"
A [semente]
que caiu na boa terra são os que, tendo ouvido de bom e reto coração, retêm a palavra; estes frutificam com perseverança" (Lucas 8:15. ARA)
A
Parábola do Semeador (Lc 8:4-8) é a única em todo o 3º Evangelho que vem acompanhada de uma posterior explicação (versos de 9 a 15). Somente na narrativa sobre o joio e o trigo, exclusiva de Mateus, é que se tem também um ensino secreto de Jesus, específico aos seus discípulos acerca da interpretação contada às multidões.
O "semeador", muitas vezes identificado com Jesus, é alguém que desempenha o papel de difundir as boas novas, mas não pode ser responsabilizado pelo que a "terra" vai produzir. Por mais que tente prover as necessidades dos vegetais cultivados, regando-os com frequência e ponto matéria orgânica no local para adubar, existirão variáveis alheias à sua ação e que determinarão o sucesso da futura colheita. Logo, no caso desta parábola, deve-se levar em conta também a resposta de cada tipo de solo ao plantio, isto é, a responsabilidade do próprio ouvinte, dotado de livre arbítrio, quanto ao que faz da instrução espiritual a ele ministrada.
Ainda no
Sermão da Planície (Lc 6:20-49), Jesus havia concluído a sua pregação comparando o ouvinte praticante ao homem que construiu a sua casa sobre a rocha, enquanto o desobediente nem ao menos alicerçou a sua moradia sobre a terra, pelo que o edificado não suportou as águas da enchente. Já na
Parábola do Semeador, quatro são as situações ou estágios mencionados acerca dos destinatários da mensagem do Reino:
1º) A semente caída à beira do caminho, pisada e comida pelas aves seriam os que têm a Palavra arrebatada de seus corações logo após ouvirem-na. O ensino nem chega a germinar dentro deles. Tudo permanece como antes. "Entrou por um ouvido e saiu pelo outro", como se costuma dizer popularmente.
2º) A semente caída em terreno pedregoso é identificada com os que recebem alegremente a Palavra mas, por não se radicarem na instrução, desviam-se quando provados por qualquer circunstância adversa. "Creem", ou demonstram ter fé, só por algum tempo enquanto as coisas vão bem.
3º) A semente caída entre "espinhos" (ervas daninhas resistentes e de crescimento rápido) representaria os que, no decorrer dos dias, após terem ouvido a Palavra, permitem-se sufocar "com os cuidados, riquezas e de deleites da vida" e, por isso, não geram frutos.
4º) A semente caída na boa terra, os que "frutificam a cento por um", corresponde aos que ouvem de bom e reto coração, retêm a Palavra e, com perseverança, produzem frutos. É o que está bem colocado no versículo 15 acima citado.
Ao que me parece, no quarto e último tipo de solo, estaria a orientação do Mestre para o ouvinte ser espiritualmente bem sucedido. Poderíamos identificar aí as seguintes ações (verbos) em que cada uma parece se opor a um dos três comportamentos anteriormente reprovados na respectiva ordem como foram narrados no Evangelho:
-
Ouvir com bom e reto coração seria o antídoto para não perder a Palavra. Trata-se de criar no íntimo um ambiente receptivo para acolher o Evangelho sem mentirmos a nós mesmos. É desejar realmente o Reino e, por isso, o coração não pode virar uma terra dura e compactada como as estradas de chão;
-
Reter a Palavra implica em remover as pedras existentes em nossas vidas para que o ensino do Reino possa criar raízes aprofundando-se no solo. O ouvinte assume a sua identidade e não vai se importar com o que os outros, sua família e amigos pensarão de suas escolhas de vida. Ele realmente se compromete com o Evangelho de Cristo!
-
Frutificar com perseverança (ou paciência) significa lutar dia após dia contra pragas que tentam destruir a plantação - os espinhos daninhos. O ouvinte não fica acomodado e se empenha por praticar o bem. Esforça-se e vai desenvolvendo a sua espiritualidade por meio de orações, reflexões pessoais e atitudes. Além de dizer não a coisas erradas, ele procura exercitar-se no que é proveitoso e edificante para o próximo.
Os frutos corresponderiam justamente às obras de justiça do Reino de Deus em nossas vidas. O quarto tipo de solo significa o alcance de uma espiritualidade sadia. Ou melhor, decorre da insistência em superar os outros três estágios de fracasso na nossa caminhada com Cristo. Não importa o tempo que levamos, ou quantos tombos tivemos. Entendo que Jesus fala de um ouvinte que pode ter caído, levantado, corrigido seus erros, falhado novamente, arrependido e, com o ânimo recobrado, não desistiu do bem.
Por agir assim, com perseverança, o ouvinte atento da Palavra passa a provar em seu coração uma paz eterna. Ele encontra uma alegria verdadeira que nada neste mundo, nenhum prazer ou bem material pode proporcionar. Já não se importará com a rejeição dos homens porque se satisfará em agradar a Deus fazendo a vontade do Pai. Pois o ensino que recebeu do Senhor encontrou espaço completo dentro de si.
Em Lucas, a explicação da
Parábola do Semeador é complementada com alguns ditos costumeiros de Jesus aplicados à maneira como se ouve a Palavra. Daí o Mestre valer-se da
metáfora da candeia nos versos de 16 a 18.
Embora não seja nada fácil relacionarmos as duas parábolas, não podemos nos esquecer que, no texto em estudo, elas estão em sequência. Jesus diz que a luz deve ser colocada num ponto da casa capaz de clarear por completo o ambiente interno. Logo, podemos entender que, ao ouvir a Palavra, ela deve alcançar o ponto central de nossas vidas para que tudo o que há em nós fique iluminado. Ou seja a candeia acesa colocada no valador permitirá tratarmos dos nossos sentimentos, desejos, emoções e lembranças através da exposição dos mesmos numa tarefa de auto-exame. Quem os oculta não está recebendo o ensino do Mestre de uma forma correta e acaba caindo num auto-engano religioso.
Contextualizar o final da advertência constante no versículo 18 é ainda mais difícil. Fica claro que Jesus estava dando recomendações sobre prestarmos a atenção na maneira como se recebe a Palavra. Porém, qual o significado de "dar ao que tiver e retirar aquilo do que julga ter algo"?
Se refletirmos sobre a questão do auto-engano, talvez possamos compreender melhor. Pois, na verdade, nada é dado ou retirado. Os sujeitos simplesmente tinham ou não algo. Por isso, quando o ouvinte negligente depara-se com a realidade nua e crua da vida, ele descobre estar nu e privado de qualquer bem. E, em algum momento dessa multidimensional existência, haveremos de ser confrontados com nós mesmos e aí não será possível negarmos qual o conteúdo da verdade que temos.
Dura coisa é descobrir que os nossos frutos não são tão docinhos e saborosos quanto imaginávamos antes. É quando então percebemos que não somos lá tão bons pais, bons maridos, bons patrões, bons mestres, bons pastores e nem bons administradores de nós mesmos. Contudo, quando algo assim ocorre, não importa o quão doloroso seja. Devemos reconhecer o benefício da tomada de consciência e, a partir daí, praticarmos a árdua tarefa do auto-exame, conhecendo melhor a nós mesmos. Só assim nos tornaremos ouvintes verdadeiramente produtivos e que farão diferença na construção do Reino de Deus. Basta tratarmos bem do solo dos nossos corações. Como havia escrito no título deste artigo, creio que somos todos corações com potencial de dar muitos frutos.
OBS: A ilustração acima refere-se ao quadro
O Semeador do pintor francês
James Tissot (1836-1902) que se encontra atualmente no Museu do Brookyn, em Nova York. Extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Brooklyn_Museum_-_The_Sower_(Le_semeur)_-_James_Tissot_-_overall.jpg
Nenhum comentário:
Postar um comentário