas vezes o Mestre assim concluiu:

"A [semente] que caiu na boa terra são os que, tendo ouvido de bom e reto coração, retêm a palavra; estes frutificam com perseverança." (8:15)

"Vede, pois, como ouvis" (8:18a)

Assim, propositalmente, o escritor sagrado parece alterar o texto de Marcos onde Jesus considera como sendo seu parente "qualquer que fizer a vontade de Deus" (Mc 3:35). Ou seja, diz-se a mesma coisa mas com palavras diferentes aplicadas a um outro contexto literário.

Ao ler isoladamente a narrativa de Lucas, é certo que muitos se surpreendem por que teria Jesus tratado a mãe e os irmãos de uma maneira que nos parece até rude como se os familiares estivessem sendo repudiados. Penso, porém, que, se as antigas comunidades cristãs destinatárias do 3º Evangelho já conheciam Mc 3:21, onde se diz que os parentes do Mestre "saíram para o prender", fazia-se desnecessário o escritor bíblico entrar em maiores detalhes para não perder o foco do seu relato. Pois, neste caso, os leitores originais já entendiam com clareza que a obra do Reino deve ser colocada acima das relações de família quando estas tornam-se contrárias ao desígnio divino.

Sem compreenderem o serviço ministerial do Mestre, tal como havia ocorrido quando ele ainda menino fora achado entre os doutores do Templo, seus parentes ainda não estavam ouvindo corretamente a Palavra de Deus. Por isso, os dois episódios descritos em Lucas, envolvendo os conflitos familiares de Jesus, estão bem entrelaçados como integrantes de uma realidade só apresentada em todo o livro:

"Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu pai?" (2:49)

O recado já estava dado e se complementa também com um trecho do Magnificat (ver 1:51-53) e com as palavras do velho Simeão (2:34-35). A esta altura do seu ministério, Jesus já era alvo de contradição como profetizado a seu respeito. O acolhimento irrestrito dos pecadores era motivo de escândalo para os fariseus e deveria ser também para os integrantes da sua família. Até João Batista sentiu-se em dúvida quanto ao comportamento do Mestre (7:18-21). E, no texto em estudo, os familiares do Senhor ficaram mesmo de "fora". Tanto da casa onde Jesus ensinava como das obras de Deus que ele andava fazendo.

Não é assim que ocorre com muitos quanto decidem abraçar verdadeiramente a causa do Reino?

Por acaso os pais sempre compreendem e aceitam facilmente a escolha de um filho em servir a Deus quando as ações praticadas extrapolam os limites da normalidade medíocre?

Pois quando o revolucionário, que é um ser a frente de seu tempo, começa a contrariar poderosos interesses, sua atitude causa escândalos manchando a reputação de um clã atraindo incômodos para a vida comunitária de cada ente. Então, diante de circunstâncias semelhantes, é preciso ter atitude agindo com determinação e coragem. Pessoas nascidas para promover transformações sociais no planeta precisam realizar firmemente a vontade de Deus e nunca retrocederem por motivo de pressões familiares. Afinal, trata-se da causa do Reino, da responsabilidade para com a história humana e com o próprio progresso espiritual e ético a ponto de se tornar uma questão existencial.

Para terminar, acho importante dizer que, em nenhuma parte dos evangelhos, Jesus tratou os seus parentes com desamor ou com repúdio. Tão pouco ele teve uma atitude de fuga das responsabilidades para com a família como se evitasse ter relacionamento com a mãe e os irmãos. Na ocasião em que fora encontrado pelos pais no Templo judaico, entre os teólogos da época, informa o texto que o Senhor retornou para Nazaré "e era-lhes submisso" (2:51). Logo, todos os conflitos foram bem superados e os relatos todos do Novo Testamento harmonizam-se com a ideia de que, num momento posterior ao martírio da cruz, Maria e seus outros filhos deram continuidade às obras do Mestre, colaborando juntamente com os apóstolos.

"Todos estes perseveravam unânimes em oração, com as mulheres, com Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele." (At 1:14)

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